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Literatura Livro redescobre a obra do boêmio pernambucano Francisco Espinhara A Poesia Possível reúne textos inéditos e livretos publicados de forma independente pelo poeta ícone da Geração 80

Por: Alef Pontes

Publicado em: 16/03/2017 11:59 Atualizado em: 16/03/2017 16:47

Professor de literatura "tradicional", Espinhara encontrava na literatura alternativa um meio de enfrentar cara a cara as dores do Recife. Foto: Sennor Ramos/Acervo pessoal
Professor de literatura "tradicional", Espinhara encontrava na literatura alternativa um meio de enfrentar cara a cara as dores do Recife. Foto: Sennor Ramos/Acervo pessoal

Polêmico, boêmio, pessimista, maldito, marginal. Estas são algumas das alcunhas que marcaram a vida e obra de um dos expoentes da literatura alternativa em Pernambuco. Ícone da Geração 80 e um dos protagonistas do Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco (MEIP), o poeta e contista Francisco Espinhara tem sua obra revisitada agora - dez anos após sua morte - no livro A poesia possível, lançado nesta quinta-feira (16), às 19h30, no Teatro de Mamulengo.

Idealizado pela escritora Cida Pedrosa, contemporânea e amiga que assina a curadoria do projeto, em parceria com o pesquisador Sennor Ramos, o livro resgata o vasto material do autor que traduziu as dores e mazelas da vida urbana num sombrio e atormentado Recife, porém, resistente, e cheio de razões para encontrar afago no amor. 

A pesquisa - um verdadeiro vasculhar de gavetas em buscas de antigos rascunhos manuscritos - durou cerca de cinco meses, iniciados em agosto do ano passado. Guardiã de um grande acervo de Espinhara, Cida Pedrosa buscou ainda auxilio nos amigos e familiares do autor para trazer à luz sua obra "quase completa". 

Foram inúmeras as convocatórias - de porta em porta, emails, mensagens via celular e até mesmo um chamado no Facebook - que revelaram cerca de 300 textos, entre trabalhos intocados e facetas até então desconhecidas do arcoverdense que, como ninguém, viveu a intensidade boêmia das ruas e becos da capital pernambucana.

Segundo conta, a ideia é fazer com que as pessoas que estudem a literatura alternativa tenham a possibilidade de (re)descobrir o trabalho quase inédito do autor. "A obra dele estava muito dispersa em fanzines, jornais e panfletos. Chico é quase inédito porque, quando se pensa em um livreto com uma tiragem de 200 exemplares, essa obra não é conhecida", explica. "Agora a gente tira da ineditude com a proposta de distribuir o livro nas bibliotecas públicas estaduais e universidades, além da comercialização nas livrarias", continua a poetisa.

A curadoria, que para além do aspecto profissional imerge na intimidade de anos de convivência, trouxe como um dos pilares o respeito pela obra e pensamento de Espinhara - mesmo quando isso significa abdicar de expor parte de seu talento -, como revela Pedrosa: "Por diversas vezes, eu peguei cadernos com poemas que apareciam em formas diferentes. E eu entendi que estes poemas não estavam acabados. Eu acredito que Chico não gostaria que fossem publicados desta forma". 
 
Projeto gráfico de Sennor Ramos e capa de Greg Vieira trazem recortes de manuscritos e imagens de calçadas e vias da cidade
Projeto gráfico de Sennor Ramos e capa de Greg Vieira trazem recortes de manuscritos e imagens de calçadas e vias da cidade
 
 
Descobertas 
"Uma coisa que me surpreendeu muito é que me deparei com versos que tinham sido escritos há 20 anos e que apareciam num poema completamente novo", relembra. Outra recorrência inusitada foi a descoberta de palavras e temas que se repetem em seu trabalho: "Ele tinha uma poema, A noiva cadáver, publicado originalmente nos anos 1980, mas também tinha outro, mais recente, com um texto muito parecido". Entre as surpresas, uma seleção de poemas sobre o futebol - tema incomum em sua sobra - sob a tutela de Jorge Lopes. 

