Literatura Cartas trocadas entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira são publicadas e analisadas em livro Dois dos maiores intelectuais pernambucanos do século 20 foram amigos por mais de cinco décadas e trocaram dezenas de correspondências

Por: Fellipe Torres - Diario de Pernambuco

Publicado em: 22/05/2017 20:30 Atualizado em: 22/05/2017 22:11

Bandeira e Freyre mantiveram amizade longeva. Ilustração: Jarbas Domingos/DP
Bandeira e Freyre mantiveram amizade longeva. Ilustração: Jarbas Domingos/DP

Foi um artigo sobre pratos da cozinha pernambucana - doce de goiaba, tapioca molhada, mungunzá - o fator estimulante para o primeiro contato entre o poeta Manuel Bandeira (1886-1969) e o sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987). Este último, autor do texto publicado no Diario de Pernambuco, recebeu uma carta “cheia de simpatia” do conterrâneo, àquela altura - em 1925 - já radicado no Rio de Janeiro. A resposta seguiu junto com um pedido, quase uma exigência: uma poesia sobre a capital pernambucana da infância de Bandeira, com o objetivo de compor o Livro do Nordeste, editado por ocasião dos 100 anos do Diario. O resultado, gabou-se Freyre mais tarde, foi “um dos maiores poemas que já se escreveram na nossa língua” (em referência a Evocação do Recife).

Esse tipo de minúcia sobre os 50 anos de companheirismo entre os dois intérpretes do século 20 é material farto no recém-lançado Cartas provincianas: Correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira (Global Editora, 464 páginas, R$ 69), organizado pela pesquisadora Silvana Moreli Vicente Dias, pós-doutora em letras e linguística. “Após o primeiro encontro, toda uma trajetória de amizade, respeito, mútua compreensão, simpatia e grande alegria se consolida. Ao longo de mais de cinco décadas, os companheiros de leitura, trabalho e boêmia compartilham amigos e frequentam-se como membros de uma mesma família”, escreve a autora.

Quando finalmente recebeu um exemplar do Livro do Nordeste, Bandeira respondeu a Freyre com euforia: “Passei a tarde toda com o nariz metido no álbum do Diario. Feito menino que ganhou um livro muito bonito... Que prazer tive de olhar os desenhos do (pintor Manoel) Bandeira! Quem é esse estupendo xará? (...) Gilberto, como vocês me trataram carinhosamente, como ficou bonita a colocação dos meus versos”.

Um ano depois, logo após a primeira visita ao amigo no Rio de Janeiro, o autor de Casa-Grande & Senzala escreveu: “Vou visitar Manuel Bandeira. Lindo lugar. Mas casa de pobre. (...) Quando digo quem sou, desata numa risada que deixa à mostra sua dentuça já famosa que lhe dá ao aspecto alguma coisa de inglês e, ao mesmo tempo, caricatural”. Com a aproximação, Bandeira até ganhou apelidos, como Seu Nenê e Baby Flag.

Para o sociólogo 14 anos mais jovem, a relação de cumplicidade representava uma chance de se familiarizar com as rodas intelectuais (frequentadas sobretudo por modernistas) do Rio de Janeiro, àquela época a capital brasileira. Para o poeta, aquela era uma ponte com a terra natal. Em sua autobiografia, Itinerário de Pasárgada (1974), Bandeira escreveu sobre o aprendizado com o amigo: “Para completar (e de certo modo contrabalancear) essa influência, havia os amigos do Rio. (...) Lista a que devo juntar, depois de 1925, o nome de Gilberto Freyre, cuja sensibilidade tão pernambucana muito concorreu para me reconduzir ao amor da província”.

O volumoso registro de correspondências trocadas pelas duas figuras - e, agora, a disponibilização em formato de livro, com as devidas contextualizações - encontra ecos nas palavras do próprio Freyre, ao prefaciar a primeira edição de Casa-Grande Senzala (1933): “Isto é, claro, quando se consegue penetrar na intimidade mesma do passado; surpreendê-lo nas suas verdadeiras tendências, no seu à vontade caseiro, nas suas expressões mais sinceras. O que não é fácil em países como o Brasil; aqui o confessionário absorveu os segredos pessoais e de família, estancando nos homens, e principalmente nas mulheres, essa vontade de se revelarem aos outros que nos países protestantes provê o estudioso de história íntima de tantos diários, confidências, cartas, memórias, autobiografias, romances autobiográficos”.

Entusiasta desse tipo de registro mais voltado para o foro íntimo, o próprio Freyre passa a utilizá-lo de forma sistemática em sua produção intelectual. Fontes primárias, como cartas e diários, somente reforçaram o viés narrativo e ensaístico das obras do sociólogo. Segundo Silvana Moreli Vicente Dias, em obras como Ordem e progresso, Freyre constrói verdadeiras narrativas biográficas utilizando o conteúdo de correspondências.

Cartas provincianas reúne 68 correspondências, quase todas inéditas, além de documentos, poemas, ensaios críticos, crônicas e resenhas de ambos os autores. Em um caderno iconográfico, há reproduções de cartas, telegramas, livros autografados de um para o outro e algumas fotografias. Sobre o título do livro, o próprio Gilberto Freyre explica em um dos textos transcritos na obra: “Sou provinciano. Com os provincianos me sinto bem. Se com estas palavras ofendo algum mineiro requintado peço desculpas. Me explico: as palavras ‘província’, ‘província’, ‘provincianismo’ são geralmente empregadas pejorativamente por só se enxergar nelas as limitações do meio pequeno. (…) É provinciano, mas provinciano do bom, aquele que está nos hábitos do seu meio, que sente as realidades, as necessidades de seu meio. Esse sente as excelências da província. Não tem vergonha da província - tem é orgulho”.



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