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Música O reinado do brega pernambucano nos videoclipes; confira bastidores Gênero musical inspira documentário de Barbara Wagner e deposita entre três e sete novos vídeos na internet por semana

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 21/11/2016 20:27 Atualizado em: 21/11/2016 19:20

Bastidores: gravação de Tanta gente junta, videoclipe da Musa. Foto: Shilton Araújo/Esp.DP (Foto: Shilton Araújo/Esp.DP)
Bastidores: gravação de Tanta gente junta, videoclipe da Musa. Foto: Shilton Araújo/Esp.DP

“Viu como tudo muda?”, pergunta o produtor Victor Ronã, apontando a tela na qual surgem as imagens captadas pela câmera. “Só quem está aqui, nos bastidores, é que sabe onde estamos, como as coisas realmente são”, ele fala. O tom de voz é baixo, não pode interferir nas gravações. Victor circula entre os equipamentos, levanta e depois se acomoda, aperta uns botões, faz ajustes de som. Está num restaurante na Zona Oeste do Recife. Mas, no vídeo, o local se transforma: é maior, mais bonito, mais iluminado.

As lentes apontam para Priscila Senna, vocalista da Banda Musa. Em torno dela, uma equipe de cinco pessoas grava o videoclipe Tanta gente junta, novo lançamento do brega romântico pernambucano. A captação de imagens dura menos de uma hora. O tempo necessário para montagem da estrutura é quatro vezes maior.

A música é registrada duas, cinco, oito vezes. Nos intervalos, os assistentes de produção cantarolam o refrão. “Tanta gente junta, sem se amar / E nós dois separados, nos amando / Não entendo não”, diz a letra. É impossível não decorar: passa das 17h, e a canção está sendo reproduzida incessantemente desde as 13h, quando a equipe da ProRec - uma das principais produtoras de clipes no estado, a mais requisitada nos segmentos do brega e sertanejo - chegou à locação combinada.

A vocalista é filmada por diferentes ângulos durante uma tarde. A captação de imagens é editada pela ProRec. Foto: Shilton Araújo/Esp.DP
A vocalista é filmada por diferentes ângulos durante uma tarde. A captação de imagens é editada pela ProRec. Foto: Shilton Araújo/Esp.DP
Em paralelo à composição do cenário, se desenrola a produção da cantora, confiada aos pincéis de Flávio Hyhelli nos fundos do restaurante. Esse é o videoclipe de número 526 no catálogo da ProRec, fundada em 2005, e o primeiro deste ano para a Musa.

O segmento é movimentado no estado: somente no canal de Thiago Gravações no YouTube, principal via de divulgação de videoclipes pernambucanos do gênero brega, mais de 250 vídeos foram publicados em 2016, sendo mais da metade composta por produções do brega romântico e do bregafunk. Criado em 2012, o canal acumula mais de 120 milhões de visualizações e 208,4 mil inscritos.

“É a partir dos videoclipes que os artistas fecham contratos para shows. Os vídeos aumentam o alcance das músicas, das bandas. O gênero sertanejo é que rende mais acessos, mas o gênero brega é, sem dúvida, aquele com maior volume de produção. Recebo, em média, cinco vídeos por semana, mas costumo publicar três”, explica Thiago Matos, dono do canal. Para difundir as produções, ele recebe pagamento em dinheiro e firma parcerias - atualmente, o canal é sua principal fonde de renda fixa.

Nos bastidores, o volume de lançamentos, a agilidade das gravações e a fotografia dos videoclipes são considerados pontos cruciais para o sucesso na web. Segundo produtores e empresários do ramo, um vídeo “bomba” a partir dos 100 mil acessos, quando revela potencial para bater a marca de meio milhão de views, considerada excelente. Alguns ultrapassam 1 milhão de visualizações - é quando “viralizam” na rede. “A internet é fundamental para o crescimento das bandas. Particularmente, prefiro estar no palco em vez de ser filmada. Gosto dos shows, do contato direto com os fãs. Mas é com os clipes que ganhamos fama em outros estados, até fora do país”, avalia Priscila Senna.

