Televisão O suicídio é responsabilidade de todos, desafia a série 13 Reasons Why, da Netflix Seriado alavanca reflexão a partir da abordagem de bullying, violência sexual e omissão da escola e dos pais

Por: Tiago Barbosa

Publicado em: 03/04/2017 21:01 Atualizado em: 03/04/2017 20:32

Katherine Langford interpreta a personagem principal, Hannah Baker. Foto: Netflix/Divulgação
Katherine Langford interpreta a personagem principal, Hannah Baker. Foto: Netflix/Divulgação


Cometer o ato extremo de ceifar a própria vida é, por definição, uma atitude individual. Mas a sustentação das circunstâncias capazes de compelir alguém ao suicídio deve ser compreendida como uma falha coletiva subsidiada tanto por comportamentos aparentemente inofensivos do cotidiano como por omissões da rede de convivência social e familiar. A responsabilização das pessoas envolvidas com quem - desamparado, frustrado ou abandonado - opta pela morte é a base do incômodo e necessário ponto de reflexão imposto pelo drama da Netflix 13 reasons why (Os 13 porquês). A proeza do seriado está em demonstrar como ações isoladas se combinam de forma nefasta para destruir o destino de uma adolescente sob a conivência de uma sociedade desprovida de socorro aos mais vulneráveis.

A trama conjuga ficção e realidade porque se descola de estereótipos no momento de construir a personagem principal e pontua cada queda no calvário do suicídio com gestos facilmente identificáveis em qualquer universo estudantil - seja na escola de classe média e alta dos Estados Unidos, onde a série é ambientada, seja em unidades de ensino de países menos abastados, nas quais a segregação, o bullying e a formação da personalidade elegem excluídos para consolidar a sensação de poder em quem pertence a grupos dominantes.

A adolescente Hannah Baker (Katherine Langford) é, na história, uma garota alegre, vibrante, inteligente, responsável, estudiosa, companheira e extrovertida, empenhada em construir amizades sinceras e viver romances típicos da juventude - e não uma pessoa naturalmente depressiva, avessa ao contato humano, com inclinação ao isolamento ou ao autoflagelo físico e psicológico. A opção por exaltar um perfil de felicidade produz dois efeitos imediatos: liquida a predisposição social de culpar o suicida pela escolha fatídica e estende a qualquer um a eventualidade de se sentir pressionado a atos radicais quando feridos sistematicamente por ataques no corpo e na alma.

A identificação proporcionada pela personagem, delineada como um tipo comum, tal qual uma irmã, prima ou amiga, é igualmente crucial para sensibilizar a coletividade e tornar mais dolorida a percepção da violência praticada contra ela. É angustiante testemunhar a transformação paulatina da alegria em dor e lágrimas - embora a gradação, dentro e fora das telas, tenha um caráter pedagógico sobre os sinais de mudança apresentados por quem enfrenta problemas assim, não raramente ignorados.

A trama se move a partir dos relatos de Hannah ouvidos por Clay Jensen (Dylan Minette). Foto: Foto: Netflix/Divulgação
A trama se move a partir dos relatos de Hannah ouvidos por Clay Jensen (Dylan Minette). Foto: Foto: Netflix/Divulgação


A compreensão do suicídio como produto do coletivo também transparece na forma como a narrativa se desenvolve. A história é contada com idas e vindas no tempo a partir de depoimentos deixados gravados em fitas cassetes e ouvidos pelo colega mais próximo da adolescente, Clay Jensen (Dylan Minnette, de Prisioneiros), apaixonado por ela e interessado em investigar as razões da morte. Os relatos póstumos de Hannah detalham situações e aflições vividas pela garota e revelam quem, na visão dela, foram os "culpados" pelas experiências capazes de fazê-la tomar a decisão de se matar. Há uma mensagem subjacente à ideia de enviar as gravações para as pessoas com quem se envolveu em vez de simplesmente remetê-las às autoridades e subsidiar uma investigação formal sobre a própria morte: o suicídio não é um caso de polícia, mas um problema de saúde pública e demanda tomada de consciência social para ser evitado.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) já bate na tecla e classifica o problema como uma epidemia social, responsável pela morte anual de 800 mil pessoas - principalmente em países pobres e emergentes. A ocorrência de casos entre a juventude é encarada com preocupação pela instituição sanitária, crítica aos métodos de enfrentamento adotados em nações onde o silêncio é, muitas vezes, estratégia recorrente para tratar do assunto. A negligência escancara a dificuldade - sobretudo quando envolve os jovens - de enfrentar o problema por famílias e escolas, duas das salvaguardas necessárias a adolescentes em situação de vulnerabilidade.

