Artes cênicas Hermilo 100 anos: Reconhecido nacionalmente, Hermilo Borba Filho valorizou cultura popular do Nordeste Artista passou por vários grupos ao longo da sua trajetória e teve no Teatro Popular do Nordeste (TPN), nos anos 60, o amadurecimento de sua produção

Por: Isabelle Barros

Publicado em: 08/07/2017 16:12 Atualizado em: 07/07/2017 17:40

Hermilo Borba Filho tinha grande capacidade de trabalho e era conhecido por ser um leitor voraz. Crédito: Cepe/Divulgação
Hermilo Borba Filho tinha grande capacidade de trabalho e era conhecido por ser um leitor voraz. Crédito: Cepe/Divulgação

A paisagem interiorana do Engenho Verde, no município de Palmares, não faria ninguém adivinhar que um dos maiores teatrólogos pernambucanos nasceram em suas terras. No dia 8 de junho de 1917, nasceu Hermilo Borba Filho, que conseguiu reconhecimento nacional como diretor, dramaturgo, escritor e tradutor e, principalmente, como um apaixonado pelas possibilidades artísticas que sua terra, Pernambuco, poderia gerar.

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A Palmares que viu Hermilo Borba Filho nascer se tornou, logo cedo, pequena para comportar seu talento - embora tenha dado a ele experiências inesquecíveis, impressas em várias de suas peças e livros ficcionais. Aos 18 anos, o dramaturgo, encenador e escritor se instalou definitivamente no Recife, cidade que impulsionou sua carreira teatral. Bem recomendado a partir de sua experiência cênica na terra natal, logo se enturmou com o Grupo Gente Nossa e com Valdemar de Oliveira, fundador do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), já um teatrólogo influente na cidade.

Aos poucos, tomou consciência do que queria: mais do que encenar os clássicos burgueses do TAP, o jovem Hermilo sentiu um apelo crescente para ver, nos palcos, o que podia ver na vida. Os espetáculos populares, plenos de habilidade artística refinada por brincantes ao longo de décadas, o atraíram e se tornaram um farol para o que ele gostaria de realizar dali por diante. Tratar do universal a partir do local: este se tornou o lema do artista. Ainda jovem, seu entusiasmo crescente com a cultura popular fez com que um grupo de estudantes da Faculdade de Direito do Recife - Ariano Suassuna incluído - o convidassem para um projeto especial: a criação do Teatro do Estudante de Pernambuco.

De acordo com o jornalista e pesquisador teatral Leidson Ferraz, o diferencial do TEP, na época, foi o de entender que as apresentações teatrais não deveriam ficar restritas aos palcos, especialmente os do Teatro de Santa Isabel, a casa do Teatro de Amadores de Pernambuco e da elite. "O grupo tenta divulgar com outras plateias. Hermilo promoveu debates sobre a cultura popular, convidando pessoas como Barreto Júnior para falar sobre comédia. Esses encontros foram muito significativos. Muitas vezes as pessoas nem reconheciam esses artistas de subúrbio como artistas cênicos. Se Hermilo estivesse no eixo Rio/São Paulo, seria um dos homens mais reverenciados do teatro brasileiro. Até hoje, as pessoas fazem teatro bebendo na fonte dele, especialmente quem atua no palco inspirado no cavalo marinho e nas manifestações populares”.

A penúria financeira do TEP, que não cobrava ingressos, e a própria diversidade de interesses dos estudantes dissolveram o grupo e Hermilo aproveitou a oportunidade para passar uma temporada em São Paulo, onde comtinuou seu exercício de crítico de teatro já experimentado no Recife. Lá, conheceu cartazes como Dercy Gonçalves, Sérgio Cardoso e Nydia Lycia, mas não se satisfez artisticamente. Voltou ao Recife, onde foi recebido novamente pelo TAP, desta vez como encenador.

A partir das reflexões amadurecidas pelo tempo que passou em São Paulo, Hermilo decidiu montar um grupo de teatro profissional que trabalhasse com alta qualidade cênica e, ao mesmo tempo, valorizasse os saberes dos artistas populares que se apresentavam em ruas e praças de Pernambuco. Daí surgiu, em 1960, o Teatro Popular do Nordeste (TPN). Este foi um salto não apenas para a produção do artista, mas do Recife como um todo. Textos clássicos eram reinventados por meio da mente de Hermilo, relacionando-os com o contexto político e social de Pernambuco na época.