Equipe da Pro-Rec investe em equipamentos e edição de imagens, entregando os videoclipes prontos em cerca de uma semana. Foto: Shilton Araújo/Esp.DP
Equipe da Pro-Rec investe em equipamentos e edição de imagens, entregando os videoclipes prontos em cerca de uma semana. Foto: Shilton Araújo/Esp.DP
Em Tanta gente junta, a Banda Musa emula características cênicas de videoclipes do sertanejo, tomando por referência os protagonizados pela goiana Marília Mendonça. É uma tendência recente. “Queremos trazer para o brega pernambucano esse formato de videoclipe que conta uma história, tem um enredo. Isso aproxima as músicas e a vida real, as pessoas se veem ali. É algo mais próximo do cinema, da telenovela”, diz Ítalo Monteiro, diretor de fotografia da ProRec.

Para o professor e pesquisador do departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Thiago Soares, os videoclipes pernambucanos de brega espelham elementos estéticos da cena mainstream e reproduzem o circuito produtivo característico da música de periferia internacional. Autor de A estética do videoclipe (Editora UFPB, esgotado), Soares está finalizando o livro Ninguém é perfeito e a vida é assim: a música brega de Pernambuco, cujo lançamento deve ocorrer no próximo ano. Para ele, o YouTube e os blogs dedicados ao brega são as principais vias de escoamento dos videoclipes locais - fortalecidas por fóruns online fomentados pelo público, nos quais constam críticas e recomendações, além do download de arquivos de áudio e gravações.

“Há figuras superimportantes no circuito dos videoclipes pernambucanos de brega. São empresários, produtores, donos de gravadoras. Na rede, eles acompanham a produção nacional e internacional de videoclipes, e, a partir disso, se apropriam de maneirismos estéticos, roteiros, direção. É o que o autor Henry Jenkins chama de letramento midiático: eles aprendem a fazer coisas pela internet”, analisa Thiago Soares. A constatação é elogiosa: a partir dela, o pesquisador procura explicar como o brega pernambucano reproduz o possível, nos bastidores e no resultado final, do modus operandi da música mainstream.

Nos videoclipes de brega, figurino, cenário e coreografia estão entre os elementos-chave das produções. Foto: Bárbara Wagner/Divulgação
Nos videoclipes de brega, figurino, cenário e coreografia estão entre os elementos-chave das produções. Foto: Bárbara Wagner/Divulgação


>> DUAS PERGUNTAS: Thiago Soares, professor e pesquisador do departamento de Comunicação da UFPE, autor do livro A estética do videoclipe (Editora UFPB)

Quais elementos estéticos diferenciam os videoclipes do gênero brega de outros videoclipes?
Não há elementos estéticos específicos que os diferenciem. São videoclipes produzidos, inclusive, de maneira muito semelhante a videoclipes clássicos, tentando trazer à tona, emular características dessas produções. O interessante é o espelhamento da cultura brega, da cultura de periferia, em relação a grande ícones da música internacional. Veem-se muitos clipes do universo brega que se assemelham a clipes de ícones da cultura pop. Mulher de um homem só, por exemplo, clipe da Banda Lapada, se assemelha muito ao clipe Love don't cost a thing. Todo o glamour, a composição. Há uma tentativa de espelhar e dialogar com a cultura mainstream.

Podemos dizer que a produção de videoclipes do gênero brega tem sua própria dinâmica, geralmente mais volumosa do que a produção de videoclipes de outros gêneros? 
O interessante, no brega, é perceber a própria dinâmica de lançamento dos produtos. Isso significa entender o grande volume de videoclipes como dinâmica mais ampla, referente ao sistema produtivo da música brega, da música periférica. Esse sistema não se ancora na noção de álbum, disco. Fica centrado na produção de singles, e os videoclipes são parte integrante desse sistema de lançamento das músicas. O videoclipe é a própria canção, ele sai junto com a música. Hoje, na música brega, você não frui apenas a música, você lança a música com o vídeo. Essa não é uma característica do brega pernambucano, mas da música de periferia. Se você observar o reggaeton, o kuduro, os gêneros de música periférica, todos têm esse sistema produtivo. Sejam videoclipes ao vivo, produzidos com narrativa, com roteiro.

