HQ Chega ao Brasil a graphic novel Aqui, de Richard McGuire Obra é considerada revolucionária pela maneira de se narrarem histórias com imagens e um poético conto sobre a passagem do tempo

Por: Pablo Pires Fernandes - Estado de Minas

Publicado em: 01/10/2017 09:43 Atualizado em: 30/09/2017 01:13

Quados de diferentes obras são sobrepostos, criando narrativas paralelas. Foto: Cia. das Letras/Reprodução
Quados de diferentes obras são sobrepostos, criando narrativas paralelas. Foto: Cia. das Letras/Reprodução
Em algum momento da década de 1980, o artista norte-americano Richard McGuire teve uma ideia brilhante. Sua história em quadrinhos Aqui, publicada na revista Raw, em 1989, tinha seis páginas, cada qual dividida em seis quadros. O trabalho não causou muito impacto, pois estava acompanhado de obras de mestres do gênero. A ideia de McGuire, porém, era singular. Todos os quadros tinham o mesmo ponto de vista, como uma câmera fixa em um tripé. A narrativa ocorre apenas a partir de mudanças temporais. Mas ele inseriu janelas temporais sobrepostas, sem mudar o cenário e o ponto de vista. Isso foi revolucionário.

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Foram necessários 25 anos para que a genialidade da ideia de McGuire fosse reconhecida. Em 2014, publicou nos Estados Unidos uma nova versão de Aqui, com 300 páginas e colorida. Embora o cerne conceitual – de uma única perspectiva espacial e variações temporais – estivesse nas seis páginas publicadas em 1989, a nova versão causou impacto monumental e já é considerada obra-prima entre as graphic novels. Essa pérola gráfica acaba de chegar ao Brasil pelo selo Quadrinhos na Cia., da Companhia das Letras.

McGuire sempre gostou de arte, mas foi por meio da música que sua vocação criativa veio à tona de maneira profissional. Entre 1980 e 1983, integrou a banda no wave Liquid Liquid tocando baixo. As artes gráficas, paixão que sempre cultivou, andavam em paralelo, o que o levou a trabalhar com animações para TV. Depois de publicar a versão de seis páginas de Aqui, percebeu que ali tinha algo passível de ser desenvolvido. No entanto, um convite para dirigir um longa-metragem de animação na França o levou a Paris. “Achei que era uma grande oportunidade e topei, apostando que trabalharia paralelamente no livro, o que acabou sendo impossível”, diz. Um filme se tornou dois e permaneceu em Paris, adiando o projeto do livro e a volta aos EUA.

“O que me fez retornar aos EUA foi que meus dois pais ficaram mal de saúde e então voltei para ajudá-los. Ambos morreram pouco depois. Tinha muita coisa para resolver. Eles moravam na mesma casa onde cresci e ela precisava ser esvaziada e vendida. Foi nessa época que cogitei voltar ao projeto do livro e comecei a pensar em usar essa casa como cerne do livro. O projeto era um peso pra mim. Sabia que tinha que encará-lo. Foi uma tarefa difícil, mas eu sabia que ia valer a pena.”

Antes de se entregar de fato ao projeto de Aqui, publicou algumas histórias, colaborou como ilustrador para revistas e lançou seis livros, quatro deles infantis. O autor conta que realizar Aqui lhe exigiu grande esforço e muito trabalho. Valeu a pena. Trata-se de uma obra revolucionária e representa, sem dúvida, uma ruptura na linha evolutiva da arte sequencial. A partir da ideia de manter um único ponto de vista, McGuire se dedica a explorar o tempo como elemento narrativo fundamental, recuando a 80 milhões de anos atrás e avançando até 2213. No entanto, boa parte da narrativa se passa em uma sala de visitas, cujo único elemento constante é uma lareira.

