Reflexão 'Há preocupação com uma possível guinada autoritária no país', diz Clóvis de Barros Filho Para o cientista político, a sociedade, em grande medida, desconhece o funcionamento do Estado

Por: Fellipe Torres - Diario de Pernambuco

Por: Tiago Barbosa

Publicado em: 15/10/2017 22:01 Atualizado em: 15/10/2017 22:17

Clóvis de Barros Filho falou ao Viver sobre risco de "fim da democracia". Foto: Montagem/DP
Clóvis de Barros Filho falou ao Viver sobre risco de "fim da democracia". Foto: Montagem/DP
Ele é uma das bases do tripé com os pensadores brasileiros mais populares da atualidade. Ao lado do historiador Leandro Karnal e do filósofo Mario Sergio Cortella, percorre o país e protagoniza vídeos no YouTube com palestras e comentários sobre a vida, a felicidade, as inquietações da alma e do conhecimento - mas sem assumir o rótulo de guru, embora seja cultuado como guia por leitores e espectadores ao vivo e nas plataformas digitais. 

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Ao lado dos colegas, fermentou o pensamento brasileiro com uma miríade de livros cujo arco temático transita do capital e da ética à corrupção e à morte. Um dos mais recentes é Em busca de nós mesmos (Citadel, 400 páginas, R$ 32), escrito com o pesquisador Pedro Calabrez. De passagem pelo Recife para uma palestra da Positivo, o doutor em direito pela Sorbonne de Paris Clóvis de Barros Filho conversou com o Viver sobre o Brasil, a atualidade e fez reflexões alarmantes sobre bandeiras obscurantistas, como a “cura gay”, a instabilidade democrática no país e o avanço da intolerância.


Um dos temas que o senhor coloca com muita frequência nas suas manifestações é a questão da felicidade. Como é possível a gente ser feliz, hoje, diante de um ambiente de tanta intolerância? Vivemos tempos em que, por exemplo, a Justiça autoriza psicólogos para praticarem a chamada “cura gay”. Como é possível ser feliz em um ambiente de tantos avanços e retrocessos?
Acho que 99% da vida é com alguém por perto, interagindo, alegrando, sendo alegrado, entristecendo. É muito difícil imaginar, hoje, uma vida feliz em um espaço triste de convivência. Talvez no caso de alguém que viva remotamente, muito isolado, no meio rural... Mas, de maneira geral, se o espaço coletivo é de relações injustas, desonestas e intolerantes, a chance de haver felicidade para todo mundo diminui muito. Por isso, somos todos corresponsáveis por criar condições da convivência. Para isso, seria preciso que todos nós aprendêssemos que a busca de todos os nossos prazeres, ganhos e vantagens é um valor menor do que a preservação de uma convivência saudável. Acho difícil, mesmo. Essa questão de você associar uma preferência sexual a uma doença implica, para todos que têm essa preferência, uma tristeza, uma agressão. De certa maneira, denuncia um retrocesso. Então é aí que nós nos encontramos. Hoje em dia, as pessoas conseguem se manifestar com mais facilidade e a gente consegue diagnosticar com mais facilidade com quem a gente interage e como pensam as pessoas. E, às vezes, é muito surpreendente. 

Vivemos cercados de manifestações diárias de preconceitos de toda a espécie, tanto na internet quanto fora dela. Ao mesmo tempo, elas são combatidas nesses mesmos espaços, com a exaltação da diversidade sexual, por exemplo. O senhor acha que a gente caminha mais para a aceitação, a médio e longo prazo, ou essa polarização é inevitável, faz parte da natureza humana?
O que eu acho que não vai acontecer é todo mundo pensar igual. Isso não vai acontecer. Nem de um lado, nem de outro. Dadas as novas condições de manifestação e debate, as coisas tendem a continuar assim ou ainda mais acirradas. Tudo isso nos convida a uma profunda reflexão sobre que tipo de sociedade queremos para nós. Enquanto não tivermos muito claro para onde a gente quer ir, fica difícil tomar decisões no sentido de identificar os valores que valem mais. Porque os valores são complexos, eles são contraditórios. A título de exemplo, se a transparência é um valor evidente, a confidencialidade também é. Se a confiança é um valor óbvio, a desconfiança também é fundamental para a vida em um ambiente onde não somos todos muitos confiáveis. Se a disciplina é importante, o repouso também é. Poderia ficar dando exemplos eternamente para mostrar que, na hora de decidir, na hora do que importa mais nessa lógica do “cobertor curto”, precisamos ter uma ideia de para onde queremos ir como sociedade, como humanidade. E essa é uma discussão que não existe, uma discussão ausente. É muito comum a gente se estapear por impor o caminho que considera melhor, só que ninguém sabe para onde quer ir. Como pode um caminho ser julgado como bom se não sabemos exatamente o que queremos para nós como resultado, como consequência? Acho que esses enfrentamentos continuarão muito ríspidos e, talvez, hoje estejamos tendo uma ideia mais clara do que nunca na história do que significa a democracia - não enquanto representação dos governos, porque sabemos que isso é algo extremamente deficitário, mas enquanto diagnóstico do que pensam as pessoas diante dos problemas da agenda pública. Acho que o momento é, como sempre, muito auspicioso, muito interessante e muito perturbador e temerário. 