>> CURIOSIDADES

Na chuva
Em maio, os MCs recifenses Shevchenko e Elloco lançaram o clipe Boy do bote, construído a partir de memes da internet. A letra é inspirada numa tentativa de roubo, registrada pelo celular de um passageiro de ônibus durante fortes chuvas no Recife: “Em pleno dia de chuva / tava tudo alagado / Eu fui filmar com o celular / pra deixar registrado / Na janela do busão / tava tudo tranquilo / Mas quando de repente / apareceu o sabido”. Teve 130 mil visualizações.

No ar
Uma banda de brega local chegou a solicitar à ProRec a produção de um videoclipe em um avião. A ideia é simular uma discussão amorosa a bordo da aeronave, e o artista sugeriu a instalação de câmera oculta, que registraria as cenas da briga - por cantores ou atores contratados - sem que passageiros soubessem da gravação. A demanda por lentes e iluminação específicas impossibilitou o trabalho. A produtora também não conseguiu autorização.

No frio
Gravado em Gramado (RS), o videoclipe Nosso relacionamento (Torpedo) foi o de maior custo entre os clipes produzidos pela ProRec (orçado R$ 60 mil). Foram seis dias de gravação. Custos de hospedagem, passagens aéreas e manutenção da equipe foram acrescidos ao contrato. A produção é reduzida: duas ou três pessoas se encarregam de todas as funções. Com a incidência de neblina, a equipe aproveitou o fenômeno como pano de fundo.

Documentário musical Estás vendo coisas, de Bárbara Wagner, retrata bastidores dos videoclipes de brega. Foto: Bárbara Wagner/Divulgação
Documentário musical Estás vendo coisas, de Bárbara Wagner, retrata bastidores dos videoclipes de brega. Foto: Bárbara Wagner/Divulgação

>> DOCUMENTÁRIO MUSICAL


Bárbara Wagner, brasiliense radicada em Pernambuco, trabalhava com fotografia documental há seis anos, quando concluiu que as imagens estáticas não seriam suficientes para transmitir o dinamismo da cena brega pernambucana. Era 2011. Em parceria com o artista Benjamin de Burca, decidiu se debruçar sobre a produção dos videoclipes locais de brega, dando início a uma cadeia de investigação do segmento, trazida à luz na última Bienal de São Paulo, no mês passado, com o lançamento do documentário musical Estás vendo coisas. Bárbara percorreu as principais casas de show dedicadas ao gênero brega na Região Metropolitana do Recife. Catalogou bandas, artistas solo, MCs. Chegou aos bastidores da produção: dos responsáveis pela sonoridade das músicas aos roteiristas dos videoclipes.

“Há produtores encarregados desses projetos. Basicamente, os MCs e os grupos de brega romântico vão até eles, apresentam as letras, e os produtores interpretam. O diretor de fotografia Ítalo Monteiro [ProRec] foi um nome de destaque nas nossas pesquisas. Ele percorre a cidade com um caminhão de equipamentos, tem experiência com cinema, se apropria de elementos estéticos da teledramaturgia para compor os videoclipes. Grava em academias de ginástica, motéis, restaurantes, aeroportos... Há, ainda, MCs que promovem os próprios vídeos, como o MC Gato”, conta Bárbara. Além da performance registrada pelas câmeras, ela investigou o desempenho de expoentes do brega sobre os palcos. Identificou os ritmos dos quais se apropriam os coreógrafos (jazz para o brega romântico e swingueira para o bregafunk), e a substituição de bailarinas por bailarinos.

Estás vendo coisas foi gravado em 2015, na boate Planeta Show (nos Torrões). Voltou os olhos de expositores, críticos e frequentadores de outros países para a cena pernambucana. Tem, por intuito, destrinchar as etapas de produção dos videoclipes, desconstruir e reposicionar o vocabulário do brega, suas ferramentas. “Acompanhamos a rotina do MC Pork, que também é cabeleireiro, e da cantora Dayana Paixão, que também é bombeira, entre o estúdio e o palco. Esses personagens nos interessaram muito porque um dos sentidos mais urgentes do documentário é proporcionar o entendimento de que brega é trabalho. Isso propõe uma mudança de paradigma sobre as noções de trabalho, vemos reis do brega que desenvolvem outras atividades profissionais em paralelo à vida artística”, comenta a fotógrafa.

