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Teatro Atores e atrizes transgênero ganham oportunidades no cenário de artes cênicas do Recife Segmento vai ser contemplado com curso de iniciaação de atral e espetáculo voltado para a discussão de sua realidade

Por: Isabelle Barros

Publicado em: 26/03/2017 09:18 Atualizado em:

Ator Tatto Medinni no monólogo Jr. Crédito: Pedro Portugal/Divulgação
Ator Tatto Medinni no monólogo Jr. Crédito: Pedro Portugal/Divulgação


O trabalho de atores e atrizes travestis e transexuais está no centro de uma mudança nos discursos artísticos contemporâneos, que agora levam em consideração a força do público LGBT e não têm medo de criar polêmica com quem tem uma visão de mundo mais conservadora. Antes relegados, na maioria das vezes, a papeis cômicos que depreciavam sua condição, esses artistas agora reivindicam outro tipo de presença, mais complexa e variada, nos palcos e também no cinema. Isso se traduz em uma maior discussão sobre a representatividade dos travestis e trans nas artes cênicas e também lança luz sobre um segmento que, só em 2016, teve 144 homicídios registrados no Brasil, muitos deles com crueldade chocante.

No Recife, o espaço dado a atores e atrizes trans voltou a ser um assunto em pauta a partir de uma iniciativa do Coletivo Angu de Teatro, que começa, neste sábado, a ministrar um curso chamado Trans na cena, com atividades de iniciação teatral voltadas para esse público. Quem foi selecionado vai fazer exercícios variados e os alunos vão realizar uma demonstração de trabalho aberta ao público no dia 17 de maio.

Desde sua criação, em 2003, o Coletivo Angu de Teatro se interessou em abordar questões relativas à sexualidade e gênero, especialmente nas peças Ópera (2007) e Ossos (2016). “Sempre conversamos sobre questões desse universo e observamos que é muito difícil ter um aluno ou uma aluna trans em oficinas de teatro. Há, também, uma questão social: o mundo do trabalho ainda tem um certo preconceito em absorver essas pessoas e quisemos possibilitar um primeiro contato com as artes cênicas.  Queremos compartilhar nosso método de trabalho e mostrar o que pode ser um caminho profissional. Nosso desejo é colocar essa galera no mercado, mas de uma forma não-clichê. Por que uma mulher trans não pode, por exemplo, fazer um papel clássico como o de Julieta?”, defende o produtor do grupo, Tadeu Gondim.


Outra ação nesse sentido tem a intenção de levar ao palco as inquietações e desejos de quem é trans a partir da visão deles mesmos. Rodrigo Dourado, professor do departamento de Teatro da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisador de longa data de questões de gênero, pretende dirigir um espetáculo, com estreia ainda este ano, calcado no biodrama com um elenco composto por transexuais, em sua maioria alunos da instituição. “Esta é uma parceria entre o Teatro de Fronteira, coletivo do qual faço parte, e a diretoria LGBT da universidade. A ideia é falar sobre a experiência da violência transfóbica, definidora da experiência da comunidade trans. Também há uma vontade de humaniza-la, pois ela so chega para nós por meio do discurso médico, psiquiátrico. Essas pessoas são muito desumanizadas, medicalizadas. Muitos dos alunos começam a transicionar depois de entrar no curso e isso tira do corpo muitas amarras, muita repressão.”.


Esse tipo de ação beneficia diretamente atores e atrizes trans que já estão no mercado. É o caso de Tanit Rodrigues, de 21 anos, e Verônica Valente, de 27 anos, estudantes, respectivamente, do curso de teatro e de psicologia da UFPE. “A transição foi algo ocorrido muito junto com minha entrada na universidade. Embora sempre soubesse que era uma mulher, nunca houve a oportunidade de eu me expressar como tal. Foi na UFPE que entrei em contato com debates de gênero e me posicionei politicamente. Nunca senti um preconceito explícito, profissionalmente falando, e tive apoio familiar, mas percebi que muitas pessoas relutavam em me aceitar e tratar no feminino”, pontua Tanit.

Já Verônica trabalha como atriz desde 2009 e já realizou peças tanto em sua cidade natal, Orobó, no Agreste, quanto curtas-metragens no Recife. “No interior, eu percebia que perdia alguns personagens do sexo feminino por ser trans.  Em compensação, uma de minhas personagens no teatro foi uma mulher cisgênero e foi muito bom para mim enquanto mulher trans, pois percebi isso como uma conquista. É importante quebrar esse rórtulo de ator ou atriz trans fazer só personagem trans. Eu gostaria de falar para as pessoas como eu que você não é condicionado a nada, não está proibido porque o mercado é pequeno. Temos pouco espaço, mas precisamos lutar por representatividade. Me reconheço como uma pessoa de privilegios, mas a transfobia na sociedade nao quer saber se voce esta na universidade ou nao. Não existem diferenças entre nós. Somos iguais em vulnerabilidade, em sonhos, em humanidade”.

ATOR CISGÊNERO, ATRIZ TRANSGÊNERO

Em 2016, o monólogo Jr., com o ator Tatto Medinni, estreou no Recife e trouxe a história de Júnior, que se identificava como uma travesti mas sofria para afirmar essa condição. O espetáculo levou a uma discussão no cenário teatral sobre a validade de um ator cisgênero interpretar esse tipo de papel. Segundo Tatto, a orientação sexual e identidade de gênero não deveriam limitar a escolha de um intérprete. “Não acho que se combate a exclusão excluindo, mas sim proporcionando oportunidades. Durante a temporada do espetáculo, fizemos um debate pós-sessão e um espectador afirmou que seria mais interessante um travesti como a personagem. Eu já esperava esse tipo de reação, mas o que está em jogo é o trabalho do ator. Durante o processo de montagem, falei com muitos travestis e trans. Minha preocupação era a de não ser caricato. Eu queria saber quem eram essas pessoas no cotidiano, suas famílias, suas relações”.

Já Rodrigo Dourado tem uma visão diferente sobre esse tipo de questão. Segundo o professor, é necessário fazer o teatro abandonar um viés poetizado, distanciado do real com relação a papeis relacionados a travestis e transexuais. “Para mim, essa discussão é falsamente simétrica. Diz-se que ser ator ou atriz é algo independente do gênero. No entanto, não é verdade que qualquer ator ou atriz pode interpretar todos os papeis, pois os atores trans nao têm o mesmo espaço. A comunidade está pleiteando o direito de fazer parte desta cena. Na minha opinião,  um ator cis com um minimo de empatia com a comunidade trans vai dar espaço para que um ator trans interprete um personagem trans”.



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