Cinema Festival de Brasília celebra os 20 anos do filme Baile Perfumado nesta terça Primeira exibição do longa-metragem pernambucano ocorreu em 1996 na capital federal. Projeção de cópia restaurada ocorre na cerimônia de entrega dos troféus candangos

Por: Júlio Cavani - Diario de Pernambuco

Publicado em: 27/09/2016 17:01 Atualizado em: 27/09/2016 14:59

Luiz Carlos Vasconcelos e Zuleika Ferreira interpretaram Lampião e Maria Bonita. Foto: Fred Jordão/ Divulgação
Luiz Carlos Vasconcelos e Zuleika Ferreira interpretaram Lampião e Maria Bonita. Foto: Fred Jordão/ Divulgação
 
"Os inquietos vão mudar o mundo", última frase dita em Baile perfumado, aponta para um aspecto determinante para o reconhecimento histórico do filme no contexto do cinema brasileiro. É a inquietação manifestada pelos cineastas Lírio Ferreira e Paulo Caldas que torna a obra especial, com um estilo próprio e uma originalidade que lhe asseguram uma posição privilegiada na cinematografia nacional.

O longa-metragem investiga o clássico tema do cangaço a partir de novas cores e detalhes em um sertão verde à beira do Rio São Francisco, mas provoca mais impacto pela mecânica cinematográfica do que pelas informações reveladas. O retrato de Lampião é organicamente consistente e contribui para o enriquecimento do imaginário em torno do personagem, só que mostrá-lo a partir de imagens aéreas circulares ao som de rock pesado torna-se tão (ou mais) importante quanto revelar novos dados biográficos sobre o cangaceiro.

Vencedor do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro em 1996, Baile perfumado insere-se na radicalização das discussões sobre a hierarquização entre forma e conteúdo, bastante em alta na década de 1990, quando Quentin Tarantino venceu a Palma  de Ouro com Pulp Fiction em 1994 e Lars Von Trier lançou o movimento Dogma 95.

Baile perfumado diz tanto sobre o Brasil do período reconstituído (décadas de 1920 e 30) quanto sobre o Pernambuco de 1996 (no auge do Mangue Beat). A primeira época manifesta-se figurativamente, enquanto a segunda é transmitida estilisticamente. A forma, portanto, está carregada de conteúdo.

Na época do lançamento, o filme foi bastante associado à linguagem videoclipe. As influências de Caldas e Ferreira, entretanto, sempre foram muito mais cinematográficas do que televisivas. Clipes (vídeos feitos para divulgar músicas na TV) não necessariamente afetaram a forma de filmar dos dois cineastas. Essa ligação foi feita por causa da presença do rock em alto volume combinada com a liberdade de movimentos de câmera adotada pela dupla. A "inquietação" era algo mais presente na MTV do que no cinema brasileiro naquela década, mas os dois diretores eram cinéfilos, com experiência cineclubista, e inspiravam-se muito mais no radicalismo visual de mestres como Rogério Sganzerla, Mário Peixoto, Sergei Eisenstein ou Orson Welles.

Baile perfumado foi ainda o marco inicial de uma nova fase do cinema pernambucano caracterizada por uma crescente produtividade combinada com reconhecimentos nos principais festivais de cinema nacionais e internacionais. Nos créditos do filme, em diversas funções, é possível encontrar futuros longas-metragistas, como Hilton Lacerda (Tatuagem), Cláudio Assis (Amarelo manga), Adelina Pontual (Rio Doce CDU) e Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e urubus), que logo depois já passaram a ser vistos como veteranos diante de uma geração posterior (e artisticamente cada vez mais distante do Baile) formada por Gabriel Mascaro (Boi Neon), Marcelo Pedroso (Brasil S/A) e Kleber Mendonça Filho (Aquarius), entre outros. O longa também inaugurou os constantes patrocínios do governo de Pernambuco para a produção cinematográfica, investimentos que desde então começaram a oferecer um retorno incalculável para a imagem do estado proporcionado pelas repercussões no Brasil e em outros países.

O último longa-metragem produzido em Pernambuco havia sido O palavrão, dirigido por Cleto Mergulhão, lançado em 1978. Com longas lacunas de interrupção periódicas, a produção de filmes em Pernambuco começou na década de 1920, na época do cinema mudo, exatamente no mesmo período em que se passa Baile perfumado (ambientado essencialmente entre 1926 e 1938). Em uma cena, Lampião e Maria Bonita assistem a uma projeção do longa-metragem silencioso A filha do advogado, clássico de 1926, dirigido por Jota Soares. A experiência de espectador do personagem é apresentada não apenas como uma curiosidade, mas também para justificar o interesse do cangaceiro pela ideia de ser filmado.

