Cinema Filme Aquarius capta feridas sociais com sensibilidade e delicadeza Longa do pernambucano Kleber Mendonça Filho perpassa pendências raciais, sexuais, econômicas, culturais e geracionais

Por: Tiago Barbosa

Publicado em: 03/09/2016 16:37 Atualizado em: 03/09/2016 16:36

Produção é estrelada por Sonia Braga no papel de uma viúva pressionada a deixar o apartamento onde mora. Foto: Victor Jucá/Divulgação
Produção é estrelada por Sonia Braga no papel de uma viúva pressionada a deixar o apartamento onde mora. Foto: Victor Jucá/Divulgação

A bordo do conflito principal estampado no embate entre a opressão do poder econômico e o direito à preservação da memória, o filme Aquarius dá vazão a uma miríade de detalhes capazes de captar com sensibilidade feridas expostas em diversos campos da sociedade. O longa-metragem do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho enfrenta, à base de sutilezas, pendências raciais, sexuais, políticas, culturais e geracionais enraizadas no povo brasileiro - herdadas na região Nordeste, sobretudo, do passado colonial e escravocrata.

O filme passeia pelas angústias e delícias vividas por Clara (interpretada com vigor pela atriz Sonia Braga), escritora, viúva e moradora de um edifício na Avenida Boa Viagem, epicentro da valorização imobiliária do Recife, endereço para o qual afluíram as tradicionais elites econômicas do estado. Pressionada por uma construtora a sair do prédio, quase vazio, deixado pelos ex-moradores e deliberadamente sucateado para viabilizar a construção de um espigão, ela resiste ao assédio apoiada no valor afetivo do apartamento e da vizinhança. Mas o longa transcende a questão central e faz da periferia da obra uma miscelânea de costumes para examinar a atualidade.

As cenas assumem constantemente o tom de provocação para levar o espectador a regurgitar preconceitos velados e desafiam o senso comum quando evitam se dobrar a verdades absolutas ou reprisar estereótipos consagrados. A leitura do mosaico montado pelo longa é de uma sociedade multifacetada, posicionada na encruzilhada entre benesses e agruras do passado e do presente, aguçada pelas bandeiras progressistas frente à persistência do conservadorismo e das práticas retrógradas.

Aquarius evoca o racismo quando, no corte de cena, sugere perigo iminente no contato entre moradores do bairro nobre e jovens negros trajados à moda de comunidades menos abastadas. Quebra ideias preconcebidas ao descontruir a imagem de pessoas mais velhas como seres humanos limitados, avessos a inovações tecnológicas, refratários a uma vida sexual ativa e prazerosa.

A maturidade surge como etapa possível e respeitável da vida, e a aparente incongruência entre quem valoriza o ontem e o hoje é dissolvida com perspicácia ao se propor a conciliação entre os dois tempos - elegantemente apresentada na intimidade da protagonista tanto com o vinil quanto com o MP3 ou na disposição para encarar empreitadas sexuais menos convencionais a olhos vendados por padrões restritos de comportamento.

O privado e o público são temas transversais do filme. Foto: Victor Jucá/Divulgação
O privado e o público são temas transversais do filme. Foto: Victor Jucá/Divulgação

A alfinetada nos paradigmas também é perceptível na suavidade do roteiro, com diálogos aparentemente simples eivados de simbolismos - testemunhados, por exemplo, na analogia entre a permanência no apartamento e o direito de exercer a homossexualidade, ambos gestos voluntários e merecedores do respeito alheio. Ou mesmo na ironia do comentário sobre o valor dos automóveis enquanto elementos usados para empoderar os donos e a família - hábito resistente ao passar dos anos. A abordagem ao tema essencial ao filme não prescinde das nuances e mostra uma questão complexa, com implicações nos planos emocional, familiar, social. O filme supera a polarização empresa-cidadão quando equilibra a protagonista em uma zona cinzenta entre resistência e egoísmo, sujeita a pressões e apelos de parentes e conhecidos.

A paleta de temas de Aquarius ganha ainda mais relevo quando confrontada com a época da produção e estreia dos filme. O Recife e o Brasil do século 21 são cenários para a luta e a afirmação de grupos historicamente oprimidos, dos gays e negros às mulheres, em contraposição à influência do capital e do conservadorismo sobre as políticas públicas. São, ainda, palcos para o duelo ferrenho entre a manutenção do patrimônio público e a redefinição urbanística a serviço do interesse imobiliário, campo de batalha disputado por construtoras e movimentos sociais como o Ocupe Estelita. Não à toa, a postura da personagem de Sonia Braga chegou a ser comparada à situação vivida pela ex-presidente Dilma Rousseff, à frente de uma gestão marcada pelo avanço das conquistas sociais e pela expansão da moradia entre os mais pobres, substituída por um governo respaldado pela elite econômica e por políticos conhecidos pela agenda conservadora.

A costura dos temas consolida o longa-metragem como um recorte verossímil e elucidativo da era contemporânea. Na profusão dos detalhes, delineados como instrumentos eloquentes para narrar uma diversidade de perspectivas, Aquarius se torna o espaço onde a realidade deságua na ficção. É um filme para assistir com um olho na tela e outro na história.

Veja entrevista com o diretor do filme:



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