Uma das testemunhas oculares desse processo foi o ator e diretor José Pimentel. Antes mesmo de se consagrar nos palcos locais como Jesus Cristo, o artista se dividia entre seu trabalho como galã na TV e no Teatro Popular do Nordeste. "Fui chamado já na primeira fase do TPN, mas houve uma parada e voltei com A pena e a lei, de Ariano Suassuna, um espetáculo muito comentado. Eu discordava de Hermilo porque ele fazia leituras de mesa até a exaustão. Não gostava, mas era seu jeito. Aprendi coisas que me serviram quando dirigia minhas peças. Tínhamos muito respeito um pelo outro. Quando ele adoeceu, me chamou para dirigir um último espetáculo do TPN, chamado BOOM, também conhecido como O auto do Salão do Automóvel, de Osman Lins. Até tomei um susto, mas ele tinha plena confiança em mim. Nunca se meteu nas minhas decisões. Osman foi ver o ensaio e criticou muito minha condução, mas Hermilo me defendeu. Ainda hoje guardo as cartas de ambos".



Leda Alves, de 86 anos, hoje secretária de Cultura do Recife e viúva de Hermilo, fez parte do elenco do TPN e é uma divulgadora incansável do pensamento do marido. Segundo ela, para fazer parte do TPN, eram preciso três coisas: talento, ser ator ou atriz e ter compromisso político - não necessariamente partidário. A ênfase no comprometimento era necessária por conta das perseguições que o grupo sofreu a partir do início da ditadura militar, em 1964. A escolha dos textos, como O santo inquérito, de Dias Gomes, e Antígona, de Sófocles, também expressava uma consciência política voltada para a defesa da liberdade e da justiça, mesmo com a marcação cerrada da censura.

Segundo Leda, a seriedade e a capacidade de trabalho de Hermilo se uniam ao seu temperamento agregador, mesmo com metralhadoras à porta e ameaça de bomba na sede do teatro. “O TPN era o ponto de encontro da juventude. Ciranda, pifano, tudo da nossa cultura passou por lá. O TPN era uma coisa maravilhosa, mas a gente tava morrendo à mingua, sem um tostao pra nada. Mesmo assim, fazíamos o que podíamos para combater a injustiça, a tortura, a morte, e para defender o amor, a liberdade, a democracia, isso tudo cheio de música de dança e muita alegria, fosse clássico, contemporâneo ou popular. Ele era quem nos levantava do chão, nos entusiasmava”.

DEPOIMENTOS

Liane Borba, filha de Hermilo

Meu pai sempre foi muito presente com os filhos, tanto que fui criada praticamente dentro do teatro. Iam todos: eu, minha mãe e meus irmãos. Trabalhei em Seis personagens à procura de um autor com cerca de 8 anos. Ele ia para as reuniões da escola, assistia a meus jogos de vôlei. Nos falávamos quase todo dia. Quando ele morreu, eu tinha 26 anos. Aprendi com ele pontualidade e disciplina, coisas que ele exigia muito. Ele era muito brincalhão, mas no trabalho ele era a seriedade acima de tudo. Até comigo ele brigava, se fosse necessário. É curioso, mas a sala onde eu trabalho no Teatro de Santa Isabel era a antiga casa do maquinista, onde dormi muitas vezes quando meu pai montava peças aqui. Muitos jovens me procuram para saber coisas sobre meu pai e, às vezes, me admira saber que meu pai ainda é tão reconhecido.

Alfredo Borba, filho de Hermilo
A convivência com meu pai era de amizade, sempre com muito respeito. Nunca tratei meu pai como pai, tinha essa visão desde pequeno. Também fiz Seis personagens à procura de um autor ainda criança. Comecei a atuar com ele, que acompanhava tudo. Participei do Teatro de Arena do Recife, do TPN e depois parti para o Sudeste para atuar profissionalmente. Meu pai era rigoroso como diretor e sabia todo o texto. Não faltava uma vírgula da fala de ninguém. A direção era boa porque ele fazia o ensaio de mesa. Passávamos mais de um mês só lendo o texto. Quando íamos para as marcações, depois de uma semana a peça estava montada. Mesmo assim, ele encorajava muito o diálogo, você podia criar como ator. Eu acho que a obra dele ainda é muito desconhecida. Em São Paulo eu ouvia falar mais dele do que aqui.

GRUPOS DOS QUAIS HERMILO PARTICIPOU

Gente Nossa
Grupo criado em 1931 por Samuel Campêlo e Elpídio Câmara, foi uma das companhias teatrais mais bem-sucedidas da história do teatro pernambucano. Realizava operetas, saraus e vesperais e ajudou a popularizar o Teatro de Santa Isabel, antes mais frequentado pela elite. Tinha, em seu auge, três subdivisões: teatro profissional, amador e infantil. O futuro fundador do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), Valdemar de Oliveira, fez parte do grupo e foi seu líder após a morte de Campêlo, em 1939. Foi extinto em 1944.