13 reasons why denuncia os efeitos dessa omissão de forma crível e contundente, com a exposição reiterada da incapacidade familiar e escolar de perceber, dialogar e auxiliar a adolescente cuja vida atravessa sofrimento incessante. Em casa, os pais de Hannah, embora amorosos e próximos à filha, priorizam os problemas financeiros e a tornam invisível. No colégio, professores, diretores e até profissionais encarregados de aconselhamento estudantil fracassam na tentativa de penetrar o universo dos alunos e estabelecer pontes de confiança para compreendê-los. Em ambos os casos, a tentativa de diálogo apoiada em clichês dos adultos em relação aos jovens, a aceitação de estereótipos sobre a faixa etária ou mesmo a permanência na zona de conforto da inércia para evitar contratempos ampliam o fosso entre gerações.

A ausência de anteparos deixa desimpedida a perpetuação de situações típicas (e graves) da adolescência. A escalada de percalços no caminho de Hannah evidencia o poder destruidor de comportamentos marcados por bullying, machismo, intolerância, homofobia, humilhação amorosa, exclusão e violência sexual - e atesta como eles, massificados pelo alcance na era das redes sociais, concorrem para levar o indivíduo a atentar contra si.

A combinação produz um ambiente opressor sob a falsa sensação de normalidade. Chacotas estigmatizam, ensejam novas piadas, desnutrem o respeito. Gays silenciam a orientação sexual e, discriminados, machucam para se defender. A valorização do mais forte escanteia os menos dispostos a atividades físicas. Meninas se submetem a práticas machistas, e abusos sexuais e psicológicos são encarados como parte elementar da trajetória estudantil. O subproduto do caos esmaga a autoestima, suscita a depressão em Hannah, e ela faz da própria morte espécie de ato de protesto (ou vingança) contra uma sociedade opressora. O suicídio paira, na incursão impulsionada pelas fitas, como fantasma de remorso sobre quem a machucou.

Bullying, agravado pelas redes sociais, é um dos problemas centrais abordados no seriado. Foto: Netflix/Divulgação
Bullying, agravado pelas redes sociais, é um dos problemas centrais abordados no seriado. Foto: Netflix/Divulgação


A atuação de Katherine Langford realça os efeitos da sucessão de maldades cometidas contra Hannah. A esperança no rosto da adolescente contrasta recorrentemente com a tristeza frente às decepções, e a resiliência mantida heroicamente ao longo dos 13 capítulos da série cede espaço à abnegação pelas frustrações. Intérprete do colega dela (Clay), Dylan também faz do semblante a síntese da consternação pela noção de responsabilidade sobre a morte da amiga e da constatação de como o ambiente no qual vive é capaz de destruir uma vida e tentar seguir como se nada ocorresse. A expressão inocente dos flashbacks é alternada com a incredulidade e o desapontamento pela incapacidade de mudar os rumos da história - agravadas pela dor de um amor não vivido. A adaptação televisiva do livro homônimo de Jay Asher ampliou o leque de personagens e permitiu a entrada expressiva de atores experientes, como Kate Walsh (Fargo) e Derek Luke (Capitão América).

A vilanização do outro no tocante ao suicídio, no entanto, merece uma ponderação mais cautelosa. Concebida para retratar a esfera juvenil, 13 reasons why estabelece um canal de comunicação direto com o público-alvo e, se mal digerida, incorre no risco de naturalizar o problema e sugeri-lo como opção viável para adolescentes em situação vulnerável ou propensos a fazer da própria morte um ato de repúdio contra quem o oprime. A aproximação do perfil da protagonista com os espectadores pareceria, nesse contexto, como impulso - e não fator de reflexão - à morte, glamourização e apologia ao suicídio. É um ponto sensível e delicado passível de críticas na produção.

Depois de disponibilizada na Netflix, a série fez eclodir nas redes sociais as hashtags #NaoSejaUmPorque e #Aprendicom13rw, convites à reflexão sobre o comportamento e ao ativismo para evitar a indiferença diante de pessoas cujas circunstâncias da rotina podem estimular o ataque à própria vida. Desabafos sobre o interesse em ouvir, entender e auxiliar o outro deram a tônica das postagens. O sentimento de coletividade expressado através da corrente virtual soa como um passo bem-vindo para enfrentar um tema ainda visto como tabu e carente de ações solidárias. Feito eco da série: o suicídio de um é responsabilidade de todos.

Veja o trailer:



A série
13 reasons why
Criador: Brian Yorket
Showrunners: Brian Yorkey e Diana Son

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