 | |
Grupo Raízes do Mangue propaga lições do movimento mangue em escolas da RMR. Foto: Rafael Martins/DP |
A voz de Chico Science ressoa pela sala de aula durante alguns minutos. Pausa. Almir Cunha, estudante de 23 anos, analisa os versos do mangueboy, comenta a mensagem. Os alunos ouvem. Pausa. Chico outra vez. Desvendar as entrelinhas de cunho político nas composições assinadas por Science é uma das propostas do coletivo Raízes do Mangue, que no mês passado promoveu a primeira aula dedicada ao movimento mangue em escolas da Região Metropolitana do Recife.
Interdisciplinar, o projeto oferta conteúdos de sociologia, ciências políticas, biologia e música a partir do movimento cultural germinado na capital pernambucana dos anos 1990. Divulgado nas redes sociais, o programa Mangue nas Escolas recebeu apoio de músicos que vivenciaram a efervescência do manguebeat no estado, como Rogerman e Gilmar Bolla8, além de convites para estender o projeto a cidades do Litoral Sul do estado.
“Além de nos debruçar sobre as letras de Chico Science e Nação Zumbi, falamos sobre preservação dos mangues, sustentabilidade, inclusão social e a importância daquela cena para a cultura brasileira”, explica Almir Cunha, um dos líderes do coletivo, fundado em 2009 com o propósito de manter viva a memória de Science. O novo desdobramento espelha planos do próprio Francisco de Assis França: há cerca de 20 anos, Chico Science pensava em criar espaço dedicado à formação intelectual de crianças e jovens oriundos de famílias com baixo poder aquisitivo.
Segundo o músico e companheiro de banda Gilmar Bolla8, o aparelho se chamaria Antromangue e funcionaria em tempo integral. “Chico queria revitalizar prédios antigos, instalar essas escolas, para onde pequenos comerciantes levariam seus filhos. Os meninos ficariam no Antromangue até a noite, enquanto os pais trabalhassem, como uma espécie de creche. Além de serem alfabetizados, eles aprenderiam sobre música, cultura popular. Mas ele morreu antes de concretizar esses planos”, conta Bolla8.
 | |
Nas salas de aula, os jovens falam sobre preservação ambiental, música, política e inclusão social. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação |
No Mangue nas Escolas, a obra do pensador e ativista político Josué de Castro, referência para o movimento mangue, também é destrinchada nas salas de aula. “Por que Chico escolheu o mangue como cenário? O que esse ecossistema tem a ver com nossa sociedade? Quem são os caranguejos e quem são os urubus das músicas dele? Tudo isso é questionado e, através de debate interdisciplinar, esclarecido”, diz Almir Cunha. Professores de biologia, sociologia, filosofia e redação têm participado das explanações em sala de aula.
Para Antônio Gabriel Machado, outro estudante engajado no projeto, conduzir as ideias de Chico Science a ambientes de formação sociocultural é a chave para, além de preservar a ideologia do movimento mangue, reacender debates sobre a cidade, os espaços públicos e a preservação ambiental dos manguezais. “Às vezes, temos a impressão de que os pensamentos daquela época ficaram restritos aos artistas que compartilharam aquele momento e a profissionais do nicho cultural. A ideologia mangue é do povo, queremos promovê-la, mantê-la viva”, reforça Machado. O grupo planeja, a partir de autorização da secretaria de Educação do estado, promover duas aulas por mês em diferentes escolas da capital pernambucana.
>> Lições
Preservação ambiental A sustentabilidade é dos principais tópicos da explanação do Mangue nas Escolas. “O mangue, ecossistema que inspira o movimento criado por Science, está em toda parte, à nossa volta. Quando a maré baixa, vemos que está tomado por lixo. Queremos conscientizar os meninos a interromper esse ciclo de poluição, degradação”, explica Antônio Machado.
Inclusão socialO propósito de incluir socialmente as classes menos abastadas da sociedade, especialmente através da cultura e da arte, é repassado aos alunos. “A música do manguebeat é massa, o ritmo é massa, mas existe algo significativo por trás, que vai além do ritmo, da contribuição musica. É a questão social, de inclusão”, pontua Almir Cunha.
Conscientização políticaAtravés da análise de letras politicamente engajadas, o coletivo Raízes do Mangue debate a situação política do país e resgata ideologias do movimento liderado por Science. “Nesse momento do país, Chico teria perfil ativista, ele reuniria as pessoas em torno de pensamentos e ações”, supõe Cunha.
Contribuição musical O legado da geração mangue para a música pernambucana também serve como pano de fundo nas aulas. Ritmo, melodia, letras e influências sonoras do mangueboy são destrinchados, assim como a obra de artistas remanescentes daquela fase. Produções culturais influenciadas diretamente pelo manguebeat também são citadas pelo coletivo.
>> Manifesto manguebeat
 | |
Professores de outras disciplinas participam das explanações. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação |
Muito da ideologia presente no movimento manguebeat estava diluído não apenas nas composições assinadas por Chico Science, mas em vários elementos ligados à cena musical surgida nos anos 1990. De tão arraigadas nos músicos, as ideias ganhavam eco nas mais diversas plataformas. Em julho de 1992, bem ao estilo "faça você mesmo", o músico Fred Zero Quatro, jornalista e fundador da banda Mundo Livre S/A, escreveu um texto para divulgação de uma festa.
Assim, quase por acaso, surgiu o primeiro manifesto mangue, sob o título
Caranguejos com cérebro. "Eu fui contratado para roteirizar um documentário sobre menaguezais. O parágrafo de abertura da narração é o mesmo do manifesto", relembra Fred. Ali estava esmiuçada a essência do manguebeat, com bandeiras como a defesa da diversidade. Logo o movimento contagiou outros músicos e abriu portas para a atuação de bandas como Baiana System, Sheik Tosado, Mestre Ambrósio, Comadre Fulozinha, Jorge Cabeleira, Eddie, Via Sat e Querosene Jacaré.