Diario de Pernambuco
Busca
Música Clarice Falcão critica censura e reacende debate: 'É o ódio aos genitais' Banido do YouTube, o clipe da cantora pernambucana resgatou polêmica; pesquisadora comenta o "tabu" da nudez

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 22/12/2016 14:01 Atualizado em: 22/12/2016 13:25

Clipe de Eu escolhi você foi lançado na noite da última terça e removido pelo YouTube. Fotos: Youtube/Reprodução (clipe) e Lucas Bori/Divulgação (Clarice)
Clipe de Eu escolhi você foi lançado na noite da última terça e removido pelo YouTube. Fotos: Youtube/Reprodução (clipe) e Lucas Bori/Divulgação (Clarice)

Um monte de gente se divertindo com os próprios órgãos genitais. É como a cantora pernambucana Clarice Falcão define o videoclipe da música Eu escolhi você, lançado na última terça-feira em seu canal no YouTube. Ela se diz surpresa com a comoção que causou. Depois de rebater críticas, tenta afastar de si mesma termos como “genialidade”, “manifesto”, “loucura”, atrelados às centenas de comentários enviados a seus perfis virtuais nas últimas 48 horas.

Confira o roteiro de shows no Divirta-se


Clarice diz que o produto não é nada demais. “O clipe, em si, não tem nada de revolucionário, nada de genial, nem acho que é panfletário, não é um manifesto”, avalia a artista. A rejeição do público às cenas e a censura do vídeo - removido ontem pelo YouTube - é que lhe parecem relevantes. Reacendem os debates em torno da reprovação à nudez, freada nas redes sociais, um dos principais palcos de manifestação artística na atualidade.

Fechadas nos quadris de homens e mulheres, as imagens de Eu escolhi você geraram polêmica de imediato: enfeitados com luzes, plumas, adereços carnavalescos, genitais masculinos e femininos protagonizam o clipe, cujo desfecho põe em foco um vibrador, visto por mais de 200 mil pessoas nas duas primeiras horas de exibição. Eu escolhi você, dirigido por Pablo Monaqueze, com edição de Célio Porto e Phillipe Cardelli, foi lançado com restrições a menores de 18 anos.

“Eu escolhi você porque/Não está tão fácil assim de escolher/ Tem muita gente ruim/ E quando não é ruim, é porque não gosta de mim/Aí termina que no fim só tem você”, diz a letra da música, segunda faixa do disco Problema meu (Chevalier de Pas, disponível no Spotify), o mais recente de Clarice, lançado em fevereiro deste ano.

O clipe foi disponibilizado no Vimeo após censura no YouTube. Foto: Vimeo/Reprodução
O clipe foi disponibilizado no Vimeo após censura no YouTube. Foto: Vimeo/Reprodução
A problematização da nudez - e de seu veto - vai além de casos isolados: interfere no alcance de produções audiovisuais, fotográficas, plásticas, cênicas. Para a pesquisadora de gênero, feminismo e imagens Fernanda Capibaribe, professora de Comunicação Social na UFPE, a formação religiosa da sociedade ocidental contribui para a associação entre nudez e erotismo.

“Há uma contradição nos julgamentos. A mulher pode aparecer seminua numa propaganda de cerveja, se serve para incentivar o olhar falocêntrico do público masculino heterossexual, mas a mulher Clarice Falcão não tem o direito de, por conta própria e como enfrentamento, mostrar corpos nus”, pontua. Para ela, a internet ajuda a ampliar o acesso à nudez, ajudando a desconstruir tabus, mas é minada pela censura - “[a censura vai] da regulação estatal, como é o caso da China, à regulação nas redes sociais, nas quais as pessoas publicam posicionamentos, sendo muitos deles, reativos, conservadores”, analisa.

Embora as principais redes sociais (Instagram, Facebook, YouTube) mencionem a restrição em seus termos de uso, há brechas, incoerências. "Um vídeo que apresente nudez ou outro conteúdo de natureza sexual poderá ser permitido se o seu objetivo principal for didático, informativo, científico ou artístico, e não for injustificadamente gráfico”, diz o código do YouTube.

Clarice Falcão rebate: “Então, se o vídeo é artístico, categoria na qual eu acho que se encaixa, sendo um videoclipe de música, não seria censurado. Na verdade, eu nunca esperei que fosse essa gritaria toda. O clipe foi feito em casa, sem a menor pretensão, com amigos. Se o clipe tiver alguma importância, e eu acho que não tem, foi de sublinhar esse ódio, que eu acho incompreensível. É o ódio aos genitais.”

