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Pó de Lua Pernambucana Clarice Freire se consolida como poetisa contemporânea Escritora lança livro inspirado em noites passadas em claro, o segundo da carreira

Por: Fellipe Torres - Diario de Pernambuco

Publicado em: 19/07/2016 09:07 Atualizado em: 19/07/2016 09:07

Clarice lança segundo livro da carreira. Foto: Leo Aversa/divulgação
Clarice lança segundo livro da carreira. Foto: Leo Aversa/divulgação

“Não sei que tempo faz, nem se é noite ou se é dia./Não sinto onde é que estou, nem se estou. Não sei de nada./Nem de ódio, nem amor. Tédio? Melancolia./ -Existência parada. Existência acabada”. Há uma década e meia, versos como esse, escritos pela poetisa de olhos azuis-esverdeados Cecília Meireles, fizeram brilhar um par de cor semelhante, pertencente a uma pernambucana. Por meio de palavras impressas em papel, ocorreu o primeiro encontro entre a leitora (naquela ocasião com 13 anos de idade) e a escritora (à época, falecida há 37). Dali em diante, muitos outros aconteceriam, mas sempre distintos entre si. Isso porque a percepção da primeira sobre a obra da segunda mudaria com o passar do tempo (assim como ensinou o filósofo Heráclito, para quem seria impossível um homem entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando entrasse novamente, ele já teria mudado e o rio também seria outro). Sim, tudo flui e segue um ciclo natural. Mas as duas estariam ligadas pela universalidade e infinitude da poesia.


Hoje aos 28, com os mesmos olhos claros, Clarice Freire vê, nas estantes das livrarias, o próprio nome ocupar tanto espaço quanto o da poetisa carioca. Talvez até um pouco mais. A alegria sentida, contudo, não ofusca a devoção pela veterana. E Cecília Meireles testemunha, das prateleiras, a pernambucana se consolidar despretensiosamente entre os autores contemporâneos de poesia e arrebatar milhares aos centros de compras espalhados pelo país. Na quinta-feira, às 17h, Clarice vai lançar no RecifePó de lua nas noites em claro (Intrínseca, 208 páginas, R$ 29,90), dois anos após o primeiro livro e cinco anos após estrear no Facebook o perfil que lhe rendeu 1,2 milhão de seguidores.


Obra chega às livrarias nesta quinta-feira. Imagem: Editora Intrínseca/divulgação.
Obra chega às livrarias nesta quinta-feira. Imagem: Editora Intrínseca/divulgação.

Assim como Cecília Meireles foi professora de rede pública de ensino, Clarice teve outra profissão antes de se dedicar exclusivamente à literatura. Formada em publicidade, por sete anos bateu o cartão de ponto em uma agência, em cujo organograma era responsável pelo exercício pleno da criatividade à serviço dos clientes. Um dos desafios era conter a vontade de se esparramar pelas páginas e exprimir sensações com mais palavras, em mais espaço, de forma mais livre. Aprendeu a ser concisa sem deixar de lado a intensidade.

O formato de pílulas ou mensagens telegráficas contaminou a presença na internet, de onde surgiu o rebuliço capaz de tirá-la da profissão e colocá-la para viajar por todo o Brasil como autora publicada e (muito bem) vendida.

A nova vida não é moleza, como alguns podem pensar. Exige alguma inspiração e muita transpiração. Como ela mesma gosta de citar, precisa “trabalhar como operária da palavra”. Mas é, sim, bastante recompensadora. Os primeiros desenhos com frases e trocadilhos publicados no início da página virtual, em 2011, hoje parecem bem distantes do segundo livro enquanto produto acabado. Embora reproduza o formato moleskine (espécie de caderneta) para dar a impressão de se tratar de fac-símile daqueles utilizados por Clarice, a obra revela um ar maduro, compromissado com as linhas narrativas, com o projeto poético assumido e com a manutenção da ousadia necessária para se utilizar dos rabiscos quando as palavras não dizem o suficiente.

Insone declarada, a autora escolheu o fio narrativo do livro olhando pela janela do apartamento onde mora, no 32o andar. Dali, se inspirou na paisagem - formada por prédios - para a capa, e nas nuances da madrugada em compasso com os ponteiros do relógio para balizar a divisão de capítulos: 0h - As ruas se calam, 1h - A boca se cala, 2h - O pensamento fala, 3h - Os moradores da noite, 4h - Os primeiros raios do Sol, 5h - Sentimentos dourados.

Embora um século separe as juventudes de Cecília e Clarice, elas parecem fruto do mesmo tipo de potência criativa e de ambiente capaz de impulsionar em direção à poesia. O desapego explícito na fala de Cecília, em entrevista concedida em 1953: "Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar e nem me espantei por perder" encontra ecos na fala de Clarice, em 2016: “Sentia culpa por preferir a madrugada, até que alguém comentou que poderia haver poesia na minha insônia”.

