HQs Will Eisner, um dos maiores nomes dos quadrinhos, completaria cem anos nesta segunda Desenhista e roterista contribuiu decisivamente para elevar mídia ao status de arte

Por: Breno Pessoa

Publicado em: 06/03/2017 15:00 Atualizado em: 06/03/2017 19:26

Artista adotou um modelo de produção que viria a ser copiado por outras empresas no futur.  Foto: Comic Book Help/Divulgação
Artista adotou um modelo de produção que viria a ser copiado por outras empresas no futur. Foto: Comic Book Help/Divulgação

Will Eisner era o exemplo ideal do artista incansável. Dedicou mais de sete décadas à carreira de quadrinista e, quando morreu, no dia 3 de janeiro de 2005, aos 87 anos, tinha o último trabalho em processo de editoração para ser lançado em breve. A extensão da obra do autor, que completaria um século de vida nesta segunda-feira, no entanto, não é o aspecto mais notável nem a principal contribuição dele para a indústria dos quadrinhos.

O desenhista e roteirista norte-americano é considerado um dos principais responsáveis por elevar as HQs ao status de arte. Ativo no mercado editorial desde quando as tiras e revistas em quadrinhos começavam a se estabelecer, na década de 1930, Eisner atravessou todos os principais ciclos de desenvolvimento da mídia. Como muitos dos artistas da época, Eisner andava em busca de oportunidades nas várias editoras que surgiram para atender o incipiente mercado consumidor. Sem conseguir emprego fixo, acabou abrindo, no ano de 1936, o próprio estúdio, em parceria com um desenhista frustrado, Jerry Iger.

Adotando um modelo de produção que viria a ser copiado por outras empresas no futuro, o estúdio Eisner & Iger tinha uma rígida divisão de tarefas, com artistas responsáveis pelos esboços a lápis, arte-final, moldura dos quadrinhos e letreiramento. Eisner geralmente desenvolvia as ideias ou preparava algumas páginas e depois repassava o conteúdo para a equipe dar continuidade. Entre os artistas que passaram por lá estão Bob Kane e Jacky Kirby, cocriadores de Batman e Capitão América, respectivamente.
Eisner como seu personagem mais famoso, The Spirit. Ilustração: Samuca/Diario de Pernambuco
Eisner como seu personagem mais famoso, The Spirit. Ilustração: Samuca/Diario de Pernambuco

Já fora da sociedade, criou The Spirit, maior sucesso editorial da carreira e publicado entre 1940 e 1952. Nas décadas seguintes, trabalhou produzindo quadrinhos educativos para o exército dos EUA e, em 1978, ao 59 anos, lançou Um contrato com Deus, uma das primeiras obras no padrão graphic novel (romance gráfico, em tradução literal), termo criado para se referir histórias em quadrinhos mais extensas e elaboradas, espécie de meio termo entre literatura e HQs. Bastante realista, a ficção reúne quatro histórias sobre moradores judeus de um conjunto habitacional em Nova York no começo do século 20.

Seria a primeira de várias obras a abordarem a cultura judaica, tema bastante familiar para ele, filho de imigrantes judeus. A partir desse ponto, os prosa gráfica de Eisner foi evoluindo ainda mais, com o aprimoramento da linguagem visual e potencial literário das tramas.

O dia a dia era a principal fonte de inspiração para as narrativas gráficas do autor, que se dedicou a escrever e desenhar histórias de pessoas comuns em dramas cotidianos, como brigas de casais, traições familiares ou frustrações profissionais, tendo como cenários ruas, cortiços, metrôs etc. A busca por temas aparentemente ordinários contrastava com a sempre constante busca pela sofisticação estética, até os últimos trabalhos.

Gênios também erram
Exigente, Will contratava para seu estúdio apenas os artistas que julgava maduros e com formação em instituições de ensino de arte. Entre os inúmeros jovens candidatos a vagas na empresa estavam Jerry Siegel e Joe Shuster. Em 1938, a dupla mandou dois trabalhos para avaliação, Spy e Superman, ambos rejeitados. Eisner enviou as páginas de volta, com um bilhete dizendo: “Vocês ainda não estão prontos”. Alguns meses depois, Superman foi publicado na edição 1 da Action Comics, vendendo cerca de 200 mil exemplares e, nos números seguintes, alcançado tiragens acima de 500 mil cópias.

Aventuras humanas
O equívoco ao avaliar as primeiras amostras do trabalho de Siegel e Shuster talvez não se devesse apenas à falta de faro para identificar o potencial de Superman, mas certo desinteresse para com super-heróis. The Spirit (1940), a mais famosa criação de Eisner flertava com o gênero, mas tinha como protagonista um detetive policial que, após ser dado como morto, passou a combater o crime secretamente, sem qualquer poder especial ou uniforme espalhafatoso. A única concessão, a pedido do editor, foi a inclusão de um disfarce, algo que o artista resolveu incluindo uma máscara similar à utilizada por Zorro.

Um herói atípico
Mesclando aventura, mistério, comédia e romance, The Spirit era diferente de todos os heróis da época, pela maior carga dramática das histórias e narrativa gráfica sofisticada. O caráter cinematográfico de muitas das composições das páginas não era por acaso: o artista foi influenciado pelo cinema e declaradamente um aficionado por Cidadão Kane (1941). É fácil perceber as semelhanças no uso de enquadramentos e profundidade de campo, algo que o levou a ser chamado de “o Orson Welles dos quadrinhos”. Outra novidade da HQ era o uso das splash pages, cuja ideia era causar grande impacto visual na página introdutória das histórias.

[O que eles dizem

 
"O Will Eisner foi importante na mesma época em que a gente estava conhecendo o trabalho do Laerte, nos anos 1990, quando descobrimos que queríamos fazer quadrinhos. O que chamou mais atenção em O edifício (uma das graphic novels de Eisner) era o fato de trazer histórias de pessoas normais, em lugares reais, buscando algo interessante em situações ordinárias, às vezes com um elemento fantástico".

Fábio Moon, quadrinista, que junto com o irmão gêmeo, Gabriel Bá, já foi premiado com o Prêmio Eisner, maior honraria da indústria de quadrinhos.

"Ele se definia como duas coisas: um homem de negócios, que cuidava de todos os seus contratos, e um escritor de imagens. Em quadrinhos, você precisa lidar com linguagem textual e visual, de maneira sincrônica. Fundamentalmente, para ele, a melhor maneira era contar a história como se fosse um filme ou uma peça de teatro. E antes dele, não se via reflexão psicológica dentro dos quadrinhos, ele traz densidade e drama aos personagens".

Lailson de Holanda, cartunista e amigo pessoal de Will Eisner. O contato com o autor norte-americano a partir dos anos 1990 culminou com a vida do artista ao Recife em 2001, no Festival Internacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco.

Acompanhe o Viver no Facebook:




MAIS NOTÍCIAS DO CANAL