Cinema Elis chega aos cinemas sem autonomia da protagonista; confira entrevista Cinebiografia de Elis Regina estreia nesta quinta (24) nos cinemas brasileiros, dirigida por Hugo Prata e protagonizada por Andreia Horta

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 24/11/2016 08:12 Atualizado em: 24/11/2016 11:34

Semelhança física entre Andreia Horta e Elis Regina enriquece construção da personagem. Foto: Downtown Filmes/Divulgação
Semelhança física entre Andreia Horta e Elis Regina enriquece construção da personagem. Foto: Downtown Filmes/Divulgação

“Olhando para esse monte de estrela, a gente se dá conta de que o universo é muito maior do que essa caretice que está rolando...” A frase dita pelo escritor e produtor musical Nelson Motta (Rodrigo Pandolfo) em Elis, sintetiza parte da essência do filme - um repúdio à censura e ao conservadorismo, tendo a ditadura militar como pano de fundo e a voz da protagonista como símbolo de revolução - e anuncia um dos momentos menos dramáticos, mas mais relevantes da trama.

Na suntuosa casa onde vivia com Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado), Elis Regina (Andreia Horta) trai o marido com Motta, e a cena emancipa a personagem. Dura pouco. Mas é libertadora. Enquanto cinebiografia da intempestiva e complexa Elis Regina, ícone da gênese da MPB, Elis chega aos cinemas tropeçando no erro de muito sujeitá-la aos cuidados e recomendações das figuras masculinas à sua volta.

Relação com Bôscoli é tumultuada, e ele age como refém dos próprios desvios. Foto: Downtown Filmes/Divulgação
Relação com Bôscoli é tumultuada, e ele age como refém dos próprios desvios. Foto: Downtown Filmes/Divulgação
Os fatos, encadeados em ordem cronológica - sem flashbacks ou grandes saltos - parecem, muitas vezes, conduzidos a partir da influência de homens: entram em cena o pai, Romeu Costa (Zécarlos Machado), Luís Carlos Miele (Lúcio Mauro Filho), Bôscoli, César Camargo Mariano (Caco Ciocler), empresários, artistas, jornalistas, produtores, militares. Diminuem Elis.

Tiram dela, entre decisões corriqueiras e graves, a de cortar o cabelo no estilo pixie, traço marcante da cantora. A mudança é atribuída a uma sugestão de Ronaldo Bôscoli, retratado como mulherengo refém dos próprios defeitos. É um respiro quando a densidade de Elis se manifesta nos trejeitos e rompantes que lhe renderam o apelido de “pimentinha”, enriquecidos pela semelhança física com Andreia Horta. Em alguns momentos, a carga emocional dela se torna até desconfortável.

O segundo marido, o pianista Cesar Mariano, é por algum tempo a redenção de Elis. Foto: Downtown Filmes/Divulgação
O segundo marido, o pianista Cesar Mariano, é por algum tempo a redenção de Elis. Foto: Downtown Filmes/Divulgação
“Andreia tinha um processo intenso de concentração e já deixava a cadeira de maquiagem com semblante carregado, com a expressão que as cenas pediam. Quando eram cenas pesadas, a energia dela se espalhava por todo o set de filmagem. Ficávamos tensos, carregados. O filme captou um pouco dessa energia”, avalia o diretor, Hugo Prata. Ele também assina o roteiro, ao lado de Luiz Bolognesi e Vera Egito, baseado na ascensão, fama, perturbação, redenção, angústia e solidão de Elis, nessa ordem.

Assim como a mãe da artista, Ercy Carvalho, parceiros musicais e passagens marcantes da carreira são omitidos por completo no longa, gravado durante seis semanas em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Paris. Os filhos João Marcelo, Maria Rita e Pedro Mariano ajudam a revelar uma Elis afável, serena - e também insegura -, contraponto da força impressionante de sua voz.

ENTREVISTA: Hugo Prata, diretor e roteirista de Elis

Como escolheu o recorte de tempo que abordaria no roteiro, dos 18 anos à morte de Elis? Por que esse intervalo?
Foi muito, muito trabalhoso selecionar os fatos da vida dela. Cabe pouquíssima coisa em duas horas, e eu precisava ser muito cuidadoso sobre para onde levaria nosso filme... Às vezes, passagens importantes ficam de fora. Dói muito isso, mas não tem jeito. Decidimos antes das gravações. Tudo que nós filmamos foi para a tela.

Como se deu a colaboração da família na reconstrução dos fatos?
A família dela foi incrível. Eles nos deram total liberdade, não ficaram acompanhando. Não exigiram nada, não impediram nada também. Eu queria dividir todas as etapas com eles, oferecia para lhes mostrar os roteiros, as etapas das gravações... e eles diziam que não. Não, Hugo, faz do seu jeito. Só viram tudo pronto, finalizado há poucas semanas. Eu achei isso muito elegante. São artistas dando liberdade a outros artistas.

