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Cinema Transformações pessoais são levadas à radicalidade no filme Loucas de Alegria. Leia crítica Valeria Bruna Tedeschi e Micaela Ramazzotti são as protagonistas na produção feita numa parceria entre França e Itália

Por: Viver/Diario - Diario de Pernambuco

Publicado em: 15/09/2016 08:20 Atualizado em: 15/09/2016 11:12

Beatrice e Donatella tornam-se grandes amigas e decidem fugir de uma instituição psiquiátrica. Foto: Imovision/Reprodução.
Beatrice e Donatella tornam-se grandes amigas e decidem fugir de uma instituição psiquiátrica. Foto: Imovision/Reprodução.


Por Érico Andrade

Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, dizia o filósofo Heraclito. Longe de inviabilizar a capacidade que temos de construir a nossa identidade, o filósofo parece dizer que somos porque nos transformamos em nós mesmos o tempo todo. Somos a narrativa de nossa mudança. A nossa identidade é dinâmica, mas isso não impede a possibilidade de construir uma narrativa de nós mesmos; pelo contrário: a nossa narrativa é sempre uma história de mudanças que atravessam as nossas vidas. Em Loucas de alegria, essa máxima filosófica é levada à radicalidade.

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Donatella que havia pulado no rio com o filho, ainda bebê, movida pela certeza de que lá viveria em paz com o pequeno e cometendo um ato digno de Medeia, aparece numa das cenas finais do filme numa praia em que reencontra o filho. Sob olhar compreensível da nova família do seu filho, precedido, claro, por uma conversa com Beatrice cuja sinceridade da loucura permitiu descrever analiticamente sua amiga Donatella para aquela família, acontece uma cena forte. Forte porque o talentoso diretor Paolo Virzì a todo momento registra, com cerca de um metro de distância da câmara, o olhar perplexo da família diante da cena de Donatella tomando banho de mar, novamente as águas, e mergulhando com o seu filho no reencontro intensamente emocionante.

Aliás, é muito provável que seja por isso que Donatella, depois de se banhar duas vezes em águas diferentes, volta para a casa de saúde. Ela queria continuar se transformando nela mesma e não se prender apenas a uma narrativa de si mesma: a da louca que pulou no rio com o filho. É muito raro que a volta para a casa de saúde seja retratada no cinema como um passo essencial para a mudança com vistas a sermos nós mesmos, mas na pátria que criou a psiquiatra democrática, movimento essencial para a luta antimanicomial, parece ser possível que as instituições ao invés de potencializarem a loucura possam a acolher e, com isso, cuidar.

Como numa opera italiana, a alegria e a tragédia convivem num processo, permitam-me insistir com Heraclito, dialético. Se Beatrice logo trata de animar Donatella, desde sua chegada à casa de saúde, é Donatella que irá resgatar a alegria, que não cabe em si de Beatrice, quando decide ir à casa da mãe de Beatrice. Lá, aprendemos sobre os prejuízos financeiros que Beatrice causara a família, mas se destaca, sobretudo, a capacidade do cinema de transformar crises e tragédias em arte. A casa de Beatrice vira uma espécie de estúdio de cinema. Elas, fingindo serem figurantes de um filme, entram no carro juntas, numa alusão bela e nítida ao filme também sobre amigas Telma e Louise, e decidem continuar a jornada da transformação nelas mesmas. A loucura de Beatrice e Donatella é sempre apontada por outras personagens, mas não deixa de ser registradas por elas mesmas quando uma interroga a outra: está louca? Pergunta, aliás, que parece ser dirigida ao expectador no sentido de alertar que a loucura não apenas está na linha limítrofe de nossas vidas como constitui um pouco de nossa alegria.


Érico Andrade
ericoandrade@gmail.com
Crítico de cinema, filósofo e professor doutor em filosofia da UFPE



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