Telinha The Crown: segunda fase amplia noção de que, na realeza, casamento é questão de estado Crise conjugal se agrava nos novos capítulos do seriado da Netflix, disponíveis no catálogo

Por: Tiago Barbosa

Publicado em: 08/12/2017 13:15 Atualizado em:

Na ficção e na realidade: protocolo interfere na relação. Foto: Netflix/AFP/Divulgação
Na ficção e na realidade: protocolo interfere na relação. Foto: Netflix/AFP/Divulgação


Não poderia haver coincidência temporal mais oportuna para o retorno de The crown, da Netflix. A segunda temporada da série sobre o reinado de Elizabeth II, do Reino Unido, estreia dias depois do alarido em torno do anúncio do noivado do neto e príncipe Harry com a atriz norte-americana Meghan Markle e enfatiza justamente a crise conjugal entre a monarca e o marido provocada pelas formalidades do cargo. Na vida real, as regras impostas à futura integrante da realeza - entre elas, o abandono da carreira - dão pistas de como a tradição exerce influência sobre as liberdades individuais. Na continuação do seriado, a percepção sobre essa ingerência é escancarada e permite constatar como o poder emanado da coroa é aparente quando o assunto é o próprio arbítrio. Dentro e fora da ficção, a instituição do casamento é alegoria tanto dos limites da monarquia quanto da opressão masculina à época.

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A trama avança em meio ao imbróglio diplomático enfrentado pela Inglaterra com a decisão desastrosa de entrar na guerra pelo controle do Canal de Suez, passagem entre o Mar Mediterrâneo e o Vermelho avocada pelo Egito, em 1956. Ao fracasso da incursão bélica, responsável pelo desabastecimento de combustível em Londres e pelo desgaste do sucessor do estadista Winston Churchill como primeiro-ministro, o tíbio Anthony Eden, soma-se a preocupação da rainha com o paradeiro do marido. Duque de Edimburgo, Philip (interpretado por Matt Smith) embarca em uma viagem de "regeneração matrimonial" de meses pela marinha por territórios sob guarida da Commonwealth, aproveitada, no entanto, como cruzeiro de esbórnia entre nativos de comunidades tropicais.

Em meio ao caos político e conjugal, Elizabeth (Claire Foy) vive o paradoxo de ser uma figura forte e figurativa. Na política, é impedida de intervir em assuntos de estado porque a constituição delega a ação ao parlamento. No casamento, é obrigada a engolir traições para manter a aparência de uma união feliz e evitar escândalos. A série edifica os dilemas sobre a interpretação fabulosa da atriz, vencedora de um Globo de Ouro pela atuação. Ela é hábil em transitar rapidamente da confiança e alegria à frustração e decepção apenas com leves mudanças no semblante. Às vésperas de se despedir do papel - Olivia Colman assume na próxima temporada -, ela encarna uma rainha compelida ao único caminho aparentemente cabível às monarquias contemporâneas: a ação nas sombras ou a resignação, condutas elencadas como qualidades pela personagem na série.

Ao jogar luz sobre o matrimônio, The crown arrasta para o debate as vicissitudes do divórcio - tema caro à história da família real - e do machismo, confrontado com mais ardor desde meados do século 20. A dificuldade de lidar com a separação e as consequências dela, aliás, está na gênese da coroação de Elizabeth, só içada ao cargo após a morte do pai, George VI, tornado rei quando o irmão, Eduardo VIII, abdica do trono para ficar com uma mulher divorciada - barreira social ao ingresso na realeza. A série constrói bem a ojeriza da rainha e da própria sociedade inglesa à dissolução conjugal e retrata como uma questão de foro íntimo se torna uma questão de estado mais afeita a medidas de governo e menos a soluções afetivas. A gravidade da situação é bem delineada pela densidade dos diálogos exibidos na série, íntimos a ponto de se indagar o quanto de veracidade eles contêm ou como foram constituídos diante da privacidade defendida pela coroa. Façanha na conta do criador do seriado, Peter Morgan, exímio conhecedor da realeza e nome por trás de obras como A rainha (2006), A outra (2008) e Henrique VIII (2003).

Os conflitos encontram peso adicional pelo desempenho impactante do duque de Edimburgo apresentado por Matt Smith. O ator forja um Philip infantilizado e bagunçado dentro de uma situação matrimonial às avessas em uma sociedade machista caracterizada pela submissão da esposa: ele não é dono das próprias ações, vive à mercê da agenda da mulher e precisa seguir uma série de instruções sobre como se portar. A "inversão de papéis", atrelada às amarras do protocolo e ao desprezo do alto escalão do governo, implode a convivência com Elizabeth. Indignado, ele assume ares de vilão e usa as benesses da monarquia contra o próprio regime, ao se valer dos recursos disponíveis (como a frota marítima real) para dar vazão a um estilo de vida regado a boemia e mulheres.

O atrito entre os dois só é amenizado quando a rainha aceita conceder ao duque um título outorgado aos príncipes. A saída pragmática revela outro traço da família: a capacidade de transformar costumes, quebrar protocolos e se adaptar para sobreviver. Nos cem últimos anos, a metamorfose do é um traço característico da monarquia inglesa (e de outras sobreviventes, como a sueca e a espanhola), retratado com propriedade na série documental A Casa Real de Windsor (Netflix). Entre as mudanças realizadas no século, estão a troca de nome para disfarçar a origem alemã, a aproximação com o povo e a diminuição dos gastos.
Só a virtude camaleônica tornou possível a compatibilidade com ares modernos e - para ficar na crítica questão dos arroubos afetivos - o anúncio do casamento entre o príncipe Harry, quinto na linha de sucessão ao trono, com uma atriz de origem afro e divorciada - condição intolerável, décadas atrás, para acolhida no seio da realeza, como evidencia com propriedade a segunda fase de The crown.

THE CROWN
Dez capítulos da segunda temporada disponíveis na Netflix

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