O protagonista do filme, afinal, é o libanês Benjamin Abrahão, interpretado pelo ator Duda Mamberti. É ele quem diz que "os inquietos vão mudar o mundo". O personagem foi o único cinegrafista que conseguiu filmar o bando de Lampião. A façanha só foi possível por causa da existência de uma produção cinematográfica e de um circuito de exibição no Nordeste já naquela época. Os empresários do setor audiovisual, no filme, são representados pelo cearense Ademar Albuquerque (interpretado pelo ator pernambucano Germano Haiut), que providenciou os negativos e equipamentos necessários para as filmagens documentais dos cangaceiros no Sertão.

Em Baile perfumado, Lampião é aquele tipo de coadjuvante que ganha a importância de uma figura central, em torno de quem gira toda a trama, apesar de não ser o personagem presente durante mais tempo na tela. Interpretado pelo paraibano Luiz Carlos Vasconcelos, é ele quem está no pôster do filme e não Benjamin Abrahão. O mesmo tipo de inversão de protagonismo pode ser percebido em clássicos do cinema internacional como Apocalipse now (1979) e Moby Dick (1956).

No filme, a construção de uma aura mítica ao redor de ícones históricos pode ser percebida no encontro entre Lampião e Padre Cícero. Mais uma vez, a maneira como a cena foi filmada interfere diretamente na interpretação dos significados apresentados. A imagem é azulada e os movimentos são flutuantes, efeitos que emolduram a ação com uma atmosfera onírica. O fato ocorreu em 1926 na cidade de Juazeiro, no Ceará, mas a forma como o filme o reconstitui deixa em aberto se aquilo é um flashback ou uma alegoria que pode estar ambientada no além (no Céu ou no Purgatório).

Benjamin Abrahão aparece entre os dois mitos. A sequência, que ressurge no filme mais de uma vez, serve também para demarcar que o cineasta libanês conseguiu fotografar Lampião e Padre Cícero juntos.  A foto foi essencial para que ele futuramente conseguisse apoio de coronéis aliados ao cangaço e confiança para conseguir ser pessoalmente aceito com sua câmera entre os cangaceiros.

Luiz Carlos Vasconcelos constrói uma nova imagem de Lampião que ficou gravada no subconsciente coletivo. A caracterização criada pelo ator tem potência suficiente para substituir ou complementar outros rostos (Leonardo Villar, Nelson Xavier) já fixados no imaginário coletivo graças ao cinema e à TV. Ele consegue equilibrar perfeitamente os estados de agressividade e de elegância do personagem (além de combinar uma coisa à outra em cenas de batalhas, graças à precisão e à classe com a qual manipula a pistola e outras armas). O lampião do Baile perfumado dança forró, ouve discos em um gramofone, bebe whisky, joga baralho e aprecia perfumes, mas não hesita na hora de matar.

O ator pernambucano Aramis Trindade interpreta o tenente Lindalvo Rosas, o antagonista do anti-herói. Não chega a ser um vilão à altura do inimigo. Funciona mais como um contraponto cômico. Com um estilo humorístico, o intérprete faz o personagem crescer e impor-se sempre que aparece. O figurino (assinado por Mônica Lapa), com calças largas e um pequeno chapéu militar, associa-se aos inusitados ângulos de câmera para conferir trejeitos cartunescos ao soldado.

As estilizadas imagens de Lindalvo são mais um exemplo da inquietação visual de Baile perfumado, que tem direção de fotografia assinada por Paulo Jacinto dos Reis (Feijão). Nos diálogos do filme, há sempre planos e contraplanos com enquadramentos mais convencionais, que parecem ter sido feitos para garantir a continuidade ou como uma opção de segurança. No entanto, são mais marcantes as construções mais mirabolantes. Um encontro entre Benjamin e Ademar na praia é visto de cima.

Uma outra negociação é mostrada com um ventilador em primeiro plano, com os personagens por trás das hélices em rotação rápida. A primeira conversa entre o tenente e o libanês também é filmada de baixo pra cima, de um ângulo que deforma os corpos e resulta em um efeito lisérgico de derretimento. Há ainda uma família retratada de cabeça para baixo (referência ao jogo de lentes e espelhos das câmeras fotográficas antigas).