Além dela e de Benjamin de Burca, o fotógrafo Pedro Sotero colaborou com o roteiro e as pesquisas necessárias ao filme - cujo título é inspirado na música É tudo ilusão, da banda Vício Louco. “O [jornal] The Guardian classificou o documentário como melancólico, estabeleceu relação entre ele e o momento político do país. Estamos orgulhosos do resultado. É um novo gênero, um documentário musical, com toques de ficção científica”, avalia Bárbara. Ela assina, ainda, uma série de 16 imagens - financiada pelo Instituto Moreira Salles - intitulada Mestres de cerimônias, também dedicada à produção de videoclipes do brega local.

>> NÚMEROS

1 semana
entre a captação de imagens e a conclusão do videoclipe.

3 a 7
Videoclipes do gênero brega lançados por semana no Recife.

R$ 1,5 mil
Custo mínimo para produzir um videoclipe de brega com produtora especializada.

100 mil
Acessos, no mínimo, para um clipe ser considerado bem-sucedido.

200 mil
Visualizações, em média, dos videoclipes publicados no canal de Thiago Gravações no YouTube.

R$ 700 mil
Investidos pela gravadora ProRec em equipamentos de filmagem e edição de vídeos.

1 milhão
Número de acessos ideal para um videoclipe viralizar na web. É a meta dos artistas locais.

>> MÍNIMOS DETALHES

Fugurino
As roupas dos videoclipes pernambucanos de brega são, em geral, escolhidas pelos próprios artistas. Em videoclipes mais informais, nos quais as vestimentas não interferem no enredo nem mantêm relação com a letra da música, eles aproveitam peças do próprio guarda-roupa. Em outros casos, o figurino é selecionado pelos produtores do videoclipe. “Já aluguei uma fantasia do Pikachu para Pika pika pikachu [MC Troia e Rei da Cacimbinha]. Em 90% dos casos, compramos roupas prontas, em lojas populares. Nos outros 10%, mandamos fazer com costureiras locais”, diz Victor Ronã, da ProRec.

Cenário
As locações são o principal desafio para os produtores locais de videoclipes. E o principal trunfo. Inspirados na teledramaturgia, criam cenários completos para abrigar os enredos sugeridos nas letras. “Temos tentado, cada vez mais, fugir dos estúdios e desenvolver projetos cenográficos. Isso transporta o telespectador para a história”, explica Ítalo Monteiro, diretor de fotografia da ProRec, que escolheu o restaurante Maria Maria, em Jardim São Paulo, como locação para Tanta gente junta. A gravadora é conhecida por levar os artistas a cenários como Gramado (Banda Torpedo) e Argentina (Metal e Cego). O aluguel dos espaços, hotéis e acessos turísticos ficam a cargo dos produtores.

Maquiagem
As cantoras pernambucanas de brega costumam ter maquiador próprio, responsável pelo visual delas em shows e videoclipes. Algumas elaboram a própria maquiagem. Flávio Hyhelli, beauty artist encarregado do visual de Priscila Senna, da Banda Musa, leva uma hora, em média, para preparar a cantora para as gravações. “As cores são escolhidas com base nas tendências das passarelas e no gosto pessoal das artistas. Em shows, a maquiagem é mais pesada, em função das luzes. Nos videoclipes, como as câmeras se aproximam muito do rosto dela, eu carrego menos a mão”, conta.

Elenco
Para a figuração, produtores de videoclipes anunciam o recrutamento nas redes sociais. Descrevem o perfil - aparência, faixa etária, estilo - que procuram, recebem fotos, testam os candidatos. Recorrem a agências de modelo em casos extremos, quando as características físicas são muito específicas. Alguns artistas recrutam bailarinos do próprio casting, além de amigos e familiares. Os cachês são negociados diretamente com a produção, que costuma se encarregar do transporte do elenco até a locação escolhida, onde oferecem alimentação e estrutura básica durante as gravações.

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