Aniversário Como Recife e Olinda inspiram obras de renomados artistas em Pernambuco Iza do Amparo, Paulo Bruscky, Kleber Mendonça Filho, Uraniano Mota e Fábio Trummer comentam suas relações com as cidades irmãs

Por: Isabelle Barros

Publicado em: 12/03/2017 08:00 Atualizado em: 12/03/2017 08:55

Fotos: Joel Veiga/Rafael Roncato/Fundaj/Bruno Guerra/Reprodução
Fotos: Joel Veiga/Rafael Roncato/Fundaj/Bruno Guerra/Reprodução


Recife e Olinda, cidades umbilicalmente ligadas por seu passado e geograficamente unidas no presente, acostumaram-se desde cedo a ser objeto de afeição de seus habitantes ou visitantes. Um dos recifenses mais ilustres, o sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), foi pioneiro em oferecer impressões particulares dessas localidades em duas publicações: Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife e Olinda - 2° guia prático, histórico e sentimental de cidade brasileira. Em ambas, as vivências do escritor dão uma cor muito particular a informações vistas tradicionalmente em publicações do gênero. O cotidiano da população, o papel do mar e dos rios no ritmo e uma citação mais afetuosa a vultos históricos ganharam tratamento tão nobre quanto o de dados mais objetivos.

Inspirado em Freyre e motivado pelo aniversário dos dois municípios, comemorado neste domingo, o Viver convidou cinco artistas de segmentos distintos para fazer um guia sentimental particular da cidade à qual são mais ligados - Recife ou Olinda. Para eles, as lembranças de infância, adolescência ou memórias em locais especiais trouxeram uma dimensão única à sua visão de mundo e, por extensão, à obra de cada um. O cineasta Kleber Mendonça Filho, o escritor Urariano Mota, os artistas visuais Iza do Amparo e Paulo Bruscky e o músico Fábio Trummer compartilham os afetos vividos nessas duas cidades que caminham rumo a cinco séculos de história.

+ A cadência de Iza pelo Sítio Histórico
No Sítio Histórico, a vida parece obedecer a um ritmo próprio, menos apressado do que na vizinha Recife. O casario da Rua do Amparo, no velho coração de Olinda, se tornou o lar de Maria Luiza Mendes Lins, nascida na cidade baiana de Conde e que o destino e a vontade tornaram Iza do Amparo. A liberdade proporcionada pela cidade levou a artista plástica a criar nela seus filhos, a ver nela o crescimento dos netos e a desenvolver uma obra guiada pela alegria. Segundo Iza, a forma mais adequada para viver na cidade era se reinventar, com um novo nome e vida voltada à arte, convicção estendida aos filhos, Catarina Dee Jah e Paulinho do Amparo.

“Quando vim morar em Pernambuco, passei os primeiros três anos no Parnamirim, no Recife, mas já com o objetivo de me mudar para Olinda. Essa cidade foi o lugar que me mostrou a necessidade de ter raiz. A Bahia me deu régua e compasso. Olinda me deu chão e conteúdo. Posso considerar que sintetizei um estilo, um jeito característico, original, a partir de todas as informações absorvidas na cidade. Iza do Amparo é um personagem inventado, um símbolo dessa fusão, dessa minha adaptação a Olinda. A cidade permitiu minha expressão própria sem eu necessariamente estar ligada aos símbolos locais. Quando pintava peixinhos e mar, também punha Sol, farol, uma ou outra referência a templos do candomblé, mas nunca pintei um passista ou um maracatu. Meu gênero é mais abstrato. Pego as referências e sinais sobre o que não devo pintar, senão vai ficar igual a todo mundo”.

“No meu guia turístico particular de Olinda, a melhor referência é ter muito respeito pelos Quatro Cantos. É lá onde a gente se sente morador para ver os desfiles, para ver o movimento. O Peneira, que tem um bar, dorme de tarde em uma cadeirinha do lado de fora. Ver uma partida do Sport lá é lindo porque parece uma igreja com todo mundo sentado. Outra coisa imperdível é ir à Igreja da Misericórdia ver as freirinhas cantarem. É divino. Se não tiver mesmo nada para fazer, venha para Olinda tomar a fresca. É a melhor do mundo”.

A arte que se interliga com a vida
Provocado por Sérgio Rozenblit, que o convocou a escrever um roteiro afetivo sobre o Recife para um programa de fim de ano da TV Cultura, Paulo Bruscky debruçou a mente sobre os lugares marcantes em sua formação. “Fui para o Tepan e, às três da manhã, o roteiro poético, intitulado AR-Recifes de poesia de PBY, estava pronto. Só burilei um pouco no outro dia. Não mudaria nada, porque o roteiro me exauriu muito de cérebro, de pensamento. Todos os meus bares e os bairros tão aí”.

O artista visual crê numa interligação total entre arte e vida, e o Recife é, para Bruscky, sua alma mater. “Tive uma infância fantástica. Morava em Santo Amaro, perto da Avenida Mário Melo, e era como se morasse no interior, lá era a sementeira do Recife. Eu caçava dentro dela. Gosto de caminhar pelo Centro, embora esteja degradado. A gente quase não tem lugares para apreciar a beleza da cidade. Eu e meus amigos tomávamos banho no Rio Capibaribe, em frente ao São Luiz, e havia botos pulando ao nosso lado. Ia pescar na Ponte Velha, fugia de casa e ia passear sozinho. Quando morei fora, pensei muito no Recife. Foi a época na qual mais refleti sobre a questão da minha cidade e da influência dela na minha formação”.

