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Música A história da representação LGBT na música brasileira vira livro Pesquisador destrincha sucessos de Tuca, Marina Lima, Cássia Eller e outros nomes da MPB em livro sobre o tema

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 20/11/2016 14:51 Atualizado em: 21/11/2016 17:25

Cássia Eller é um dos ícones da representação LGBT sobre os palcos nacionais. Foto: Paulo Henrique Fontenelle/Acervo/Divulgação
Cássia Eller é um dos ícones da representação LGBT sobre os palcos nacionais. Foto: Paulo Henrique Fontenelle/Acervo/Divulgação


Dois anos após a morte do roqueiro baiano Raul Seixas, o álbum póstumo As profecias (1991) trouxe à tona gravação pouco conhecida de Rock das aranhas, uma metáfora do envolvimento sexual entre duas mulheres, assistido por um homem cujo desejo é participar da cena. Na versão, registrada ao vivo, o músico dedica a letra às cantoras Maria Bethânia, Gal Costa e Simone. Acrescenta, não sem ironia, um “com todo respeito”. E desrespeita.

Pejorativos, versos e dedicatória não somaram força, nem significado, à representação LGBT na música popular brasileira da época. São criticados no recém-lançado Nós duas: As representações LGBT na canção brasileira (Lápis Roxo, gratuito), um tratado das contribuições de artistas como Tuca, Ney Matogrosso, Cássia Eller e Marina Lima à diversidade sobre os palcos. Assinado pelo pesquisador paulistano Renato Gonçalves, o livro revela “desfavores” como o de Raul e lança luz sobre nomes pioneiros das questões de sexualidade e gênero na MPB.

Raul Seixas fez "desfavor" à representação LGBT com Rock das Aranhas. Foto: TV Brasil/Divulgação
Raul Seixas fez "desfavor" à representação LGBT com Rock das Aranhas. Foto: TV Brasil/Divulgação
A partir de 30 canções, lançadas entre 1971 e 2015, Gonçalves reconstroi a trilha da representação LGBT nos palcos e estúdios brasileiros, problematizando, a partir delas, questões socio-culturais como identificação com o próprio corpo, apoio familiar, marginalização dos travestis e opinião pública quanto à sexualidade dos intérpretes. Mesmo que seja eu (Erasmo Carlos/Roberto Carlos), Geni e o Zepelim (Chico Buarque) e O vira (João Ricardo/Luhli) estão na lista, esmiuçada durante aproximadamente dois anos a partir de cem canções previamente listadas. “Optei pelas que me permitissem encontrar eixos de discussão além da música”, diz o pesquisador, mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP).

Ele prefere não classificar a publicação como tratado histórico, mas como discussão multidisciplinar. Para desenvolvê-la, toma por referência obras clássicas da comunicação, do feminismo e da psicanálise. História da sexualidade 1: A vontade de saber, de Michel Foucault, O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, e O mal-estar na civilização: Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos, de Sigmund Freud, estão entre as fontes da pesquisa, dedicada às décadas passadas - salvo exceções como Benedita (Celso Sim/Pepê Mata Machado/ Joana Barossi/ Fernanda Diamant), do álbum A mulher do fim do mundo (2015), de Elza Soares, e a versão de Alice Caymmi para Homem (Caetano Veloso), em Rainha dos raios (2014).

Ney Matogrosso foi um dos pioneiros na representatividade gay na MPB. Foto: Canal Brasil/Divulgação
Ney Matogrosso foi um dos pioneiros na representatividade gay na MPB. Foto: Canal Brasil/Divulgação
As músicas destrinchadas em Nós duas apontam, em síntese, a gênese e o fortalecimento do movimento LGBT na MPB. Lançam luz, mais precisamente, sobre os anos 1970: “Cada época teve volume produtivo relevante, e falo de qualidade e relevância, não só de quantidade. Mas a década de 1970 merece destaque, não só pelo pioneirismo, mas pela resistência frente a um aparelho de repressão e censura institucionalizada”, avalia Gonçalves. Naquela década, Elis Regina, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Rita Lee e Milton Nascimento estavam entre os encarregados de cantar alternativas ao binarismo de gênero (masculino ou feminino).

“Esse resgate é primordial para entender as resistências políticas da época, a aceitação por parte do público, além de outras dimensões estéticas e culturais que contextualizam o fortalecimento das representações LGBT na música com o passar do tempo”, analisa o pesquisador, assistente social e mestre em psicologia Luiz Braúna, integrante do Núcleo de Pesquisas em Gênero e Masculinidades (Gema) da Universidade Federal de Pernambuco. Nesse contexto, se destaca a cantora Tuca, apontada em Nós duas: As representações LGBT na canção brasileira como grande precursora da diversidade na cena nacional.

