Especial Utopia de Augusto Boal segue viva em Pernambuco Série revela relação do teatrólogo com o estado e a influência dele hoje em grupos locais de teatro

Por: Júlia Schiaffarino

Por: Isabelle Barros

Publicado em: 17/09/2016 15:58 Atualizado em:

Subversivo das palavras, utópico inquieto, o teatrólogo Augusto Boal (1931-2009) segue vivo no caos de Santo Amaro, bairro central do Recife. Ensina protagonismo a uma fábrica de sonhos e respira a transformação do Teatro do Oprimido (TO) cada vez que um dos jovens do Bando de Teatro Eu Já Disse Tudo pisa forte em cena, reconquistando o direito à palavra, tornando-se “espectator”.  A relação de Boal com Pernambuco, porém, vem de antes. Começou ainda na década de 1960, quando  na busca pela simbiose teatro-povo, entrou em contato com as Ligas. Coube a um agricultor plantar uma das primeiras sementes que serviu de base para a sistematização, mais tarde, do método do Teatro do Oprimido. Esse diálogo com o estado, bem como os 85 anos que completaria, se vivo, e os 30 anos do Centro do Oprimido (CTO), símbolo do surgimento do método no Brasil, ambos este ano, são tema da série Boal Vivo, que começa nesta edição e segue até a próxima terça.

Nos próximos dias traremos um pouco do teatro à Boal. Na segunda-feira, as palavras e histórias são emprestadas pelo Nextos, que reúne dois atores de formação, trabalhando com temáticas como prisão e a violência contra a mulher. Terça-feira ressurgem os atores do Bando Teatro, braço do projeto Fábrica que soma mais de 30 jovens com histórias e trajetórias heterogêneas - usuários e ex-usuários de drogas, vítimas de abuso sexual, pessoas que viveram o mundo do tráfico e da prostituição, homossexuais, transexuais e moradores e ex-moradores de rua. Seis deles estão presentes na imagem que ilustra esta página. Todos do elenco da peça Os sete cracks, melhor síntese de técnicas-chave do Teatro do Oprimido, ao mesmo tempo em que leva para cena temas como drogas e violência urbana.

Augusto Boal é um dos principais teatrólogos brasileiros não apenas por ter dominado a arte da cena - poderosa linguagem - mas por dedicar a vida para que, abertas as cortinas de um teatro “infinito”, lá estivesse o “povo”. Cabelos desgrenhados, falar agitado, tinha necessidade de gente e olhos atentos de quem aprendeu a observar os mil jeitos humanos atrás do balcão da padaria do pai, no bairro da Penha, Rio de Janeiro. “Boal, antes de tudo, era uma pessoa e isso é o mais legal. As pessoas idealizavam muito ele e ele costumava brincar: às vezes passo e me olham de um jeito que tenho vontade de sair correndo com medo que coloquem em um museu... Mas a maior característica como teatrólogo é a de querer colocar a arte a serviço da vida, da sociedade e das mudanças”, comentou a atriz,  curinga do TO e autora do livro Raízes e asas do Teatro do Oprimido Bárbara Santos. Boal faleceu aos 78 anos ainda criando, preocupado em como o oprimido pode dar vazão à sua maneira de entender o mundo.

Desafiados a resistir, os jovens do Fábrica têm respondido a essa preocupação daquele Boal revolucionário que, certa vez, questionado sobre como gostaria de ser lembrado, disse: “Gostaria de ser lembrado na prática, por pessoas que estão fazendo o futuro”. Sob a direção do arte-educador Genivaldo Francisco, os jovens do Fábrica não têm sequer uma sala para chamar de sua. Pedem teto emprestado para ensaio. “Somos nômades de espaço”, diz Genivaldo.

Ainda assim, com maturidade de profissionais, souberam se apropriar do teatro e da palavra, tanto em cena, quanto fora dela. Todo o restante do espetáculo, além palco, é feito unicamente pelos integrantes do Fábrica. “Se tiver que fazer um projeto eles buscam alguém que saiba a técnica para ensinar e, então, eles fazem o projeto. Luz, figurino e até a venda dos ingressos. São eles que executam tudo. O teatro é deles”. Para além dos espetáculos, a palavra ecoa. “Aqui eles aprendem a bater nas portas, ir atrás dos seus direitos, reivindicar. Aprendem a se posicionar, assim como se posicionam quando estão numa peça”.

A peça Os sete cracks é criada a partir das histórias de cada um dos sete personagens principais. “São histórias muito impactantes. Eu entro em cena e faço o papel do mediador e eles são corajosos porque realmente falam tudo. Vão para o palco como artistas, mas sabendo que vão falar de algo real. Teve uma menina violentada pelo pai ainda criança, no dia em que ganhou um brinquedo que ela sonhava ter. Ela conta assim porque chegou na Ponte do Limoeiro e caiu na prostituição. Nós produzimos para que ela ganhasse novamente aquele brinquedo em cena. Na hora ela disse: ‘eu quero esse brinquedo, mas eu recebo ele hoje porque é dado de coração’”.

Outra história reproduzida no palco foi o de Íris Márcia, ex-moradora de rua que, até o mês passado, viva embaixo da Ponte do Limoeiro. “Está vendo esses sacos? São as coisas dela que deixa aqui. É a vida dela porque ela mora na rua, mas te digo que todo o ensaio ela está presente”, comentou Genivaldo, há cerca de um mês, apontando para dois sacos de lixo com roupas no canto de uma sala. No processo de reescrita da própria história, Íris conseguiu um aluguel social e hoje se divide entre o teatro e a busca de um emprego. Segue no Fábrica e passou a integrar o elenco principal do Fábrica.

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