Ao fixar um único ponto de vista, McGuire elaborou uma série de histórias, deixando de lado um determinismo e causa e efeito. As relações de sentido, cuidadosamente elaboradas pelo autor, chegam ao leitor como se fossem um mero acaso ou, para quem quiser, algo predestinado, como a circularidade do tempo. A estrutura da obra se assemelha a uma partitura musical, com temas recorrentes e linhas narrativas que ora seguem paralelas ora se cruzam. O autor também utiliza a cor como elemento de linguagem, explorando-a para destacar a passagem do tempo através de cores análogas. Assim, cada época tem seu próprio tom. A constante evolução tonal evoca a ideia de que aquele momento congelado pela imagem traz rastros do passado e se relaciona com o futuro.
 
A obra de McGuire tem abrangência indescritível. Sem sair do lugar, o livro conta a história de uma terra e de um país, de um tempo anterior à existência humana e à chegada dos colonizadores europeus, retratando diversos momentos do século 20 e projetando um futuro cheio de mistério. A obra é capaz de estabelecer conexões verbais ou visuais que formam unidades sintáticas próprias e, ao mesmo tempo, dialogam com o todo. A narrativa é ainda uma lição de ritmo e potência visual que carrega melancolia e romantismo. Aqui é um marco histórico na maneira de se contarem histórias com imagens. Mas, sobretudo, é uma belíssima reflexão sobre a passagem do tempo e da finitude da vida.

Em entrevista por e-mail, Richard McGuire fala sobre seu processo de criação, suas influências e revela a visão de mundo de um artista inquieto e dedicado.

A essência de Aqui já estava na versão de 1989. Como a ideia evoluiu até a nova versão?
Levei cerca de seis meses para fazer as seis páginas originais. Não era capaz de alongar a história ou dizer algo mais, já foi uma luta fazer aquilo. Não continuei com os quadrinhos e segui fazendo muitas ilustrações e alguns livros infantis. Em 1999, achei que deveria voltar à ideia de Aqui e fazer uma graphic novel. Sabia que o tema tinha potencial para ser expandido. Só que, então, fiquei dando de cara com a parede e todas as tentativas fracassaram. Não achava a maneira certa de fazer. Não queria meramente acrescentar mais páginas às originais. Comecei a duvidar de mim mesmo e achar que aquilo, no final das contas, não era uma boa ideia.

Como você saiu desse impasse?
Primeiro, fiz uma maquete de papelão de um cômodo. Queria testar umas pinturas e quis que a maneira de a luz entrar pela janela fosse correta. Assim que juntei as duas paredes, percebi que eram como duas páginas opostas. Foi um grande salto perceber que a única imagem do cômodo poderia ser impressa em duas páginas, usando a dobra da página como a quina do cômodo. Então, o livro se tornou arquitetônico. Quando você o abre, você entra naquele espaço. Daí, eu me inscrevi numa bolsa para escritores, para pesquisar mais, o que felizmente deu certo. Isso me deu tempo. Gastei um ano só pesquisando e levei cerca de três anos no total para fazer o livro.

A história tem a ver com a sua própria vida?
Não é autobiográfica, apesar de eu fazer algumas aparições. Minha família e muitos dos meus amigos estão no livro, mas todos são coadjuvantes. Na história original, também usei várias fotos de família, mas não eram baseadas em um lugar real. Deixei aquilo ambíguo de propósito para que o leitor pudesse se projetar na história. 
 
E como foi o processo criar essa nova história a partir daquelas seis páginas?
Tive que começar do zero. Tinha o esqueleto da estrutura, mas precisei pequisar muito e depois encaixar tudo como num quebra-cabeças gigante. Mais uma vez, houve momentos de duvidar de mim mesmo. No começo, achei que deveria focar em personagens que conduziriam a história. Tive que ficar voltando à questão: “Sobre o que é essa história?”. É sobre a passagem do tempo, correndo adiante como um rio. Não tinha certeza se essa grande colagem funcionaria em 300 páginas. O que funciona na versão de seis páginas é o ritmo dela. Queria me aproximar daquilo, mas tive que fazer mudanças temporais e foi quando a estrutura começou a ficar mais musical e quando senti que formava um todo.

