Entrevista Caso Pedrinho inspira filme sobre adolescente que descobriu ter sido roubado na maternidade Mãe Só Há Uma é dirigido por Anna Muylaert, diretora do premiado Que Horas Ela Volta?. Confira entrevista

Por: Júlio Cavani - Diario de Pernambuco

Publicado em: 21/07/2016 08:23 Atualizado em: 20/07/2016 23:02

Ator Naomi Nero interpreta o personagem principal, que vive dilemas da adolescência (Vitrine Filmes/ Divulgação)
Ator Naomi Nero interpreta o personagem principal, que vive dilemas da adolescência

 
Não há uma interrogação no final do nome do filme Mãe só há uma, em cartaz nos cinemas. O título é uma provocação. Afinal, o personagem principal é um adolescente que é obrigado a trocar de mãe aos 17 anos de idade. Ele foi roubado da maternidade quando era um bebê e passou a vida na casa da mulher que o sequestrou (e o criou maternalmente). Quando o crime é desvendado, a sequestradora é detida pela polícia e ele vai morar com os pais biológicos. O momento da revelação e dos questionamentos (seriam duas mães?) coincide com a fase de descobertas sexuais do garoto, que toca em uma banda de rock, pinta as unhas de azul e tem envolvimentos afetivos com meninos e meninas, uma situação inesperada para a nova família.

Mãe só há uma é o novo filme de Anna Muylaert, diretora do bombástico Que horas ela volta?, lançado em 2015, que remexeu com os valores dos brasileiros nas relações entre patrões, babás e empregadas domésticas. A cineasta volta a tocar no tema da maternidade, mas desta vez diante de uma história mais dolorosa e até trágica, narrada de forma mais contida, com poucos recursos de ênfase dramática além do peso das situações em si. O roteiro, escrito por ela, é livremente inspirado no caso real de Pedrinho, levado de uma maternidade em 1986 e localizado 16 anos depois, mas os personagens reais são bem diferentes dos interpretados pelos atores (a questão da identidade sexual é ficctícia, por exemplo).

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As duas mães do filme são interpretadas pela atriz Daniela Nefussi. O garoto é vivido pelo ator Naomi Nero. Matheus Nachtergaele, com um trabalho bem mais contido do que o normal e bastante delicado, assume o papel do pai biológico. Uma música do pernambucano Fábio Trummer (vocalista da banda Eddie) com o grupo Super Sub América encerra o filme. Pupilo e Dengue, da Nação Zumbi, também participam da trilha sonora, assinada pelo carioca Berna Ceppas.

Pelo conjunto da obra, Anna será homenageada pelo 11º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, que começa hoje. Este ano, ela será também a primeira diretora brasileira entre os jurados do Oscar, a convite da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, que pretende diversificar o perfil dos votantes. Por e-mail, a cineasta paulistana, que também dirigiu Durval Discos (2002), episódios do seriado Castelo Rá-Tim-Bum e videoclipes de artistas como Chico César (Mama África), entre outros trabalhos, cedeu entrevista ao Viver.

ENTREVISTA // ANNA MUYLAERT:

 (Gleeson Paulino/ Divulgação)


"Para evitar sentimentalidades, eu queria um filme cru"

Até que ponto você evitou levar o filme para o caminho do melodrama?
Eu sempre entendi este filme como uma tragédia.  Por isso tratei de forma mais seca possível, justamente para evitar sentimentalidades, eu queria um filme cru - que desse na gente aquele azedume próprio do ser adolescente.

Onde começa e onde termina a inspiração no caso real do menino Pedrinho? Vocês entraram em contato com os envolvidos?
Nós fizemos uma pesquisa mínima sobre o caso, sobre o suceder dos fatos. Mas preferi nunca entrar em contato com eles pois  não queria entrar em detalhes. Embora tenham histórias semelhantes, Pierre não é Pedrinho. 

A questão da separação entre mães, pais, filhos e filhas está presente em outros filmes seus, como Que horas ela volta?, e também em outros filmes atuais, como Julieta, As montanhas se separam e até Procurando Dory. Você acha que é um tema clássico e arquetípico ou é um tema contemporâneo ou recorrente em determinadas épocas? Qual é o maior significado disso tudo?
Não sei dizer. Sem duvida é um tema clássico, a mãe, a perda da mãe, a recuperação da mãe, tudo isso faz parte de nossos maiores medos. Mas por que agora, neste momento hajam tantos filmes com o tema,  talvez seja uma coincidência ou talvez estejamos vivendo tempos onde as mães estão efetiva e cotidianamente longe dos filhos e de alguma forma isso apareça.