E assim como as quietas noites em claro são hoje essenciais para Clarice, foram importantes para Cecília a solidão e o silêncio.“Essa foi sempre a área da minha vida, onde apareceram um dia os meus próprios livros, que não são mais do que o desenrolar natural de uma vida encantada com todas as coisas, e mergulhada em solidão e silêncio tanto quanto possível”.

SERVIÇO
Pó de lua nas noites em claro
(Intrínseca, 208 páginas, R$ 29,90)
Quando: quinta-feira, às 17h
Onde: Livraria Cultura do Shopping RioMar (Avenida República do Líbano, s/n, Pina)
Quanto: gratuito

ENTREVISTA // CLARICE FREIRE
Em comparação ao primeiro livro, lançado em 2014, este passa a impressão de ter um projeto literário mais elaborado, com textos mais longos, conectados entre si. Como você o planejou?
O livro mistura prosa e poesia. O grande desafio foi conseguir misturar prosa em tipografia com poesia desenhada. Há uma veia narrativa, a voz de uma personagem que sai durante a noite para encontrar consigo mesma. Os textos abordam temas ligados às angústias humanas. Apesar de as poesias serem independentes, são também completamente interligadas.

A temática principal, que conduz todos os textos e desenhos, é a madrugada. Você tem algum apego especial por essa parte do dia?
Sim, o livro é divido em  partes, da meia-noite, quando as ruas se calam, às cinco da manhã.  Sou insone. Passo muitas noites em claro. É nessa hora que eu crio, penso, encontro comigo mesma, com o que o dia me deu. Há, na madrugada, uma falta de limites, um silêncio, um espaço para imaginação que não existe nas outras horas do dia. Costumo ficar olhando para a janela e escrevendo. Essa imagem, inclusive, inspirou a capa do livro, que é cheia de prédios. É a vista do meu quarto. Moro no 32o andar.

Você se dá bem com os momentos de insônia ou isso também representa algum sofrimento? Passar as noites em claro nem sempre é bom, não é?
Tem os dois lados. A vida funciona no horário comercial, e eu preciso me adaptar ao mundo. Minha alma e minha mente funcionam mais à noite do que de dia. Eu costumava perceber as noites em claro somente como algo negativo. Sentia culpa por preferir a madrugada (a maioria das pessoas são do dia e eu sou de lua), até que alguém comentou que poderia haver poesia na minha insônia.

O primeiro livro surgiu em um momento de culminância da sua popularidade na web. O que mudou nesses dois anos? A sua produção está diferente? O público mudou?
Da mesma maneira que tem surgido novos seguidores, cerca de mil pessoas por mês, existe um público que permaneceu. Esses dois anos foram um período de muito amadurecimento na minha vida pessoal, e isso se reflete no que produzo. Apesar dos meus textos serem ficção, são muito baseados em mim, nas minhas experiências e sentimentos. Percebo que o público que me acompanha desde o início amadureceu junto, o que é muito legal. Tive a oportunidade de me aproximar dessas pessoas nas viagens para divulgar o primeiro livro. Trocar ideias, experiências, sentimentos. Agora também já tenho alguma experiência com o processo editorial, então já começo a partir de um ponto já conhecido. Outra mudança muito significativa foi passar a me dedicar exclusivamente à literatura.

Como foi esse processo? Antes você trabalhava em uma agência de publicidade, tinha uma rotina profissional na sua área de formação e, de repente, enxergou uma oportunidade no que era um hobby... Foi uma transição difícil?
Foi difícil no começo, sim. Passei sete anos trabalhando em agência, na parte de criação. Mas, pensando bem, não deixei de fazer o que fazia, pois cuido de redes sociais, me relaciono com meus leitores, penso em formas legais de me comunicar. Até hoje uso muito do que aprendi na graduação e em outros cursos, como um que fiz sobre criação em Buenos Aires. Foi uma trajetória que me ajudou, por exemplo, a ser menos prolixa, a reduzir muito o que escrevia.

Como é a rotina de escritora?
É bem exigente. Você trabalha muito, viaja muito. Tudo só depende de você. Nem sempre é tudo maravilhoso, mas quando você trabalhar com o que ama, não demora para se acostumar. É puxado principalmente quando estou no processo de escrever livro. Meu pai costuma repetir uma frase de [Raimundo] Carrero: “Escritor é um operário da palavra”. Isso é bem verdade. Tenho uma rotina mais ou menos regular. Não posso acordar cedinho porque durmo tarde. Uso a manhã para resolver coisas práticas, responder e-mails, dar entrevistas. Depois do almoço começo a produzir e sigo até não dar mais.

