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Manguebeat Lições do mangue: fãs de Chico Science levam manguebeat a escolas pernambucanas Grupo dissemina ideologias do movimento mangue em escolas da Região Metropolitana do Recife, associadas a mensagens socioambientais

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 07/06/2016 20:01 Atualizado em: 07/06/2016 18:58

Grupo Raízes do Mangue propaga lições do movimento mangue em escolas da RMR. Foto: Rafael Martins/DP
Grupo Raízes do Mangue propaga lições do movimento mangue em escolas da RMR. Foto: Rafael Martins/DP

A voz de Chico Science ressoa  pela sala de aula durante alguns minutos. Pausa. Almir Cunha, estudante de 23 anos, analisa os versos do mangueboy, comenta a mensagem. Os alunos ouvem. Pausa. Chico outra vez. Desvendar as entrelinhas de cunho político nas composições assinadas por Science é uma das propostas do coletivo Raízes do Mangue, que no mês passado promoveu a primeira aula dedicada ao movimento mangue em escolas da Região Metropolitana do Recife.

Interdisciplinar, o projeto oferta conteúdos de sociologia, ciências políticas, biologia e música a partir do movimento cultural germinado na capital pernambucana dos anos 1990. Divulgado nas redes sociais, o programa Mangue nas Escolas recebeu apoio de músicos que vivenciaram a efervescência do manguebeat no estado, como Rogerman e Gilmar Bolla8, além de convites para estender o projeto a cidades do Litoral Sul do estado.

“Além de nos debruçar sobre as letras de Chico Science e Nação Zumbi, falamos sobre preservação dos mangues, sustentabilidade, inclusão social e a importância daquela cena para a cultura brasileira”, explica Almir Cunha, um dos líderes do coletivo, fundado em 2009 com o propósito de manter viva a memória de Science. O novo desdobramento espelha planos do próprio Francisco de Assis França: há cerca de 20 anos, Chico Science pensava em criar espaço dedicado à formação intelectual de crianças e jovens oriundos de famílias com baixo poder aquisitivo.

Segundo o músico e companheiro de banda Gilmar Bolla8, o aparelho se chamaria Antromangue e funcionaria em tempo integral. “Chico queria revitalizar prédios antigos, instalar essas escolas, para onde pequenos comerciantes levariam seus filhos. Os meninos ficariam no Antromangue até a noite, enquanto os pais trabalhassem, como uma espécie de creche. Além de serem alfabetizados, eles aprenderiam sobre música, cultura popular. Mas ele morreu antes de concretizar esses planos”, conta Bolla8.

Nas salas de aula, os jovens falam sobre preservação ambiental, música, política e inclusão social. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação
Nas salas de aula, os jovens falam sobre preservação ambiental, música, política e inclusão social. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação
No Mangue nas Escolas, a obra do pensador e ativista político Josué de Castro, referência para o movimento mangue, também é destrinchada nas salas de aula. “Por que Chico escolheu o mangue como cenário? O que esse ecossistema tem a ver com nossa sociedade? Quem são os caranguejos e quem são os urubus das músicas dele? Tudo isso é questionado e, através de debate interdisciplinar, esclarecido”, diz Almir Cunha. Professores de biologia, sociologia, filosofia e redação têm participado das explanações em sala de aula.

Para Antônio Gabriel Machado, outro estudante engajado no projeto, conduzir as ideias de Chico Science a ambientes de formação sociocultural é a chave para, além de preservar a ideologia do movimento mangue, reacender debates sobre a cidade, os espaços públicos e a preservação ambiental dos manguezais. “Às vezes, temos a impressão de que os pensamentos daquela época ficaram restritos aos artistas que compartilharam aquele momento e a profissionais do nicho cultural. A ideologia mangue é do povo, queremos promovê-la, mantê-la viva”, reforça Machado. O grupo planeja, a partir de autorização da secretaria de Educação do estado, promover duas aulas por mês em diferentes escolas da capital pernambucana.

>> Lições
 
Preservação ambiental

A sustentabilidade é dos principais tópicos da explanação do Mangue nas Escolas. “O mangue, ecossistema que inspira o movimento criado por Science, está em toda parte, à nossa volta. Quando a maré baixa, vemos que está tomado por lixo. Queremos conscientizar os meninos a interromper esse ciclo de poluição, degradação”, explica Antônio Machado.

Inclusão social

O propósito de incluir socialmente as classes menos abastadas da sociedade, especialmente através da cultura e da arte, é repassado aos alunos. “A música do manguebeat é massa, o ritmo é massa, mas existe algo significativo por trás, que vai além do ritmo, da contribuição musica. É a questão social, de inclusão”, pontua Almir Cunha.

Conscientização política
Através da análise de letras politicamente engajadas, o coletivo Raízes do Mangue debate a situação política do país e resgata ideologias do movimento liderado por Science. “Nesse momento do país, Chico teria perfil ativista, ele reuniria as pessoas em torno de pensamentos e ações”, supõe Cunha.

Contribuição musical
O legado da geração mangue para a música pernambucana também serve como pano de fundo nas aulas. Ritmo, melodia, letras e influências sonoras do mangueboy são destrinchados, assim como a obra de artistas remanescentes daquela fase. Produções culturais influenciadas diretamente pelo manguebeat também são citadas pelo coletivo.

>> Manifesto manguebeat

Professores de outras disciplinas participam das explanações. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação
Professores de outras disciplinas participam das explanações. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação
Muito da ideologia presente no movimento manguebeat estava diluído não apenas nas composições assinadas por Chico Science, mas em vários elementos ligados à cena musical surgida nos anos 1990. De tão arraigadas nos músicos, as ideias ganhavam eco nas mais diversas plataformas. Em julho de 1992, bem ao estilo "faça você mesmo", o músico Fred Zero Quatro, jornalista e fundador da banda Mundo Livre S/A, escreveu um texto para divulgação de uma festa.

Assim, quase por acaso, surgiu o primeiro manifesto mangue, sob o título Caranguejos com cérebro. "Eu fui contratado para roteirizar um documentário sobre menaguezais. O parágrafo de abertura da narração é o mesmo do manifesto", relembra Fred. Ali estava esmiuçada a essência do manguebeat, com bandeiras como a defesa da diversidade. Logo o movimento contagiou outros músicos e abriu portas para a atuação de bandas como Baiana System, Sheik Tosado, Mestre Ambrósio, Comadre Fulozinha, Jorge Cabeleira, Eddie, Via Sat e Querosene Jacaré.

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