Em Mãe só há uma, as mulheres assumem as funções de direção, roteiro, fotografia, produção e distribuição, entre outras. Foi uma opção proposital deliberada ou é uma conjunção espontânea?
Não foi  uma opção deliberada, nem tampouco espontânea. Chamei a fotógrafa que mais gosto, as produtoras com quem sempre trabalhei e a Silvia Cruz da vitrine. Trabalhamos todas em espírito de parceria, sem ter que apelar para uma hierarquia de poder.  Do modo como trabalho, todos são colaboradores e vencem as ideias. Isso vem dando certo. Sinceramente, nunca pensei em trabalhar apenas com mulheres, mas estou numa fase em que estou me identificando mais com o modo feminino de trabalhar do que com masculino. Por isso, além das mulheres, também  temos vários  homens na equipe: o Helio Vilella Nunes que é o montador do filme - embora ele seja homem, tem um jeito muito feminino, muito respeitoso de trabalhar. O mesmo eu diria do Marcelo Caetano que me ajudou no roteiro, do Thales Junqueira que é o diretor de arte e também do Ricardo Reis que fez edição de som e do Paulo Gama que fez mixagem. A questão não é o sexo do artista e sim o modo de trabalho mais suave que me interessa.

Como você chegou ao título Mãe só há uma?
Em se tratando de um filme cujo protagonista tem duas mãe, acho que este título é uma anedota freudiana, finalizada com a escolha da mesma atriz para fazer ambas as mães, tanto a criminosa quanto a vítima.

Versões diferentes dos cartazes do filme no Brasil e no exterior
Versões diferentes dos cartazes do filme no Brasil e no exterior

Você acha que as identidades sexuais dos adolescentes passam por um momento mais fluido nos dias atuais, apesar das recentes ondas de conservadorismo vistas no Brasil?
Sim, não tenho duvida. As noções de masculino e feminino estão bastante mais flexíveis. Eles parecem estar recriando, cada qual a sua maneira, novas e únicas identidades sexuais e de gênero. 

No filme, há uma clara diferença entre a aceitação da identidade sexual do personagem na antiga e na nova família. A primeira família parece ser mais suburbana e a segunda tem um perfil mais elitizado. Você acha que as periferias são mais tolerantes com a diversidade do que as elites?
Pelo que pesquisei, as classes menos privilegiadas são sim mais tolerantes do que as classe altas. Acho que as classes mais privilegiadas - talvez por terem muito patrimônio -  têm a tendência a serem também as mais conservadoras, a nutrir mais altas expectativas com os filhos e consequentemente são mais controladoras também. 

Na sua opinião, os pais do adolescente devem ser julgados pelo público ou vistos com mais compaixão? Houve esse tipo de preocupação?
Eu não queria julgar nenhuma das partes. Queria apenas que o publico entrasse na pele do protagonista. Embora em algum momento a segunda mãe - que na verdade é a vitima - se torne obsessiva demais e consequentemente chata - acho que no final o público entende que todos ali estão sofrendo, que está difícil pra todo mundo.

Quais são seus próximos projetos? Eles terão alguma relação clara com Que horas ela volta? e Mãe só há uma?
Estou desenvolvendo um novo filme sobre a pratica cotidiana de pequenos gestos que evidenciam o machismo na nossa sociedade. É um assunto que estou bastante ligada agora porque acho que estamos num momento de virada, onde a mulher está realmente cansada de ser tratada como cidadã de segunda classe e apesar de ter qualidade no seu trabalho, muitas vezes é preterida por um profissional com menos experiência do que ela, apenas porque o mercado prefere os homens às mulheres. Acho que meu próximo filme pode ter uma relação com o Que horas? no sentido de voltar a uma narrativa mais clássica, mas quanto a temática não estou pensando em nada que trate nem de empregada doméstica, nem de abismo social. No momento, não.

Que horas ela volta? teve uma boa comunicação com o público estrangeiro e Mãe só há uma já nasceu com um prêmio no Festival de Berlim. Você tem vontade de filmar em outros países e em outras línguas?
Não tenho exatamente vontade de filmar em outros países ou línguas, tenho vontade de filmar historias que me interessem, que tragam ideias a serem discutidas e que eu possa me apaixonar. Mas se por acaso isso vier de outro lugar do planeta, vou me interessar, é claro.



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