Como você sente a passagem do tempo e como isso reflete nesse trabalho?
Estou feliz que levei um tempo para fazer esse livro. Tive mais experiências de vida para acrescentar nele e vejo o tempo de maneira diferente do que quando fiz a história de seis páginas. A vida não é uma linha reta, nós viajamos no tempo constantemente, nossos cérebros ficam alternando entre memórias e projeções futuras milhões de vezes ao dia. Vejo tantos ciclos e padrões na minha vida se repetindo de formas singulares e inesperadas. Pessoas do passado aparecem repetidamente. Quase sempre é intenso quando isso acontece, como se devêssemos aprender com essas comparações, essas coincidências do destino. Vou fazer 60 anos e não consigo acreditar, me sinto pelo menos 20 anos mais jovem do que sou, mas é importante “saber a real”, não faço de conta que sou mais jovem do que sou. Tenho orgulho da minha idade e nunca me senti mais centrado na minha vida do que agora.

Como o afeto está presente nesse livro? 
Afeto é uma boa palavra. Creio que tendo a prestar atenção aos detalhes. Uma leitora me disse que o livro a fez pensar na expressão japonesa mono no aware, que pode ser traduzida literalmente como o pathos das coisas ou pathos para as coisas (ou ainda, uma sensibilidade para as coisas efêmeras). Parece-me correto. Há certa melancolia permeando o clima do livro, o sentido de que nada é permanente. Diante de uma visão tão extensa, nossas próprias vidas parecem relativamente curtas. Isso pode ser visto como algo triste ou pode lhe tornar mais atento ao momento e fazer você desfrutá-lo melhor.

Construir uma narrativa mais longa implica criar histórias paralelas, que estão presentes no livro. No entanto, não me parece que há preocupação em concluí-las.
Eu tinha muitos temas para a história, vários deles eu não coloquei no livro. Fiquei tentando equilibrar as coisas e colocá-las no lugar certo até o último minuto e adiei o quanto meus editores permitiram. Antes disso, já tinha feito a escolha arbitrária de que o livro deveria ter 300 páginas e, depois, ir descobrindo o espaço para as histórias que se impuseram no livro. Qual história é de fato concluída? Talvez quando alguém morre você possa ter uma dimensão da vida dela, mas, mesmo nesse caso, pode haver uma “história posterior”. Como William Faulkner disse: “O passado nunca está morto. Não é nem passado”.

Nas duas versões, existe um gato. Ele ou ela existe de fato? Como se chama?
Desculpe-me, o gato não tem nome. Foi criado como um sinal para ser visto muito rapidamente em silhueta, com o mesmo propósito que uma placa de estrada é feita para ser lida, como uma seta curva que avisa que existe uma curva adiante. Foi para alertar que uma mudança de tempo teve início. O gato, na minha história inicial de seis páginas, é um gato do futuro. No livro, anos depois, se tornou um gato do passado e a posição ou direção dele se virou para o lado oposto. 

O livro tem muitas referências a artistas e a obras de arte: Vermeer, Monet, Hitchcock etc. Como foi sua formação artística e como incorpora isso nos quadrinhos?
Incluir Vermeer foi só uma piada artística para mim mesmo. Descobri que ele fez duas versões do quadro Mulher de azul lendo uma carta. Imaginei que seria engraçado que ambos estivessem pendurados por pessoas diferentes no mesmo lugar, um como uma reprodução e o outro como o cartaz de uma exposição. Depois que o livro foi publicado, achei um caderno que minha mãe tinha me ajudado a fazer quando eu era criança, com uns 5 ou 6 anos. Minha mãe era bibliotecária e gostava de alimentar os interesses dos filhos, ela sabia que eu adorava arte, então, ela começou este caderninho para mim. Ela achava imagens de pinturas famosas em revistas, as recortava para que eu colasse no caderno e me ajudava a escrever o nome do artista embaixo. Fiquei espantado ao ver uma dessas pinturas do Vermeer no caderninho da minha infância. Devo tê-la escolhido subconscientemente. Outra evidente influência foi Edward Hopper, cujo trabalho tem um tom melancólico presente no livro. Tive uma estranha conexão com o trabalho dele quando estava trabalhando na capa do livro. Eu sabia que queria uma janela e tirei fotos de um prédio no meu bairro que tinha a ver com o que queria e, mais tarde, soube que o próprio Hopper tinha pintado aquele prédio. São muitos os artistas que me influenciaram, mas, para este livro, especificamente o fotógrafo Saul Leiter foi muito importante. Eu salvava imagens dele ao longo dos anos e descobri, depois de tempos, que um amigo meu tinha sido um de seus assistentes. Nunca tínhamos falado sobre isso, mas, quando descobri, pedi a ele para nos apresentar. Tive muita sorte de passar uma longa tarde com ele. No ano seguinte ele morreu, aos 90 anos. Saul era um fotógrafo que começou como pintor e é nítida sua preocupação com textura e cor. Citei parte de uma de suas fotografias no livro e usei no texto uma frase que ele me disse. Não me considero um quadrinista, sempre me senti livre para trabalhar com diferentes meios, não quero me limitar a um.

