Câmara de espelhos Documentário faz uma provocação ao mostrar a violência do machismo cotidiano Temas como casamento, sexo, aborto e violência são discutidos por homens reunidos numa "caixa-preta", no primeiro longa autoral de Dea Ferraz

Por: Maira Baracho - Diario de Pernambuco

Por: Júlio Cavani - Diario de Pernambuco

Publicado em: 21/09/2016 15:15 Atualizado em: 21/09/2016 15:29

Uma sessão só para as mulheres, primeiro. Em seguida, outra exibição, só para os homens. Foi assim que o documentário Câmara de espelhos, da diretora pernambucana Dea Ferraz, foi apresentado à imprensa, no Recife. A separação dos jornalistas por gênero está alinhada à proposta do filme, reconhecendo e respeitando os espaços de existência (e, portanto, os olhares) diferentes sobre a mesma realidade. 

Voluntários passaram algumas horas dentro de uma sala fechada onde eram filmados enquanto conversavam sobre trechos de vídeos exibidos em uma televisão. Foto: Divulgação
Voluntários passaram algumas horas dentro de uma sala fechada onde eram filmados enquanto conversavam sobre trechos de vídeos exibidos em uma televisão. Foto: Divulgação
 

O que somos? O que vemos de nós, o que veem os outros, o que dizem ambos os olhares? É expondo a própria construção da identidade da mulher e seu espaço na sociedade que o documentário Câmara de Espelhos, primeiro longa autoral da diretora pernambucana Dea Ferraz, se mostra: provocador. Na tela do cinema, dentro de uma caixa-preta de madeira, 14 homens, desconhecidos, voluntários, instigados por imagens e vídeos pré-selecionados, falam como se estivessem numa mesa de bar, na padaria, em casa... O que eles pensam sobre casamento, sexo, aborto e violência? Agressivo como a realidade pode ser, o filme é potencialmente perturbador – sobretudo para as mulheres – e se lança para além da tela.

Raparigas, femininas, livres, assassinas, gostosas, boas mães. Nas palavras mais comuns, nas análises tão desatentas quanto violentas, os depoimentos dos pernambucanos escancaram o imaginário coletivo que ainda persiste sobre a identidade feminina e o espaço da mulher num território que é muito mais amplo. Mas, por ser desconcertantemente real, os comentários vão além da experiência cinematográfica, provocando a reflexão sobre gênero, papéis, resignação e também sobre autonomia e direitos.

De certo modo, é incômodo vê-los tocar em assuntos tão nossos e não poder refutá-los, assististindo-os num recorte do absurdo. Durante os quase 80 minutos do filme, não há mulheres na tela, a não ser nos vídeos, introduzidos cirurgicamente dentro da caixa onde estão. No decorrer do documentário, somente as vozes da bailarina Bella Maia, que os apresenta e apresenta-os aos espectadores, e da diretora, são ouvidas, poucas vezes, ilustradas por telas pretas.

Câmara de Espelhos não é apenas uma produção cinematográfica, mas um valioso registro de uma época e (por que não?) de sua desconstrução. É uma ferramenta importante num país ainda patriarcal e machista onde, inclusive, dentro do cinema, as mulheres não estão livres da invisibilidade e da vulnerabilidade.

O filme certamente vai tocar homens e mulheres de formas bem diferentes, tal qual a realidade pesa para cada um. E não tinha como ser de outra forma. Apesar disso, sem dúvidas, enquanto projeta a penumbra que paira em cada espaço da cidade e pesa sobre as mulheres, o longametragem ilumina o caminho que deve ser de todos e por todos, o da igualdade. O que podemos ser?

A estreia nacional de Câmara de Espelhos acontece nesta quarta-feira, 21, em sessão hors concours, na 49ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (Maira Baracho). 


Opiniões inconsequentes, mas não inconscientes

Há coisas que parecem óbvias, mas provocam forte impacto quando são recontextualizadas. Conversas entre homens, sem a presença de mulheres, soam banais entre eles, só que podem chocar quando tornadas públicas, como mostra o filme Câmara de espelhos, da diretora pernambucana Dea Ferraz, participante do Festival de Brasília em uma mostra especial dedicada a questões de identidade de gênero, fora de competição.

Diretora pernambucana Dea Ferraz exibe Câmara de espelhos nesta quarta, em sessão hors concours, no Festival de Cinema de Brasília. Foto: Divulgação
Diretora pernambucana Dea Ferraz exibe Câmara de espelhos nesta quarta, em sessão hors concours, no Festival de Cinema de Brasília. Foto: Divulgação
 

Para realizar o longa-metragem, a cineasta publicou um anúncio na imprensa que convidava homens para participarem de uma filmagem, sem revelar as intenções finais. Os interessados surgiram e foram reunidos em dois grupos, que passaram algumas horas dentro de uma sala fechada onde eram filmados enquanto conversavam sobre trechos de vídeos exibidos em uma televisão.

Estimulados por imagens que ilustravam temas como feminismo, aborto, violência passional e igualdade de direitos, a maioria dos participantes, de idades diferentes, transparece um ultrapassado e agressivo conservadorismo. O machismo onipresente no cotidiano não é novidade para ninguém, mas Câmara de espelhos denuncia como o problema é gravemente naturalizado como um hábito corriqueiro, inconsequente e não necessariamente inconsciente. Nos primeiros minutos de filme, já é possível captar a mórbida constatação, como um verdadeiro flagrante, mas ela torna-se crescente a cada tema acrescentado nas discussões (Julio Cavani).

 



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