De onde vêm as ideias para as poesias visuais?

Só consigo sentando e trabalhando. É um clichê grande isso de que escrever “é mais expiração do que inspiração”, mas é muito verdade. Claro, há momentos em que as ideias surgem. Às vezes, quando a madrugada está muito alta e me surge alguma coisa, anoto para depois trabalhar naquilo. As ideias surgem de forma bruta. Dá para perceber que tem alguma coisa ali, mas é preciso dedicação.

No universo da internet, a todo momento surgem novas “webcelebridades”, e muitas delas desaparecem na mesma velocidade com que ficaram famosas. Você acha que o fato de ter um trabalho mais autoral, artístico, contribui para a longevidade do Pó de Lua?
Sim. Não é um perfil que fala de mim. Clarice não tem muita coisa de interessante, mas a poesia nunca morre. Quando comecei com o Pó de Lua, despretensiosamente, nunca tinha visto pessoas lançando livros a partir de material publicado na internet. De lá para cá, vi surgir vários tipos de perfis no Instagram, no Facebook. Tem espaço para todo tipo de gente: calígrafos,  frasistas, bailarinos, pintores... As pessoas têm muito mais espaço, mas acho que poucos possuem uma intenção abertamente literária. Há muitos perfis de frases no Instagram que são legais, mas têm outra proposta. É uma coisa de momento: “acorda com sono, toma um café”... É a cara da internet. São propostas diferentes, mas que encontram espaço.

Desde o primeiro livro, você parece ter continuado nesse movimento de apostar na poesia mais offline, chegando até a licenciar suas criações para produtos físicos. Você se adaptou às mudanças da internet? Porque nesse meio tempo houve, por exemplo a explosão de popularidade do Snapchat...
Pois é, fiz algumas camisetas para marca de roupas  Reserva, algo que meus seguidores já pediam há um bom tempo, e também fiz o design de copos promocionais da [cadeia de fast-food] QuantoPrima. É legal porque não se limita à internet. Não fiz tanta mudança nas minhas redes sociais, só investi  um pouco mais no Instagram. No Snapchat eu sou uma tiazona (risos). Não sei usar direito, sou atrapalhada. Achei legal criar para usar quando viajo para eventos como feiras literárias, porque tem como transmitir de um jeito mais rápido. Você se comunica com o público instantaneamente, diz que chegou, mostra como está sendo. Às vezes entrego o meu Snapchat a algum adolescente, e ele fica fazendo a transmissão para mim. Eles adoram e fazem muito melhor do que eu. Na Bienal do Livro do Rio, por exemplo, compartilhei um momento muito legal, do meu encontro com Maurício de Souza. São momento dos quais os leitores não participariam de outra forma. Acho que a gente não deve se fechar, contanto que não chegue a ferir a essência do nosso trabalho.

Os adolescentes são a maioria do seu público?
Mais ou menos. Tem uma grande parcela jovem, mas é muito diverso. Nas viagens consigo perceber isso muito bem, como atinjo gente de todas as idades. É impressionante. Acho que é porque a poesia é universal, toca a alma em qualquer idade. Eu, por exemplo, me apaixonei por Cecília Meireles aos 13 anos de idade.  Quando leio hoje, ela é outra para mim. É a mesma poesia, mas eu sou outra.

TRECHOS
0h – As ruas se calam
As avenidas, cansadas,
não buzinavam mais seus gritos.
Os semblantes transeuntes
já não eram mais aflitos.
E o chão, aquecido do sol quente,
se refrescava aliviado
sem o peso de tanta gente.

1h – A boca se cala
Minha voz hoje gastou toda
palavra que tinha. Já não sei se
aquela fala era ou não era a minha.
E o que eu não sei dizer aparece
de algum jeito. Quando o silêncio
da boca diz um poema perfeito.

2h – O pensamento fala
Abri a gaiola do imaginário,
então libertei os sonhos contidos.
Voaram com o vento por toda a casa
como se não fossem mais proibidos.

3h –Os moradores da noite
Quem te visita pela madrugada?
E quem sai pela tua janela?
Quem mora nas ruas caladas, vazias?
Quem delas, tal os postes, é sentinela?
Quem invade teus sonhos sem ser convidado?
Quem vê em teu olho na noite, fechado?

4h – Os primeiros raios do Sol
Uma fresta de luz vem preguiçosa
e afasta os escuros daqui.
Uma festa em calor vem luminosa
porque sabe que o choro vai rir.

5h – Sentimentos dourados
Aquele calor cá dentro do peito
se espalha e toma meu corpo inteiro.
E já não sei mais se um dia fui noite
ou se foi o Sol que veio primeiro.



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