“Misturo obras minhas com minha paixão, que é a cidade. Recife é incrível também porque, geograficamente, é plana, banhada por mar, cortada por rios e favorece intervenções urbanas. Fiz performances e intervenções em pontes, em rios, na praia. Na década de 1970, peguei o mapa do Recife e botei olhos. Chama-se Cabeças do Recife. Teve Poesia Viva, arte em cágado, o caixão no rio. Também joguei muito com os nomes das localidades”.

Quando o amor e a perplexidade se unem
O cineasta Kleber Mendonça Filho apresenta o Recife não só como locação, mas como personagem palpável nas obras mais recentes: o curta-metragem Recife frio e os longas O som ao redor e Aquarius. O amor dele pela capital pernambucana e, ao mesmo tempo, a perplexidade pelo que ela vem se tornando é um tema maturado ao longo de anos de trabalho com cinema, seja como diretor ou crítico. Ao voltar da Inglaterra, onde morou por anos, Kleber evoca a redescoberta de uma cidade cujos bairros centrais tinham um circuito cinematográfico vibrante.

“Minha reação mais forte com o Recife é o Centro da cidade, da Boa Vista até o Bairro do Recife. Centro de cidade incrível e belo que as prefeituras das últimas décadas não parecem entender ou valorizar. A Manoel Borba, a Rua do Hospício com o Teatro do Parque, relíquia e joia fechada há anos, a Rua da Aurora e o São Luiz, que resiste
bravamente pelo fato de existir também uma Recife inteligente e apaixonada por cultura. Uma das coisas mais lindas do carnaval é o recifense andar no centrão, do Pátio de São Pedro, das pontes e do Bairro do Recife, pelo menos uma vez no ano. No resto do ano,
infelizmente, muita gente funciona da forma como o mercado quer e as prefeituras deixam”.

Em meio a andanças, as próprias memórias
O jornalista e escritor Urariano Mota é sucinto quando descreve a tentativa de se mudar do Recife, cidade natal, para São Paulo. “Não seria o mesmo escritor se não fosse nascido e criado aqui. Lá não tem rio, então não dá. Eu queria restaurante de comida nordestina e as pessoas não entendiam o motivo, ficavam chateadas”. A paixão deste nativo do bairro de Água Fria pela capital pernambucana o levou a lançar, em 2014, o Dicionário amoroso do Recife, voltado justamente para uma apreciação informal e afetiva da cidade. As igrejas, os terreiros e as pessoas têm a descrição temperada com novas formas de contar a história da capital.

“Todo escritor, quer queira quer não, é autobiográfico. A gente só escreve com a própria experiência, cultivada com outras vozes, de outros autores. Tenho Recife como a minha mãe, que perdi aos 8 anos. Às vezes, caminho pela cidade e vejo vários pontos da história dela. Fico me perguntando cadê o Savoy, bar que antes funcionava na Avenida Guararapes. Adoro caminhar pelo Bairro do Recife. Quando vejo os trilhos do trem, lembro de ter alcançado esses trilhos na minha infância. Para mim, as ruas e as paredes da cidade falam. Muitas vezes, sinto ver os rostos dos jovens que vi. Percebo as gerações se repetirem em um outro modo de ser”.

“Não é à toa que no meu livro mais famoso até aqui, Soledad no Recife, a cena inicial seja exatamente no Pátio de São Pedro, porque remonta a uma situação vivida por mim no mesmo local, em uma sexta-feira de carnaval, com um amigo assassinado pela ditadura. Já o Filho renegado de Deus conta a história de um homem que tem sua formação de esquerda no bairro de Água Fria, local da minha formação”.

A sonoridade que emana de Casa Caiada
Fábio Trummer, cantor, guitarrista e vocalista da banda Eddie, transita entre Olinda e São Paulo há 11 anos, mas a presença da cidade em sua música parece não ter fim. A banda que criou com amigos em 1989 se tornou representante do “original Olinda style”, nome, aliás, de um dos álbuns lançados pelo grupo. A música Bairro Novo/Casa Caiada traz um panorama do que era crescer na cidade e Fábio diz estar em processo de composição de uma música nova, que narra uma passagem pelo carnaval olindense.

“Tenho uma memória afetiva da minha infância em Casa Caiada e Bairro Novo, onde minha mãe vive até hoje na mesma casa onde cresci. A rua inteira tinha jardins incríveis. Lembro que passava as manhãs de verão brincando no jardim, vendo aranhas, formigas, lagartas, borboletas. Em época de chuva as ruas ficavam cheias de tangerinas, sapos, e esse era o nosso ambiente, isso quando eu não estava na praia, com óculos de mergulho, mergulhando nos arrecifes e no recém-feito dique. Ali tinha toda uma vida submarina, lagostas, saberés, castanhetas, camorins, saúnas. Tudo isso era muito bacana. Meu pai tinha uma catraia, um pequeno barco a remo, e a gente estava sempre pescando por ali. Um pouco mais velho já, no fim da infância e entrando na adolescência, comecei a surfar na Prainha, em Zé Pequeno. Essa era a minha vida. Lembro de jogar bola na maré seca, com a areia dura. Ter passado por isso é um frescor para o agora, para o cotidiano de hoje. É essa a Olinda que está cravada em mim”.

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