Alceu Valença Alceu Valença 70 anos, sete capítulos: o pernambucano inveterado Na última reportagem da série dedicada aos 70 anos de Alceu Valença, a luta por defender a cultura pernambucana é comentada por amigos e pelo próprio artista

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 02/07/2016 19:59 Atualizado em: 29/06/2016 17:37

Alceu Valença faz questão de defender as raízes pernambucanas e a bagagem cultural adquirida em São Bento do Una, no Recife e em Olinda (foto). Foto: Hesíodo Goes/Especial para o DP
Alceu Valença faz questão de defender as raízes pernambucanas e a bagagem cultural adquirida em São Bento do Una, no Recife e em Olinda (foto). Foto: Hesíodo Goes/Especial para o DP

Capítulo sete de sete: o pernambucano


A grama do quintal de Alceu Valença sempre lhe pareceu mais verde que a do seu vizinho, ainda bem. Ao mudar-se para a capital pernambucana, aos nove anos, impregnado por memórias da rotina em São Bento do Una, o menino cabeludo evocava aboiadores do Agreste e Sertão do estado ao cantarolar as próprias raízes, vociferando toadas pelas  ruas do Centro do Recife. Foi um jovem incomum, fazia pouco caso dos efeitos do rock norte-americano sobre as vestimentas infanto-juvenis da época, preferia Luiz Gonzaga a Elvis Presley.

Confira o roteiro de shows do Divirta-se

Na Rua dos Palmares, chamada por ele de “rua carnavalódroma”, a casa dos Valença, decorada por Dona Adelma, expunha as rendas, o couro e o barro acumulados na longa estrada entre o Recife e a cidade natal da família. “Muitas vezes fui quase vaiado por cantar Gonzagão em vez do que tocava nas rádios. Diziam que era música de velho. Mas ora, o rock’n’roll é velho que só ele… O Brasil não pode tirar o chapéu para o que vem de fora, só por vir de fora, entende? Eu sempre soube disso”, lembra Alceu, defensor incansável da cultura pernambucana, cujo destino foi, ironicamente, embalado por alquimia entre rock e baião.

Em Olinda, Alceu fortaleceu os laços com o frevo, o maracatu e os caboclinhos. Foto: Arquivo DP
Em Olinda, Alceu fortaleceu os laços com o frevo, o maracatu e os caboclinhos. Foto: Arquivo DP
“Durante toda a carreira, ele defendeu Pernambuco com unhas e dentes. Basta observar sua obra para reconhecer as toadas, o baião, xote, frevo, maracatu, caboclinho, coco, a ciranda, os pífanos… Está tudo lá. Ele sempre me falava assim: ‘Antes de ser do mundo, a gente tem o nosso quintal para cuidar.’ E fez questão disso”, observa o músico caruaruense Paulo Rafael, baixista da banda de Alceu Valença há 40 anos e produtor de seus discos desde o LP Mágico (1984).

Influenciado por Black Sabbath e Led Zeppelin em meados dos anos 1970, Paulo se apropriava das referências pernambucanas do amigo desde que descobrira Molhado de suor (1974). “Geraldo [Azevedo] fez os violões e violas nesse álbum, que já reúne muitos elementos percussivos e de cordas típicos da cultura popular nordestina. As toadas, as canções praieiras…”, lembra o baixista. Ele aponta, além da música, a poesia pernambucana como referencial da produção valenciana: João Cabral de Melo Neto e Ascenso Ferreira seriam fontes de inspiração.

Amigos e parceiros classificam obra de Alceu como bandeira de luta pela cultura popular nordestina. Foto: Paulo Paiva/DP
Amigos e parceiros classificam obra de Alceu como bandeira de luta pela cultura popular nordestina. Foto: Paulo Paiva/DP
Foi no coração de Pernambuco, ainda, que Alceu conviveu com o maracatu e os frevos. Nelson Ferreira, um dos principais compositores do gênero, era seu vizinho, tomava whisky com Décio, pai de Alceu, no terraço da casa dos Valença. “A rua carnavalódroma mudou meu destino, influenciou meu trabalho para sempre. Como já o havia feito São Bento do Una, com seus cordelistas e aboiadores”, recorda o artista. Geraldo Azevedo, que o acolheu no Rio de Janeiro logo após a juventude de influências artísticas em território pernambucano, vê no amigo uma liderança da música local. “Depois de Luiz Gonzaga, Alceu é um dos mais importantes nomes do estado. Ele cria, questiona, defende a arte pernambucana como ninguém”, elogia Geraldo.