Teatro de Amadores de Pernambuco
Foi fundado em 1941 pelo médico Valdemar de Oliveira, a partir de sua experiência com o grupo Gente Nossa. Trazendo pessoas da sociedade recifense para atuar nos palcos, Valdemar acabou derrubando barreiras para a aceitação dessa arte. O TAP foi muito importante para o cenário teatral de Pernambuco ao trazer encenadores brasileiros e até estrangeiros, como Ziembiski, em montagens arrojadas, muitas vezes de clássicos mundiais da dramaturgia. Também revelou Geninha da Rosa Borges, atriz icônica do teatro pernambucano.

Teatro do Estudante de Pernambuco
O Teatro do Estudante de Pernambuco aglutinou jovens talentos da época, valorizou os dramaturgos nacionais e estimulou a produção de novos textos com concursos de dramaturgia, enfocando especialmente temas nordestinos, junto com uma linguagem mais próxima dos espetáculos populares, como o mamulengo. Levou o teatro para fora da sala de espetáculos, apresentando-se em ruas, praças, escolas, culminando na experiência da Barraca, em 1948, onde um palco foi montado no Parque 13 de maio. Foi extinto em 1952, com a mudança iminente de Hermilo para São Paulo.

Teatro de Arena do Recife
Pequena sala de espetáculos fundada em 1960 por Hermilo junto com Alfredo de Oliveira, irmão de Valdemar de Oliveira, e localizada na Avenida Conde da Boa Vista. A primeira encenação foi Marido magro, mulher chata, de Augusto Boal, fundador do Teatro de Arena, em São Paulo. No entanto, o Teatro de Arena do Recife não tinha o mesmo compromisso ideológico do grupo fundado por Boal. "O Teatro de Arena do Recife foi uma tentativa de oferecer à classe média local um entretenimento teatral inteligente e de boa qualidade artística" afirma Luís Reis.

Teatro Popular do Nordeste
Fundado por Hermilo, o Teatro Popular do Nordeste foi um marco no rigor e na qualidade dos espetáculos apresentados. Seja com clássicos mundiais, nacionais ou com dramaturgia própria, o TPN era notável pelo empenho de Hermilo nos ensaios e pela pesquisa das formas culturais e expressivas do Nordeste para criar um teatro atemporal e universal.

CINCO LIVROS PARA ENTENDER HERMILO

Espetáculos Populares do Nordeste (1966), relançado em 2007
Hermilo trouxe para o livro suas pesquisas sobre os espetáculos populares do Nordeste, como o cavalo marinho, o mamulengo e o pastroril, inclusive com transcrições de vários diálogos.

Diálogo do Encenador (1964), relançado em 1995
No livro, Hermilo aprofunda a reflexão sobre suas ideias a respeito de um teatro nordestino a partir de um resgate didático do trabalho de grandes encenadores mundiais, como Stanislavski, Meyerhold e Antonin Artaud. O pensador defende as características das encenações populares, como a improvisação e o contato direto com a plateia.

Um cavalheiro da segunda decadência (1966)
Tetralogia memorialística que passeia entre a realidade e a ficção e é composta por quatro volumes: Margem das lembranças, inspirada em sua vivência de menino na Zona da Mata; A porteira do mundo, baseada em suas descobertas na vida e no teatro quando chega ao Recife; O cavalo da noite, escrita a partir de sua experiência em São Paulo, na qual é reconhecido como artista promissor, mas se sente inadequado e, finalmente, a volta à capital pernambucana, com Deus no pasto.

A donzela Joana (1966)
Na peça, considerada pelo autor como uma das mais importantes escritas por ele, a história de Joana D'Arc é transposta para Pernambuco na época da ocupação holandesa. Nela, Hermilo transfigura o popular em uma forma única, sem torná-lo algo pitoresco, mas respeitando sua essência.

Orgía, de Tulio Carella (1968)
Embora o livro tenha sido escrito por Hermilo, este é um exemplo da outra faceta do encenador, escritor e dramaturgo: a de tradutor. Professor da Universidade Federal de Pernambuco a partir do convite de Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho, o argentino Tulio Carella colocou suas experiências homoeróticas no Recife no diário ficcional Orgia. Preso pela ditadura militar, teve de voltar à sua Argentina natal, mas Hermilo traduziu seus escritos como Orgia, livro primeiro, e os publicou em 1968. Ganhou status de cult depois de ter trechos citados no livro Devassos no paraíso, de João Silvério Trevisan.



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