Em 1974, o último LP da carreira dela, Drácula, I love you, faz uma ode às “transgressões” do amor convencional. “Quando amanhecer / você vai entrar dentro do futuro”, diz um trecho de Girl (Prioli/Tuca), faixa mais emblemática do álbum, na qual uma mulher convida outra ao envolvimento. “Trazer à tona a obra de Tuca é mais do que uma mera curiosidade. Nos faz refletir sobre quantas expressões LGBT surgiram na canção brasileira e quantas, no curso da história, foram ou são esquecidas, relegadas e até mesmo silenciadas”, pontua o autor do livro.

Versão de Marina Lima para Mesmo que seja eu é considerada um marco segundo a pesquisa. Foto: Paulo Mancini/Divulgação
Versão de Marina Lima para Mesmo que seja eu é considerada um marco segundo a pesquisa. Foto: Paulo Mancini/Divulgação
A partir do levantamento articulado por Gonçalves, é possível observar a força da música popular na legitimação de códigos sociais, bem como no rompimento de padrões - ou na perpetuação destes. “Em Rock das aranhas, Raul Seixas se vale de uma simbologia pejorativa para desqualificar o prazer do sexo entre mulheres. Promove, ainda, um discurso ‘corretivo’ ao falar da ‘cobra’ que quer se enfiar entre as ‘aranhas’ e ensinar ‘como é que é certo’”, pontua Braúna. É essa postura que o livro se propõe a combater, creditando à música popular a capacidade - e, mais além, a responsabilidade - de representar os LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), atuando como ferramenta de combate aos preconceitos de gênero e sexual.

>> ATUALIDADE: Ecos dos anos 1970

Em Nós duas: As representações LGBT na canção brasileira, Renato Gonçalves exclui das pesquisas nomes como Liniker, Lineker, As Bahias e a Cozinha Mineira e o pernambucano Johnny Hooker, expoentes da representação LGBT na música brasileira atual. A decisão visa conferir protagonismo a nomes pioneiros - Ney Matogrosso, Rita Lee, Chico Buarque, Marina Lima - e desvendar como o mercado da música brasileira foi “preparado” para os artistas atuais. “Fico muito feliz que essa nova onda de artistas tenha explorado outras sonoridades e outras questões LGBT, como a afirmação coletiva e a estética queer. Porém, percebo que muitas vezes o público desses mesmos artistas desconhece a trajetória da questão LGBT na canção brasileira, que nos conduz até os dias atuais”, observa o autor.

Liniker é um dos principais expoentes da representação LGBT na atualidade. Foto: YouTube/Reprodução
Liniker é um dos principais expoentes da representação LGBT na atualidade. Foto: YouTube/Reprodução
“Essa resistência [dos anos 1970] apontada no livro é um aprendizado que devemos voltar a empregar nos próximos anos no Brasil, em função de um grande movimento disposto a negar direitos civis LGBT ganhando força por aqui”, avalia Gonçalves. A forma como os músicos da chamada Geração Tombamento (movimento atual que se vale de elementos da estética negra e de letras politizadas para se impor) se apropria de performances sensuais e figurinos andróginos reforça a questão da representatividade - LGBT e de gênero - sobre os palcos.

Muitos se assumem homossexuais ou, como Liniker, rejeitam o binarismo de gênero, posicionamentos também políticos. O pesquisador pernambucano Luiz Braúna, do Gema/UFPE, avalia a postura como fortalecedora das causas LGBT: “Principalmente na conjuntura atual, com forte fundamentalismo religioso, retrocesso nas conquistas sociais e violação dos direitos humanos. É bem relevante e oportuno que os artistas, caso realmente desejem, façam uso desse amplo acesso aos meios de comunicação e tornem visível as diferentes formas de vivenciar a diversidade sexual e de gênero”, analisa.

Tomando por base os nomes em destaque no presente, Gonçalves prevê: “Cada vez mais, a estética queer estará presente. Com ela, o borramento das bordas históricas entre o que é ser homem ou ser mulher. É um momento de desconstrução, e ele veio para ficar.”

>> DUAS PERGUNTAS: Thiago Rocha, pesquisador, educador social do Instituto Papai e coordenador do Fórum LGBT de Pernambuco

Qual a força da música na conquista de mais espaço para os LGBTs?

