Streaming Primeiro documentário da Netflix no Brasil invade com delicadeza a intimidade de Laerte Laerte-se relembra o processo de transformação sexual da quadrinista

Por: Fernanda Guerra - Diario de Pernambuco

Publicado em: 19/05/2017 12:28 Atualizado em: 19/05/2017 12:46

No documentário, Laerte aborda questões sobre 'o que é ser mulher'. Foto: Netflix/Divulgação
No documentário, Laerte aborda questões sobre 'o que é ser mulher'. Foto: Netflix/Divulgação


"Por que eu estou sendo alvo dessa câmera? Eu tenho uma certa resistência de ser objeto de uma investigação", questiona Laerte Coutinho, cartunista de 65 anos. Ainda com essa resistência, a desenhista se permitiu ser o elemento central de um filme. Antes de tudo, o documentário Laerte-se não é uma biografia sobre a vida dela ou como se tornou uma das maiores referências do cartoon brasileiro. Disponível a partir de amanhã na Netflix, o primeiro documentário nacional do serviço de streaming "invade" a intimidade e expõe questões pessoais da personagem principal. Do início ao fim, o filme reflete o perfil questionador da quadrinista e busca reflexão sobre "o que é ser mulher".

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Inicialmente, a ideia do documentário era falar sobre a obra da artista, com títulos como Muchacha e Overmann. "Laerte propôs fazer um filme sobre a questão de ela botar ou não implante de seios", conta Lygia Barbosa da Silva, diretora da produção em parceria com a jornalista Eliane Brum. O processo de composição durou três anos, o que gerou mais de 30 horas de filmagens, compiladas em 1 hora e 40 minutos de filme. A produção reúne questões imprescindíveis ao tema, como a revelação para os pais, as relações familiares, o cotidiano, a decisão de preservar o nome, o envelhecimento, a mudança ou não do corpo.

A construção narrativa contempla descobertas de Laerte sobre o mundo feminino, desde os primeiros indícios ao momento em que decidiu tornar público. “Estou ousando fazer uma coisa que estava no campo das proibições”, diz Laerte no documentário, referindo-se ao implante dos seios. Em seguida, o filme exemplifica a "censura" com uma fala de Rita Lee: "Não põe peito, dá um trabalho". O processo é um ponto íntimo de interrogação. A cirurgia ainda não foi realizada, mas a cartunista passou a compreender melhor o processo após a realização do documentário.

A maneira como arte e vida se confundem é retratada. Apesar de não se aprofundar na obra do artista, o documentário exibe trabalhos que mostram o quão interligadas estão as tirinhas e a transição sexual. As reflexões são mais evidentes nas tirinhas de Hugo e Muriel. "Quando eu virei a Laerte, Hugo também virou a Muriel", exemplifica.



Com depoimentos, imagens e silêncios precisos, a delicadeza é um dos trunfos do documentário. As imagens da intimidade da desenhista, como no banho, trocando ou escolhendo roupa, na manicure, "desnudam" Laerte, mas não chegam a ser invasivas. O filme consegue passar a mensagem principal. Como a cartunista traduz: "Vida humana é para ser boa independente do gênero".

>> Entrevista Laerte Coutinho, cartunista

Você sentiu alguma mudança após a realização do documentário?
É uma mudança sutil. Ser investigada também é me investigar. Nesses três anos, várias questões que o filme aborda foram questões pessoais que eu também me abordei. Tanto em relação a mim, como a outras pessoas. Acho que o ponto mais evidente foi a cirurgia de implante dos seios, que continuo indefinida, mas passei por vários entendimentos sobre o que isso significa.

Você pensa que dará representatividade para outras pessoas que estão lidando com essas questões?
Para mim, atende um desejo de autorreflexão, como também vejo como um modo de espalhar essa experiência e fazer ela se tornar. Talvez na minha juventude, eu senti muita falta disso. Esse tipo de material para o pensamento, sentimento, não era fácil de achar. Acho que esse filme também faz parte de um material que essa cultura pode usar para amadurecer.

Sente uma espécie de responsabilidade para esclarecer, lutar e ajudar essas pessoas?
Sempre procurei me sintonizar com o país que estou vivendo. Sempre procurei me colocar ideologicamente do lado que considerava correto, o melhor. Para todos e para mim também. Não estou fazendo da minha vida uma missão. Eu não me sinto obrigada por algo exterior a mim, a me engajar em determinadas lutas. Sou eu mesma que quero.

Qual foi o momento mais difícil do processo do documentário?
O momento mais difícil foi admitir que o filme também trafegaria na minha casa. Por motivos difíceis até para eu entender, é muito difícil admitir pessoas na minha casa. Receber pessoas, ainda mais filmando. Ver-se filmada é uma experiência diferente de se ver no espelho. É como se visse o olhar de outra pessoa. É mais inquietante, estranho. Mas depois que passou, ficou tranquilo. Não impus condições nenhuma.

Estamos em uma época de muita polarização. Você se sente mais agredida em relacionamento político/artístico?
São agressões de certa formas diferentes. A situação gerada por esse golpe mais recente é diferente em relação ao golpe de 1964. Naquela época, jornalistas eram presos, a redação inteira de O pasquim foi presa, amigos meus foram presos, torturados. O que acho é que, atualmente, essa truculência prolifera em lugares que não existiam. Existe hoje também, como existia na época de 64, um sentimento social de desconfiança, estranhamento, oposição. O fator de diferença é a internet. A internet cria um ambiente que é inédito. O ódio que pode viver e frutificar nessa internet é inédito.

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