Diario de Pernambuco
Busca
Literatura 'Mais do que ler, é preciso ler bons livros', defende escritora argentina María Teresa Andruetto lança no Brasil o volume de ensaios A Leitura, Outra Revolução

Por: Cecília Emiliana - EM Cultura

Publicado em: 30/10/2017 15:00 Atualizado em:

María Teresa Andruetto é autora de 15 obras voltadas para o público infantil. Foto: CCEC/Divulgação
María Teresa Andruetto é autora de 15 obras voltadas para o público infantil. Foto: CCEC/Divulgação

A leitura, outra revolução, livro da argentina María Teresa Andruetto recém-lançado em português pelas Edições Sesc, reúne 12 ensaios sobre literatura que escancaram a relação íntima da autora com histórias e palavras. Exposta de forma simples e sincera, dá ao leitor a impressão de estar diante de um baú de recordações encoberto por muitos resíduos emotivos.

Quer receber notícias sobre cultura via WhatsApp? Mande uma mensagem com seu nome para (81) 99113-8273 e se cadastre

Única latino-americana a ganhar o prêmio Hans Christian Andersen, a escritora e professora cordobesa de 64 anos também dá pistas, nesta obra, de como suas vivências infantis não só determinaram suas escolhas profissionais como foram o embrião de muitos de seus livros. "Eu me criei em uma casa onde havia relatos, uma casa em que se contava, de mil maneiras, com muitos detalhes, a vida dos meus antepassados – povos distantes que haviam chegado à América se arriscando, ou por terem perdido ou ganhado tudo. Contava-se o extraordinário que habita em cada um de nós, o extraordinário da vida mesma", diz um trecho de A própria vida, primeiro ensaio do livro. A cena familiar inspiraria Lengua madre (2010), sem tradução para o português, em que María Teresa reflete sobre suas raízes e memórias da ditadura militar argentina.

Militante da educação literária, a escritora defende que "é preciso tirar o aspecto milagroso da leitura", que, por si só, não é salvadora. "Mais do que ler, é preciso ler bons livros". Autora de 15 livros para crianças, a argentina defende ainda uma literatura infantil "sem adjetivos" e liberta de estereótipos. "Meus livros para os pequenos não são, para mim, trabalhos que implicam uma experiência diferente da de escrever para adultos. Não me proponho, ao escrevê-los, a mais do que isso: viver e proporcionar uma experiência de linguagem", diz, em entrevista. Na mesma entrevista, ela fala sobre o papel da família e do Estado na formação de leitores e da literatura como instrumento revolucionário, capaz de gerar perguntas e reconectar as pessoas com sua condição humana.

Entrevista // María Teresa Andruetto, escritora

A edição brasileira de A leitura, outra revolução traz uma frase enigmática sua: "As portas que se abrem trazem consequências". É uma promessa ou uma advertência?
As duas coisas, talvez. Em se tratando de leitura, seria, a princípio, uma promessa: quem se converte em leitor acrescenta à sua experiência e expande sua consciência. Mas, de algum modo, também é uma advertência sobre o quanto é importante estarmos conscientes de nossos atos. Tudo o que fazemos ou desejamos fazer tem consequências. Estar atentos ao que fazemos nos torna responsáveis. Mas é no compromisso com os outros e na responsabilidade que reside, como diria a personagem central do meu romance Lengua madre, boa parte da estremecedora beleza da vida.

A senhora argumenta que não basta ler; é preciso ler bons livros. De que é feito um bom livro, na sua opinião? Best-sellers como os da saga Harry Potter, por exemplo, se enquadram nessa categoria?
Um bom livro não o é para todos. Um bom livro é aquele que, para além de suas qualidades literárias, chega à nossa vida em um momento oportuno, quase sempre pelas mãos de alguém que gosta de nós, nos valoriza. Pode ser que, numa determinada idade ou momento, uma obra nos pareça excepcional e nos abra muitas portas. Anos depois, contudo, ao relermos essa mesma publicação, pode ser que ela não nos cause impacto. Ou o contrário.