No aniversário de 70 anos, celebrados na sexta (1º), Alceu se apresentou em Afogados da Ingazeira, distante pouco mais de 200 Km da cidade natal, cumprindo agenda de São João. Ele diz que 1º de julho é um dia como outro qualquer, mas não esconde o prazer ter vivenciado a ocasião em casa, sobre o palco. “Show é alimento, é vitalidade, alegria, irmandade. Eu sou espelho do meu público e o publico é meu espelho”, diz o pernambucano. “Podem até achar minha música ruim. Podem preferir o pop, que na maior parte do tempo eu acho cafona. Mas nunca poderão dizer que eu cherei o chulé de ninguém. Eu fui sempre eu mesmo, defendi minha terra, jamais me curvei. Mick Jagger pode cavalgar seu cavalo inglês, e todos vão achar lindo, mas eu vou continuar no meu jegue. Porque sou, antes de tudo, brasileiro, nordestino, pernambucano, cidadão do Recife, de Olinda e de São Bento do Una”, conclui.

>> DUAS PERGUNTAS: Alceu Valença, músico

Alceu e a esposa, Yanê, com quem vive há 18 anos. Foto: Nando CHiappetta/DP
Alceu e a esposa, Yanê, com quem vive há 18 anos. Foto: Nando CHiappetta/DP
Chegou a considerar turnê comemorativa pelo aniversário de 70 anos?

De jeito nenhum! (risos) Olha, meu aniversário é um dia como outro qualquer. O tempo não tem fim, não tem começo. É passado, presente e futuro, tudo de uma vez só. Vou cumprir minha agenda normalmente. Além disso, tenho feito poucas turnês. Canto mais em shows fechados. Eu nunca tive patrocinadores, se os tivesse seria ótimo, então fica difícil cruzar um país com essas dimensões, como o Brasil. Mas fazer show no meu aniversário e em qualquer outro dia é um alimento para mim. Minha mãe, Dona Adelma, não dava muita bola para datas comemorativas, como Natal e aniversário. Eu sou assim também. Minha relação com a idade, com a passagem do tempo, é normal, descomplicada.

E qual a influência de São Bento do Una, do Recife, da cultura pernambucana genuína sobre o artista que você se tornou?
Toda. Eu sou São Bento do Una, o Recife, Olinda, Pernambuco. Eu sou os aboiadores e os cordelistas das feiras públicas da minha cidade, e também a radiola do meu avô e os clássicos de Luiz Gonzaga. Sou os frevos, maracatus, desfiles do Corso nos carnavais do Recife da minha adolescência. Sou fruto de tudo isso. Eu defendo a cultura, sobretudo a música pernambucana, brasileira, porque é preciso que alguém assuma esse papel. Todos deveriam defender suas raízes. Se abaixamos a cabeça para o que vem de fora, daqui a pouco chamaremos bicicleta de bike e só falaremos ‘okay’. Não pode. O brasileiro tem que andar de bicicleta, não de bike.

E não tem essa de dar ao povo o que o povo quer, isso é muito relativo. O povo quer cultura, sim. Se você for um prisioneiro e, todos os dias, em determinado momento, o toturador lhe permite ouvir Bach, você vai se apaixonar pela música de Bach. Depois de um tempo, se ele lhe tira Bach e deixa somente o silêncio, você vai querer ouvir qualquer som, ainda que não seja Bach, mesmo que seja muito ruim. Porque até a mais pobre das músicas é melhor que o silêncio. O silêncio é cruel. Precisamos entender isso e oferecer às pessoas música de qualidade. A música pernambucana, ovacionada em todo o mundo, é um exemplo de música de qualidade. Eu estou seguro disso, desde a minha infância, muito bem vivida em São Bento do Una, no Agreste pernambucano, graças a Deus.


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