A música sempre foi, na história do Brasil, especialmente desde o Tropicalismo, um movimento muito aguerrido de desafios. Uma das primeiras referências é Ney Matogrosso, que desafiou tudo e todos através de sua forma de se expressar, do seu visual andrógino. O movimento LGBT vem ganhando forças desde então. E a música tem papel fundamental nisso. A reboque, cresce também a cidadania LGBT, a conquista de direitos, o respeito da sociedade. Há uma força em atuação, e, na música, ela é ainda mais poderosa. Quando um artista fala, ele fala para milhões. Um músico que leva a representatividade LGBT aos palcos alcança milhões de fãs, provoca a reflexão. É como um beijo gay na novela das oito. As pessoas acham que é bobagem, perguntam por que comemoramos tanto quando isso ocorre. Nós comemoramos porque isso serve para naturalizar as coisas. É fundamental ter artistas cantando sobre o amor gay, se assumindo gays. Na música, nomes como Liniker, Johnny Hooker, além das drags queens cantoras, fortalecem a causa.

Como avalia a representatividade LGBT nas manifestações artísticas em geral, ao longo das últimas décadas? O espaço vem crescendo?

Ao mesmo tempo que observamos crescimentos, conquistas, há retrocessos. No próximo ano, teremos prefeituras ocupadas por prefeitos ligados a instituições religiosas. Tememos, com isso, o travamento de várias politicas conquistadas em prol dos LGBTs. A Parada da Diversidade, por exemplo, é uma forma artística de levar a fala LGBT à sociedade em geral. Não sabemos qual será o destino dessa manifestação. Por outro lado, precisamos reconhecer que há artistas que persistem nessa missão [da representatividade LGBT] e a cada dia ganham mais público. Mas é notável que quando você é gay, você tem que mostrar uma arte realmente muito boa, além de simplesmente boa, porque você é mais cobrado. Para serem aceitos, artistas LGBT têm que ser excelentes. É como se precisassem provar que merecem estar ali, apesar de alguma coisa. Isso é injusto.

>> LINHA DO TEMPO: As músicas e os significados

Bárbara, de Chico Buarque, é uma das canções precursoras da representação LGBT. Foto: Nando Chiappetta/DP
Bárbara, de Chico Buarque, é uma das canções precursoras da representação LGBT. Foto: Nando Chiappetta/DP
1973
Bárbara (Chico Buarque/Ruy Guerra)


Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor, vem me buscar

O meu destino é caminhar assim
Desesperada e nua
Sabendo que no fim da noite serei tua

Significado:
O ano é 1973. A questão LGBT, então censurada, surge de forma representativa com as personagens Bárbara e Ana, que compõem a peça Calabar: o elogio da traição, de1973, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Calabar foi vetada pela ditadura, mas foram autorizadas a publicação do texto e a comercialização da trilha sonora no LP Chico canta (1973). No enredo, Bárbara fica viúva de Calabar e acaba se prostituindo, ao lado de Ana de Amsterdã. As duas protagonizam cenas de afeto e intimidade. Num dado momento, Ana se declara a Bárbara - “Te quero muito, mulher”, ela diz - e ambas interpretam a música Bárbara.

1975
Paula e Bebeto (Caetano Veloso/Milton Nascimento)


Vida vida que amor brincadeira, vera
Eles amaram de qualquer maneira, vera
Qualquer maneira de amor vale a pena
Qualquer maneira de amor vale amar

Pena que pena que coisa bonita, diga
Qual a palavra que nunca foi dita, diga
Qualquer maneira de amor vale aquela
Qualquer maneira de amor vale amar
Qualquer maneira de amor vale a pena
Qualquer maneira de amor valerá

Significado: O ano é 1975. A representação LGBT na música popular brasileira ainda está em fase embrionária. Curiosamente, Paula e Bebeto se torna um hino que vai perdurar por décadas, embora não haja um romance homoafetivo descrito nos versos. Não traz personagem, eu lírico ou narrador LGBT, assim como não menciona algum gênero ou orientação sexual que conteste a heteronormatividade, mas traz versos emblemáticos sobre o amor livre. Tornou-se patrimônio dos movimentos LGBT ao registrar que toda forma de amor vale a pena e deve ser aceita.

1979
Geni e o zepelim (Chico Buarque)


Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato (...)

Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!