Ela não é a única a criticar a conduta. No nicho virtual, campanhas como a hashtag #FreeTheNipple (“liberdade aos mamilos) pregam a liberação da nudez e reprovam, ainda, o fato da restrição ser direcionada, sobretudo, às mulheres. Projetos como o #OriginalSinProject, criado pelo artista plástico brasileiro radicado na Alemanha André Levy, reforçam a corrente libertária: ele desenha roupas íntimas em pedras, com o intuito de repudiar o excesso de decoro.

>> Outras censuras

Caravaggio

No mês passado, o Facebook bloqueou telas do século 17 assinadas por Caravaggio, como Amor vincit omnia, compartilhadas por promotor de arte brasileiro. A obra retrata um cupido nu, cercado por instrumentos musicais, armadura e manuscrito. A censura foi amplamente criticada no meio artístico e classificada como “retrocesso.”

Karina Buhr
Em setembro do ano passado, a cantora e compositora Karina Buhr lançou o disco Selvática sob polêmicas. A capa, retrato da cantora com os seios à mostra, foi proibida no Facebook, dando origem à hashtag #selvatica. Mulheres pernambucanas posaram com os seios descobertos para as lentes do fotógrafo conterrâneo Beto Figueiroa, em apoio a Karina.

Vietnã
Em setembro deste ano, uma foto icônica da Guerra do Vietnã foi removida do Facebook. Feito pelo fotógrafo Nick Ut, o registro mostra a menina Kim Phuc correndo nua numa estrada após ataque norte-americano, em 1972. O Aftenposten, maior jornal da Noruega, chegou a publicar carta aberta criticando o posicionamento de Mark Zuckerberg, gerando grande repercussão nas redes ao acusá-lo de abuso de poder.

>> Entrevista: Fernanda Capibaribe, professora de Comunicação Social na UFPE e pesquisadora de gênero, feminismo e imagens


Nas duas primeiras horas no YouTube, foram mais de 200 mil visualizações. Foto: Vimeo/Reprodução
Nas duas primeiras horas no YouTube, foram mais de 200 mil visualizações. Foto: Vimeo/Reprodução
A nudez ainda é muito castigada? Por que é um tabu?

A nudez ainda é muito censurada de uma forma geral. Isso porque a nudez vem intimamente atrelada à ideia de erotismo/pornografia e por vários motivos, sendo o principal deles o nosso legado cristão/religioso, as referencias ao sexo são entendidas enquanto tabu. Obscenas, portanto. O sentido da palavra "obsceno" vem de "ob" (oposição) e "caenus" (sociedade). Então, engloda tudo o que ofende ou enfrenta uma ideia de bem-estar compartilhado. Na língua inglesa, esse sentido também se conecta à ideia de "off-scene", ou seja, tudo o que deve ficar "fora de cena". O sexo é talvez a temática que mais se encaixe nessa ideia, sendo entendido como um atentado ao pudor. E a nudez vem no pacote.

A internet contribui para desmistificar o tema? Como?
Alguns(mas) autores(as), tais como Linda Williams, têm reivindicado que após a internet o acesso à pornografia e a referências diversas ligadas ao sexo ficou muito mais fácil, o que trouxe para o debate a questão do tabu e da obscenidade. Ela reivindica, por exemplo, que temáticas ligadas ao sexo sejam cada vez mais debatidas, e que o sentido de "pornografia" deixe de ser obsceno e torne-se, na expressão que ela dá em inglês, "on-scene", ou seja, em cena. De fato, temos visto muito mais filmes, fotografias, animações e outros tipos de obras visuais que vão abordar a nudez e a sexualidade como forma de enfrentamento ao tabu do sexo. No entanto, não conseguimos modificar de uma hora para a outra, séculos de um legado cristão no ocidente, onde o desejo é ameaça e, portanto, deve ser controlado.

Alega-se que, enquanto cenas artísticas de nudez são censuradas, cenas de violência, estupro e sexualização da mulher são veiculadas. Concorda que há incoerência nas normas?
Há uma contradição nos julgamentos, porque há uma hipocrisia no trato social e um problema gravíssimo de naturalização de certas ideias em nossa sociedade. O Brasil, por exemplo, é um país onde a cultura do estupro está entranhada no trato social. Um país extremamente machista, atravessado pela naturalização das relações desiguais de sexo-gênero. Nessa desigualdade, os corpos de mulheres são ‘propriedade’ do olhar falocêntrico. Este - muitas vezes reproduzido por outras mulheres, mas majoritariamente por homens -, ao mesmo tempo em que é permissivo quanto ao abuso e a violência em diversos níveis praticada contra as mulheres e outros grupos LGBT, como se isso fosse "normal", também regula esses corpos, julgando quando sua aparição é bem-vinda ou não.

Acompanhe o Viver no Facebook:



MAIS NOTÍCIAS DO CANAL