Enigmático para alguns, Francisco é leitura essencial para aqueles que buscam se encontrar na dualidade do existir: "A poesia possível é uma forma do leitor entender esse Chico pessimista. Eu acho que nós estamos em um momento dual: tanto as pessoas estão vivendo um momento de ficção facebookiana - em que não se aprofundam em nada, e vivem a liquidez -, como também muitos jovens se matando com depressão", comenta com profundidade.

"Ao mesmo tempo em que era profundamente pessimista, ele era muito apaixonado pela vida. Era uma coisa meio Álvarez de Azevedo: muito romântica. Ele era um homem dual, que vivia muito no limite, da dor, do álcool e das ruas do Recife. Ele era as ruas do Recife", pondera a curadora. O legado e as inquietudes do escritor podem ser, no olhar de Cida, um norte para os momentos de mudança que vivenciamos nos últimos anos. "Quando a sociedade rompe com paradigmas, e nós estamos vivendo o romper de muitos paradigmas, você tem esse momento de muita dor. E Chico tinha essa capacidade de olhar para o vazio e entender que o mundo é uma dor violenta", reflete Pedrosa, que classifica o amigo como o último doido maluco-beleza com quem conviveu. 

"Ele era capaz de falar sobre um tema mais árduo em primeira pessoa, coisa que não sou capaz. E assumia essa dor como se fosse a própria víscera dele. Para além de qualquer coisa, ele é um escritor muito bom", defende.

Um de seus últimos e mais elogiados trabalhos, o livro Bacantes, publicado seis meses antes de sua morte prematura, apresenta uma dessas inúmeras facetas em uma prosa poética diferenciada: "É um livro cabalístico que trata de sete bacantes. O número 7, inclusive, é uma coisa recorrente em sua vida: ele morreu em 2007; o publicou, em vida, seis volumes de eu trabalho mais querido, o jornal Lítero-Pessimista, deixando o sétimo volume pronto (publicado postumamente); e tem sua obra completa publicada em 2017".

Legado
Apesar de rechaçar o pré-nome de "marginal" (para ele, todo poeta é marginal, porque a poesia já está à margem da sociedade) pelo qual é associado até hoje dentro e fora das rodas literárias, se tornou marco de uma geração que difundiu caminhos alternativos para a escrita e publicação fora dos padrões estabelecidos por grandes editoras. Ensinamentos que reverberam até hoje.

"Eu acho que nós temos uma cena urbana muito boa. O que os independentes da minha geração faziam, o pessoal de hoje faz melhor. Não sei se o texto é melhor, mas se recita melhor. Se recita com o corpo", afirma Cida, que enumera: "Na década de 90 você tem uma cena de Miró, Luiz Marinho... nos anos 2000 vem outra cena. Em 2017 nós temos diversos nomes como Luna Vitrolira, Gleison Nascimento e André Monteiro que já trazem esse recitar com o corpo de forma muito intensa". 

Mas, para ela, o maior legado de Chico Espinhara é o extremo respeito pela literatura, dos pontos de vista técnico e do compromisso. "É entender que a literatura não é brinquedo. Você pode até brincar com ela, mas é coisa séria". 

SERVIÇO
Lançamento de A poesia possível (Edições Claranan, 286 pag)
Com recital de Fernando Chile e Silvana Menezes, e microfone aberto para poesia
Quando: quinta-feira (16), às 19h30
Onde: Teatro de Mamulengo (Praça do Arsenal, Rua da Guia, 211, Bairro do Recife)
Quanto: entrada gratuita; livro: R$ 20


Confira o poema Fantoches, que integra o livro: 

Os fantoches da rua Sete
Seguem cegos na procissão

A puta diurna da Palma
Traz uma venérea na alma
E uma cova diária na mão

Da Ponte Velha a secular ferrugem
Reticente ao trajeto branco da nuvem
Come o estrado, o arco, o vergão

Os poetas esquecidos no Beco
Transam sangue a trago seco
Dormem como trapos sobre o chão

Recife, musa, maldição
Cadela suja
Traiçoeira seta certeira
Encantada cidade do cão 

(Publicado originalmente em 1994, no livreto Dose dupla)

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