Como o senhor vê o papel da internet e das redes sociais nesse cenário? Melhorou, piorou?
Não há como dar uma resposta única. Acho que a internet faz mais do que descortinar o que estava escondido. A internet faz acontecer coisas que não existiriam sem ela. A titulo de exemplo, se eu te faço uma pergunta, a sua resposta só existirá porque eu estou aqui para te perguntar. Portanto, essa produção de discurso que você enuncia, ela tem como causa a minha pergunta. Então eu imagino que a possibilidade técnica de se manifestar em um espaço público faz acontecer uma produção discursiva e de ideias que sem a internet não existiria dessa maneira. A internet não é só um espelho mecânico de uma realidade que antes era dispersa, fragmentada. É uma nova condição de manifestação do espaço público que, de certa maneira, participa decisivamente do seu conteúdo. Você me pergunta se melhorou ou piorou... Não faço a menor ideia. É impossível fazer um diagnóstico. Porque a internet abriga coisas com as quais não concordo, como mentiras, injúrias, agressões, iniciativas que distorcem a realidade, e a internet também abriga manifestações cujo conteúdo não concordo, mas são manifestações ponderadas, honestas e bem articuladas. Tem de tudo. 

O senhor mencionou a democracia, que neste momento, no Brasil, passa por um período delicado. Diante de tantos escândalos políticos, existe um risco de o cidadão comum incorrer em uma flexibilização da ética, do reforço do jeitinho brasileiro? Como o cidadão pode ficar cada vez mais seguro no que ele acredita e não se deixar levar por essa onda de corrupção que toma conta não somente do âmbito político, mas também das ações cotidianas?
A nossa sociedade é marcada por muitas desigualdades. Elas são econômicas, mas são também de formação, escolaridade, repertório e, evidentemente, nós poderíamos estabelecer uma relação entre maturidade intelectual de um lado e uma certa tendência à consistência de seus próprios pontos de vista. E, assim, sendo a sociedade o que é, haverá de tudo. Haverá quem não se deixe abalar pelos humores dos acontecimentos e quem mude de ideia a cada minuto. Acho que há, sim, grande risco - e achei que era essa a pergunta - de as pessoas optarem pelo fim da democracia. Na hora em que as pessoas se apresentam reivindicando a intervenção de forças que implicariam, por exemplo, no fechamento do Congresso. Claro que tudo pode se tornar popular, porque você pode fazer acreditar que tudo é inútil, que as instâncias democráticas são ineficazes, inócuas: “Não vamos mais gastar dinheiro com políticos e isso vai ser melhor para todos. Vamos apelar para um regime sem representação, de viés mais autoritário”. Acho que há essa chance. A democracia abriga essa  possibilidade de candidaturas hostis a ela mesma. Penso que isso é um dos risco que a gente corre com o atual cenário de fragilização de algumas instituições.

É consequência da falta de conhecimento da sociedade sobre os mecanismos democráticos? É possível tomar atitudes que evitem esse desfecho? Como ativar os alertas?
Em um primeiro momento, você vai ter eleições presidenciais, e as candidaturas são muito diferentes umas das outras. Muitas serão respeitadoras do jogo democrático. Talvez, algumas não. Cabe à sociedade fazer suas escolhas e, sobretudo, debater, anotar sobre os riscos dessa ou daquela opção. Afinal de contas, foi tão difícil a conquista da democracia... Tenho a impressão de que uma população marcadamente jovem entenda nosso passado recente como páginas de um livro de história. Mas, para quem, como eu, viveu sem plena liberdade de expressão, não é livro de história, é experiência, memória. Há, sim, preocupação com uma possível guinada autoritária no nosso país. 

A sensação que se tem é a de que o passado começa a ficar diluído com uma velocidade mais rápida. Algumas pessoas não sabiam como se manifestar politicamente... E a internet muda isso, as pessoas se manifestam nas redes sociais. Até pouco tempo, parece que tinham outra opinião. Como fica isso? Parece que é tudo muito descartável. 
Não sei dizer até que ponto a internet é responsável. Seria preciso observar que a nossa sociedade em grande medida desconhece o funcionamento do Estado, de maneira geral. Ela não tem no ensino mais fundamental o aprendizado necessário para entender como o Estado funciona. Então a lógica do jornalismo é contemplada pelo cidadão sem os referenciais necessários para uma interpretação mais profunda. E, aí, como o jornalismo muda dia a dia, a coisa fica muito à mercê do chamado acontecimento, da notícia. E essa notícia não é referencializada, classificada em função de um aprendizado anterior a respeito das instituições, dos processos eleitorais, das formas de seleção dos nossos governantes, das relações entre o legislativo e o executivo. Tenho a impressão que isso explica um pouco dessa mudança muito abrupta de ponto de vista a cada instante. Se você imaginar que um presidente possa, há algum tempo, ter as mais altas cotas de popularidade, e seu sucessor entrar também com o mais alto pico de popularidade para um presidente que o sucede no mesmo partido... A maneira como o índice de popularidade sobe e desce de maneira muito rápida indica a frágil adesão programática e ideológica das candidaturas. E isso indica um baixo grau de politização, de desconhecimento das propostas, dos programas. 

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