Audiovisual Novos documentários revelam o verdadeiro significado dos maracatus Com a imagem deturpada pela publicidade e por grupos de batuque, agremiações de baque solto e baque virado possuem aspectos religiosos que são resgatados por filmes e vídeos

Por: Júlio Cavani - Diario de Pernambuco

Publicado em: 01/06/2016 20:57 Atualizado em: 02/06/2016 14:17

Longa-metragem Maracatu Sagrado, de Tiago Melo, revela os bastidores do Cambinda Brasileira (Urânio Filmes/ Divulgação)
Longa-metragem Maracatu Sagrado, de Tiago Melo, revela os bastidores do Cambinda Brasileira
 
Transformados em ícones da cultura pernambucana, os maracatus de baque solto e virado têm todo um significado religioso que raramente é transmitido pela exploração midiática. Novos filmes, lançados em festivais de cinema e na internet, podem ajudar diminuir a desinformação a respeito das tradições e o risco de banalização desses símbolos culturais. São documentários, de curta e longa metragem, que mostram de perto os bastidores das manifestações de forma esclarecedora e até didática.

"Hoje em dia, a gente vê muitos grupos de batuque que são confundidos com maracatus. Estamos perdendo um pouco dessa ligação histórica com as religiões afro", constata Raoni Moreno, diretor do curta-metragem Soberanos do congo, que tem circulado em festivais de cinema. "Quando comecei a fazer o documentário, os grupos festivos de percussão estavam se multiplicando e havia até alguns grupos evangélicos. Para os maracatus, isso mexia muito porque eles têm toda uma cultura a ser preservada, ligada à religiosidade", explica o diretor.

O curta de Moreno retrata especificamente grupos de maracatu nação (de baque virado) e explica as origens africanas dos rituais. "O documentário mostra o que é um maracatu e que existe toda uma história ali por trás. A Noite dos Tambores Silenciosos tem uma energia extrema. Mesmo quem não é religioso consegue sentir", garante.

O filme tem uma linguagem bastante clara, com um texto poético lido em off pelo ator Carlos Ferreira intercalado por entrevistas e imagens feitas nos ensaios e apresentações, além de filmagens em estúdio que enfocam detalhes das danças, indumentárias e instrumentos.

LEVANTAMENTO
Na última semana, o governo do estado compartilhou, na internet, os vídeos que foram utilizados no processo de reconhecimento dos maracatus como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, título cedido pelo governo federal em 2014. Além dos maracatus de baque solto e virado, os cavalos marinhos também receberam a honraria. Parte do material audiovisual, que constou entre os documentos apresentados para o conselho consultivo responsável pelos registros e tombamentos, agora está disponível na íntegra para a sociedade por meio do canal de TV do site da secretaria estadual de cultura.

Os curtas-metragens têm 20 minutos de duração e foram produzidos pela Diretoria de Preservação da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) da Secretaria de Cultura para o Inventário Nacional de Referências Culturais. Já estão disponíveis os vídeos sobre o maracatu nação e sobre o cavalo marinho. Também foram realizados documentários sobre a ciranda, os reisados e os caboclinhos, mas os curtas só serão liberados para o público após a conclusão da análise da candidatura para o título de patrimônio.

"O documentário evidencia três importantes aspectos ligados aos maracatus nação de Pernambuco: suas origens históricas; as relações de significância e pertencimento (identidade cultural); e suas configurações de organização social, especialmente nas comunidades onde estão situados", aponta Marcelo Renan, historiador do Núcleo de Patrimônio Imaterial da Gerência de Preservação Cultural da Fundarpe. Segundo ele, o levantamento envolveu 25 grupos de baque virado de Olinda, Recife, Igarassu e Jaboatão dos Guararapes.

Segundo Renan, os vídeos têm uma função essencialmente etnográfica. As equipes de filmagem foram definidas por meio de licitações públicas. A prioridade era o inventário, independente de discursos ou questões de estilo. A linguagem adotada é direcionada para qualquer público, com o objetivo de informar.


BAQUE SOLTO
Outro novo documentário que oferecerá uma visão mais aprofundada sobre a tradição é o longa-metragem Maracatu sagrado, de Tiago Melo, que aborda o universo do baque solto. "O filme retrata os bastidores do lado religioso e faz uma comparação entre o passado e o presente. Eles estão sempre em evolução e acham que hoje está muito melhor, apesar de antigamente haver mais lendas e uma religiosidade mais forte", antecipa o diretor.

O documentário, que ainda não tem data de lançamento definida (vai depender de aprovação em festivais), apresenta especificamente detalhes do maracatu rural Cambinda Brasileira, fundado em 1918 no município de Nazaré da Mata.

"As bandeiras, os cravos, as bengalas, as bonecas e as espadas dos maracatus recebem bênçãos e têm cunho religioso. Mesmo que os folgazões mais jovens não assumam abertamente a participação nesses rituais, eles carregam esses objetos sagrados e sabem que o grupo como um todo tem essa ligação", observou o cineasta, que durante as filmagens aceitou tornar-se integrante da agremiação.

"Antes do carnaval, alguns caboclos de lança vão na casa da mãe de santo ou do pai de santo para fazer o calço, que é dá proteção e força para aguentar o carnaval inteiro, como um superpoder", revela Tiago Melo. Segundo ele, "a ligação religiosa não é coisa só do passado. Hoje em dia, as apresentações são vistas como uma manifestação mais musical ou carnavalesca, mas todo maracatu ainda tem um pai de santo ou mãe de santo que o defende."

Tiago Melo concorda que a publicidade e as campanhos do governo banalizam a imagem do maracatu deslocada de significados originais, mas diz compreender o fenômeno: "Uma sambada e uma apresentação de maracatu visualmente são coisas realmente incríveis. É bonito, impressionante e impactante.”

Maracatu sagrado terá uma carreira independente, mas foi produzido como parte do projeto Encanteria, das produtoras Urânio Filmes (PE) e Vírgula do Infinito (RJ), formado por quatro longas-metragens sobre religiosidade popular. Os outros são Santo Daime, império da floresta, de André Sampaio, Terecô da Mata do Codó, de Ananias de Caldas, e Índios Zoró, de Luiz Paulino dos Santos (lançado em janeiro na Mostra de Cinema de Tiradentes). Paralelamente às filmagens, Tiago Melo rodou o filme de ficção Azougue Nazaré (título provisório), que também retrata o cotidiano do Cambinda Brasileira e está em processo de montagem.

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