Os planos-sequência longos são os que mais evidenciam o comportamento mirabolante da câmera. A cena inicial atravessa quartos e corredores e desce uma escadaria para mostrar os últimos momentos de vida e o velório de Padre Cícero. A inspiração parece vir filmes de Orson Welles, como A marca da maldade, que tem uma abertura sem cortes em que uma bomba é armada nos EUA, colocada no porta-malas de um carro e levada até o México, onde explode. No início de Baile perfumado, o sacerdote cearense atravessa da vida para a morte em um mesmo take contínuo.

Antes de lançar o longa, Lírio Ferreira dirigiu, junto com Amim Stepple, o curta-metragem That´s a Lero Lero (1994), sobre a passagem de Orson Welles pelo Recife em 1942, que serve como uma pista sobre as referências wellianas presentes em Baile perfumado. A presença de estrangeiros no Brasil, por sinal, é um tema recorrente nas duas obras e em uma série de filmes que passa também por Deserto feliz (2007), de Paulo Caldas,  e Cinema, Aspirinas e urubus (2005), de Marcelo Gomes, ambos com personagens alemães em visita a Pernambuco. Lírio também explorou, em Árido movie (2006) e Sangue azul (2014), o impacto da chegada de viajantes a localidades distantes e isoladas.

Em Baile perfumado, os planos-sequência chamam ainda mais atenção quando filmados com steadicam, mecanismo que elimina as tremulações e proporciona fluidez aos movimentos de câmera, um recurso consagrado por Stanley Kubrick no suspense O iluminado (1980). No filme pernambucano, o equipamento é essencial na abertura e em momentos como as caminhadas pela caatinga ou as imagens aéreas.

Padre Cícero é interpretado por Jofre Soares, cuja presença na tela é em si uma homenagem ao cinema nacional, já que ele fez parte do elenco de clássicos como Vidas secas, A hora e a vez de Augusto Matraga, Terra em transe, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, São Bernardo e Bye bye Brasil, entre outros. O elenco de Baile perfumado reúne representantes de diferentes escolas de interpretação, inclusive do teatro de Pernambuco e da Paraíba, pouco conhecidos em outros estados, além de nomes relativamente conhecidos como Chico Diaz (colaborador constante do cinema pernambucano) e Claudio Mamberti. A ausência de uma linha dramática clara, não definida entre o teatral, o televisivo e o cinematográfico, é um dos mais prejudiciais problemas do filme, que intercala diálogos objetivos mais coloquiais com enunciações poéticos declamadas com uma sabedoria autoimportante.

No elenco, há ainda pontas de músicos como Fred 04 (Mundo Livre S/A), Ortinho (Querosene Jacaré) e integrantes da banda Mestre Ambrósio, além de Roger de Renor, que é ator profissional e apresentador, mas começou a ficar mais famoso na época por ser dono do bar Soparia, onde se apresentavam os novos grupos musicais do Recife. A produção de Baile Perfumado ocorreu em plena efervescência do movimento Mangue Beat e a imponência da trilha sonora é resultado do constante compartilhamento cultural entre músicos e artistas de diversas áreas que atuavam no Recife naquele período. A direção musical é assinada por Paulo Rafael, guitarrista da banda Ave Sangria (psicodelismo nordestino da década de 1970) e de Alceu Valença, que participa com a voz em um aboio elétrico tocado em uma cena de assassinato (quando o bando de Lampião mata o coronel Zé de Zito, vivido por Chico Diaz). A música do Mestre Ambrósio preenche principalmente os espaços dedicados ao forró, mas, junto com Lenine, a banda acrescenta elementos árabes à construção cultural do filme graças à canção Benjaab.

A importância de Baile perfumado transcende a obra em si. O filme, em conjunto com os discos do Mangue Beat, provocou mudanças culturais e estimulou outros cineastas e artistas a libertarem-se de padrões narrativos mais convencionais. O trabalho de Lírio e Paulo Caldas parecia alienígena no contexto do cinema nacional. Aos poucos, entretanto, o estranhamento deu lugar ao reconhecimento e à consagração de uma explosão cultural cada vez mais influente que buscava construir as próprias formas de expressão sem estar presa a estilos, gêneros, padrões, técnicas ou procedimentos de produção pré-estabelecidos.

(texto originalmente publicado no livro 100 Melhores Filmes Brasileiros)


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