Mas eu diria que um bom livro é, sobretudo, aquele que nos leva a expandir nossa experiência, conhecimento e sensibilidade; que não nos deixa inertes, que questiona nossas emoções, pensamentos, preconceitos, nos leva a pensar e sentir o que talvez nunca havíamos pensado ou sentido. Um bom livro se diferencia de muitos outros que lemos, que se demora em nós e que resiste ao esquecimento. Ler é habitar de modo virtual algumas vidas e condições que não são as nossas, mas que, por um momento, assumimos como nossas. E um livro excepcional (há muitos livros bons, mas poucos excepcionais) nos proporciona uma experiência também excepcional.

Por outro lado, sempre penso na leitura como projetos atravessados, tangidos não só pela qualidade, como também pela diversidade. Um bom leitor é alguém que lê intensamente, com certo afã exploratório, assumindo seus riscos. Alguém que, à medida que cresce como leitor, desenvolve um modo de ler mais complexo. Não tenho nada contra a saga Harry Potter, pode ser uma boa experiência de leitura para uma criança ou um jovem, apesar de que, sim, tenho minhas críticas à "Harrypottermania", ao menino viciado nesses livros e em outras sagas do gênero. É preciso que ele saiba que há outras leituras, porque ler é poder ir de um livro a outro. Finalmente, falando agora das instituições de ensino, para mestres e professores, gostaria de dizer que, quando estamos nessa condição, construindo um espaço de leitura com crianças e jovens, sempre me pareceu boa estratégia trabalhar com obras que vão "na contramão do mercado". Isso significa deixar de lado os livros que talvez cheguem às mãos dos alunos de qualquer maneira, por força da publicidade, para oferecer publicações pouco divulgadas, seja porque seus autores são menos conhecidos ou porque se trata de gêneros menos visitados ou ainda porque foram publicados por editores pequenas.

Como educadora, o que considera um bom programa de leitura e o que é justo esperar dele?
Um bom programa de leitura seria, para mim, aquele que gera, sobretudo nos estabelecimentos de educação, bibliotecas e centros culturais de um país, região ou cidade, um espaço "vazio de outras questões e demandas". Que perdure, que seja perene, em que crianças e jovens possam se encontrar – com o auxílio de um mediador, professor ou bibliotecário ou outro fervoroso adulto leitor – com livros diversos, de diversos gêneros, autores, assuntos e linguagens. Um projeto que permita a seus participantes deixar-se impregnar por essas leituras, falar sobre os livros, aceitá-los, discutir com eles, rechaçá-los, mergulhar nesse universo de múltiplas vozes e olhares que a literatura oferece, em contraposição a uma voz única, monolítica.

A senhora cita a necessidade de nos livrarmos das amarras da literatura infantil e centrá-la num trabalho com a linguagem. Quais são essas amarras e como as suas obras infantojuvenis procuram se libertar delas?
Refiro-me a toda a quantidade de estereótipos e preconceitos que atravessam o que se publica para crianças e jovens, um conjunto de livros condicionados pelo "desejo de proteger o leitor" e que, por isso, são incluídos nos currículos escolares, nas necessidades práticas dos mestres e na "utilidade temática". Há uma sombra que ainda tem muito peso, que é: "Esse livro seria adequado para a escola? O professor poderá utilizá-lo para ensinar o quê? Crianças de alguma faixa etária ficarão impressionadas ao ler isto?". Essa sombra paira sobre os livros editados em coleções para crianças e adolescentes, sobre editores e, o que é mais grave, muitas vezes sobre escritores e ilustradores.

O que faço é um chamado para pensarmos na linguagem, no fato de que o texto literário é desobediente, apresenta um desvio do esperado, do convencional, do uniforme, do aceito. O texto literário é disruptor e, apenas porque é assim, promete, possibilita um caminho em direção à própria "coisa", como dizia Clarice Lispector – à própria de quem escreve e de quem lê, seja qual for essa coisa a que cheguemos.

Quanto às minhas obras, meus livros para crianças não são, para mim, trabalhos que implicam uma experiência diferente da de escrever para adultos. Não me proponho, ao escrever essas publicações, a mais do que isso: viver e proporcionar uma experiência de linguagem. Esqueço-me dos possíveis destinatários dos meus textos. O que desejo é levar o leitor à "própria coisa"; é descer ao inesperado. O máximo que eu puder.

A leitura, outra revolução
Autora: María Teresa Andruetto
Editora: Edições Sesc (167 págs.)
Preço sugerido: R$ 45

Acompanhe o Viver no Facebook:




MAIS NOTÍCIAS DO CANAL