Relação de Elis Regina com a ditadura militar permeia todo o recorte temporal do filme. Foto: Downtown Filmes/Divulgação
Relação de Elis Regina com a ditadura militar permeia todo o recorte temporal do filme. Foto: Downtown Filmes/Divulgação
Sente que a questão das drogas foi atenuada no filme?

Na verdade, eu não tentei atenuar a questão das drogas. As pessoas podem sentir um pouco isso porque as drogas entraram na vida dela nos momentos finais. Ela não foi “doidona” a vida toda. Elis se envolveu com drogas nos últimos seis, oito meses de vida. Seria até melhor para a gente se fôssemos plantando esse assunto aos poucos, mas ele chega de repente. É porque a realidade foi assim. O filme representa bem a vida dela, com fidelidade aos fatos.

A morte precoce de Elis chocou o país. Como foi o desafio de adaptar esse incidente para o cinema?
A princípio, na nossa primeira ideia, o filme terminaria depois da gravação de O bêbado e a equilibrista. Como o roteiro acompanha os anos de chumbo, a ditadura militar, pensamos que funcionaria bem assim. O filme começa com Elis chegando ao Rio no ano do golpe. Pensamos em encerrar com a gravação de O bêbado e a equilibrista porque a música virou hino da anistia, encerraríamos um ciclo. Depois, analisando o arco dramático da história, percebemos que precisávamos encarar a morte dela. Foi traumática para todo mundo, é verdade. Mas optamos por encará-la e fomos até o fim.

Como foi a construção de Elis a partir de Andreia Horta? Poderia falar um pouco sobre a transformação dela?
Andreia teve três meses de preparação intensa para viver esse papel. Ela teve coachings, professores de canto, de corpo, que lhe ensinaram a cantar e se movimentar como Elis. Ela trabalhou intensamente nisso, de segunda a sábado, das 9h às 17h. Ela teve acesso a um longo material de Elis, nós fizemos um grande arquivo para ela estudar. Foi muito intenso, ela foi muito focada. Foi uma grande lapidação para fazer nascer aquela mulher dentro de Andreia. Depois ensaiamos com todo o elenco. Por último, veio a caracterização. E foi fundamental. Ela cortou o cabelo uma semana antes do filme. Ficou perfeita.

O filme deixa a sensação de densidade, drama. Em algumas passagens, chega a ser pesado se deixar envolver por Elis. Essa carga era sentida também nos bastidores, durante as filmagens?
Sim, muitíssimo. Havia cenas muito fortes... A questão das drogas, as separações de Elis, a relação dela com o pai. A morte dela, sobretudo. Nós sentíamos a energia pesar. Andreia tinha um processo intenso de concentração, ela já já deixava a cadeira de maquiagem com semblante carregado, com a expressão que as cenas pediam. Então, quando eram cenas pesadas, a energia dela se espalhava por todo o set de filmagem. Aquilo tocava todo mundo. Ficávamos todos muito tensos, carregados. O filme tem um pouco dessa energia, sim.

Que critérios usou para omitir alguns personagens da trama, como a mãe de Elis, que não é retratada no filme?
Não cabe tudo, infelizmente. Você tem que ir condensando as coisas. No núcleo familiar, muito mais nos interessava a relação dela com o pai. Ela sustentava a familia desde os 13 anos, e o vínculo com o pai envolvia uma outra questão muito complexa, que era a questão do dinheiro. Isso tinha um apelo muito maior para o filme. Não havia muito conflito entre Elis e a mãe. E dramaturgia se faz de conflitos. Por isso, optamos por explorar a relação com o pai. Quando comecei a produzir o filme, Dona Ercy [Carvalho], a mãe de Elis, ainda estava viva. Passei uma tarde na casa dela, conversamos muito. Eu, ela e Pedro [Mariano]. Muitos personagens ficaram de fora, muitas canções foram cortadas também.

Considera significativa a estreia do filme, no qual a ditadura militar se faz tão presente, no momento de crise política que o país atravessa?
Não pensei muito nisso, eu não vejo paralelo... A gente não pode comparar os dias de hoje com aqueles dias. Ali, a barra era muito mais pesada. Muito mais. É claro que são dias de luta, dias difíceis, de conflito. Mas, a liberdade de expressão impera. Naquele tempo, era o oposto. Atores apanhavam no palco. Pessoas eram presas, torturadas, exiladas. Eu não gosto de comparar, sou cauteloso ao fazer esse paralelo. Sei que são dias de luta, mas não se compara a gravidade. Hoje, todo mundo fala mal de um, fala mal de outro. Tem gente presa de um lado, gente presa do outro. Essa comparação seria injusta com quem viveu aquela fase. Nós estamos todos aqui, fazendo o que bem queremos.

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