Significado:
O ano é 1978. Geni e o zepelim retrata a exclusão vivida por travestis e transexuais. Na trilha da peça Ópera do malandro (1978), de Chico Buarque, a travesti Geni ocupa papel dúbio de marginalização e aceitação. Geni é tratada pelas demais personagens por meio de artigos femininos e, às vezes, chamada de forma pejorativa pela alcunha de “Genival”, seu nome de registro. Uma das principais personagens que violentam Geni é o inspetor Chaves, que, ao longo da peça, a xinga diversas vezes de “bichona” e “veado puto”.

1982
A nível de... (Aldir Blanc/João Bosco)


Yolanda e Adelina
são muito unidas
e se fazem companhia
todo domingo
que os maridos vão pro jogo

Yolanda aposta
que assim a nível de Proposta
o casamento anda uma bosta
e a Adelina não discorda.

Significado:
O ano é 1982. Aqui, a composição narra uma troca de casais heteronormativos que se descobrem homossexuais. Yolanda e Adelina de um lado, os maridos Vanderley e Odilon do outro. Além de gostos heteronormativos dos personagens, há a ironia ao relacionamento matrimonial falido entre eles, cujos desejos reais se revelam ao longo da canção.

Cássia Eller, que assumia a homossexualidade fora dos palcos, deu voz à canção Rubens. Foto: H20 Filmes/Reprodução
Cássia Eller, que assumia a homossexualidade fora dos palcos, deu voz à canção Rubens. Foto: H20 Filmes/Reprodução
1986
Rubens (Mário Manga)


Rubens, não dá
A gente é homem
O povo vai estranhar
Rubens, para de rir
Se a tua família descobre
Eles vão querer nos engolir

A sociedade não gosta
O pessoal acha estranho (...)
Minha mãe teria um ataque
Teu pai, uma paralisia
Se por acaso soubessem
Que a gente transou um dia

Significado: O ano é 1986. O grupo paulistano Premeditando o Breque, formado por alunos da USP, lança Rubens no LP Grande coisa. A música é direta: conta a história de dois jovens apaixonados um pelo outro, em conflito com os julgamentos da família e da sociedade. Apesar do tom humorístico, Rubens não desqualifica a questão do preconceito, mas engrandece-a. Nas primeiras estrofes, o eu lírico se coloca diante de uma descoberta sexual e de seu objeto de desejo. Pouco a pouco, vai revelando sonhos, desejos e hesitações. A música ganha popularidade nos anos 1990, na voz de Cássia Eller, figura simbólica para a representatividade LGBT.

2006
Homens e mulheres (Ana Carolina)


Eu gosto de homens e de mulheres
E você o que prefere? E você o que prefere?
Eu gosto de homens e de mulheres
E você o que prefere? E você o que prefere?

Homens que dançam tango
Mulheres que acordam cedo
Homens que guardam as datas
Mulheres que não sentem medo

Significado: O ano é 2006. A ideia é promover a aceitação da bissexualidade, das diferentes preferências e identidades de gênero. Após uma afirmação, o eu lírico da música abre discussão que envolve não apenas sexualidade, mas preferências em geral. Sinaliza que cabe ao indivíduo fazer escolhas, sem imposição de qualquer norma sexual. Semelhante postura contestadora aparece em De pés no chão, de Rita Lee, faixa do LP Atrás do porto tem uma cidade, lançado em 1974.

2015
Benedita (Celso Sim/Pepê Mata Machado/Joana Barossi/Fernanda Diamant)


Benedito é uma fera ferida
Traz na carne uma bala perdida
Uma bala de prata guardada
Pro meganha incauto, arremata
Arremata, arremata, arremata

Ele que surge naquela esquina
É bem mais que uma menina
Benedita é sua alcunha
E da muda não tem testemunha

Significado: Faixa do álbum A mulher do fim do mundo, de Elza Soares, Benedita fala de uma travesti que se prostitui e está pronta para revidar os ataques que sofre. Ela revela que a polícia planeja persegui-la, num ataque na “zona do crack”, na região central de São Paulo, mas Benedita - também chamada de Benedito - está armada com uma navalha. Além das desigualdades sociais, a letra denuncia a perseguição aos travestis e a transfobia do qual são vítimas.

>> O LIVRO: Como fazer download gratuito

O título, Nós duas, é inspirado em duas canções abordadas na pesquisa: Bárbara (Chico Buarque/Ruy Guerra) e Lizete (Kiko Dinucci/Jonathan Silva), sendo a primeira de 1973 e a segunda, 2013. A expressão “nós duas” remete à relação homossexual entre duas mulheres. A obra está disponível para download gratuito no site: www.nosduaslgbt.com.br

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