O cinema também é uma arte sequencial que tem imagem e texto. O uso de quadros internos e saltos temporais que você faz tem a ver com isso? Há referências ao cinema? A Godard, por exemplo?
Fiquei comovido quando descobri Godard e o considero um mestre. Amo seus jump-cuts (cortes abruptos), sempre surpreendentes e vívidos. As histórias dele e todas as atuações parecem soltas e quase improvisadas, mas ele também é muito formalista no sentido de composição, o que gosto muito. Dos trailers que ele faz às sequências de títulos, tudo é precisamente composto e admiro seu estilo como um todo. Morei numa rua em Paris onde ele filmou muitas cenas de Acossado. Comprei uma cópia do filme para assistir em câmera lenta e ver meu prédio passando. Gosto de muitos diretores e ele é apenas um deles: Stanley Kubrick, Robert Altman, Andrei Tarkovsky, Wong Kar-Wai. Pedro Almodovar, Terrence Malick, Krzysztof Kieslowski, Buster Keaton estão entre os meus favoritos, mas poderia continuar a lista indefinidamente.

Como sua experiência como músico se relaciona com o livro?
Ter experiência como músico me ajudou na construção do livro ao intuitivamente perceber o ritmo da história. Música é a área em que me sinto mais próximo de ser um artista, sou autodidata, não leio música e faço tudo na base do feeling. A única maneira que a construção do livro fez sentido para mim foi criá-lo como uma grande colagem. Coloquei todas as páginas nas paredes do meu ateliê e comecei, inicialmente, a “lê-lo” como se fosse uma partitura musical, uma grande peça. Então, pude perceber os ritmos internos. Onde era preciso uma batida extra eu acrescentava algo ou reduzia ou acelerava alguma coisa. Tem uma frase no livro sobre como sua mente é tipo uma jukebox, sei que a minha é e presumi que a de todo mundo era assim. Quando você começa a cantar uma música para você mesmo, existe alguma razão pela qual você pinçou aquela letra, isso diz muito sobre seus pensamentos subconscientes. As letras que citei no livro foram imaginadas como parte de uma consciência coletiva, são todas tiradas da música popular, a última foi de uma canção infantil. Todas estão relacionadas ao tempo. Letras de música devem ser armazenadas em uma parte diferente do cérebro, dizem que pessoas com mal de Alzheimer ainda conseguem se lembrar de canções. Por que isso ocorre? Talvez as memórias musicais fiquem guardadas nos músculos. Cada meio é capaz de nos tocar de maneiras distintas e expressar coisas que outros não podem. Música pode ser tão emocional. Música traz tanta carga emocional no cinema, mesmo quando seu propósito é ser apenas o fundo ela mexe nas emoções. O que é a música, afinal? Vibrações que tocam nossos corações e mentes? É misterioso o fato de todos nós respondermos à música. Seres humanos aparentemente precisam de música. E também têm a necessidade de compartilhar histórias. 

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