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Música Você faz parte da geração tombamento? Com visual extravagante e excentricidade no palco, artistas lutam pelo empoderamento negro e por liberdade sexual

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 12/06/2016 18:10 Atualizado em: 12/06/2016 18:16

Liniker, Karol Conka e Rico Dalasam são ícones da geração tombamento, neta da linhagem tropicalista da MPB. Fotos: Divulgação
Liniker, Karol Conka e Rico Dalasam são ícones da geração tombamento, neta da linhagem tropicalista da MPB. Fotos: Divulgação

Liberdade é pouco. O que eles desejam ainda não tem nome. Netos da linhagem tropicalista, os expoentes da chamada “geração tombamento” galgam espaço na música nacional e fortalecem a cultura negra através da estética. Nos palcos, eles desconstroem normatividades de gênero e sexualidade. Cabelos, lábios e figurino têm cores extravagantes, estampas étnicas. Performáticos, artistas como Liniker, Karol Conka e Rico Dalasam tomam emprestados versos de Tombei (Karol Conka feat. Tropkillaz) para denominar a confluência temporal e ideológica que os transforma em movimento político, estético e musical: Vai ter que se misturar / Ou, se bater de frente, perigo é cair / Já que é pra tombar / Tombei. A expressão - equivalente a “lacrar”, “arrasar” - envolve vaidade, moda, aceitação social, empoderamento.

As semelhanças com a subcultura dos sapeurs, comunidade do Congo com habilidades de alfaiataria e estilo impecável, ajudam a clarificar o propósito da geração tombamento. Conhecidos como “os fashionistas do Congo”, os sapeurs irromperam nos anos 1960, a partir da criação da La Sape (Sociedade de Pessoas Elegantes), com o lema “vamos baixar as armas, trabalhar e nos vestir com elegância.” Em meio a cenários devastados por guerras civis, eles costuram as próprias roupas e usam a aparência para dirimir mazelas sociais - segundo dados do Banco Mundial, o PIB per capita da República Democrática do Congo é de US$ 231, um dos mais baixos do mundo. Os sapeurs se valem da originalidade e do senso de estilo - inspirado nos dândi do século 20 - para expressar sua identidade e empoderar a si mesmos.

À geração tombamento, parte da militância negra dirigiu críticas a respeito da inquietação estética, considerada fútil por alguns ativistas. “A tal geração tombamento me parece estar mais preocupada em tombar nas redes do que fora delas”, publicou o site ativista Bicha Nagô. No livro Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, referência no tema publicada nos anos 1980, a pesquisadora Neusa Santos oferece contraponto a esse argumento, assumindo a estética como elemento de luta por espaços sociais. “Numa sociedade de classes onde os lugares de poder e tomada de decisão são ocupados por brancos, o negro que pretende ascender lança mão de uma identidade calcada em emblemas brancos. Essa identidade é contraditória: ao mesmo tempo em que serve de aval para o ingresso nos lugares de prestígio e poder, o coloca em conflito com sua historicidade”, pontua Neusa. Acessar espaços de poder, como fazem os artistas da geração tombamento, assumindo estética negra seria, portanto, um êxito do movimento atual.

Os lenços, turbantes, estampas étnicas e cores extravagantes, como no figurino de Liniker (foto) remetem à comunidade dos Sapeurs. Foto: Divulgação
Os lenços, turbantes, estampas étnicas e cores extravagantes, como no figurino de Liniker (foto) remetem à comunidade dos Sapeurs. Foto: Divulgação
“Por que colocar uma calça jeans e uma camiseta e mostrar meu trabalho só com a voz? Meu corpo é um corpo político, preciso mostrá-lo às pessoas. ‘Esse é o Liniker, um cara pode usar um batom, turbante e cantar’. Sou um artista dessse porte”, declarou Liniker, um dos expoentes da causa, em entrevista ao El país. Com maxibrincos, delineador, batons de cores extravagantes e figurino colorido, Liniker lançou o primeiro EP, Cru, em julho do ano passado, como Liniker e os Caramelows. Karol Conka, também na linha de frente do tombamento, reforça a tendência: pele negra, maquiagem exuberante, cabelos cor-de-rosa.

“Isso é feminismo negro. A noção de que a mulher negra pode usar as cores que quiser. Antes, somente mulheres brancas tingiam os cabelos de azul, rosa, amarelo. As negras faziam alisamento, tranças. Agora, o black power vem ganhando força, os cabelos crespos são aceitos. E eles devem ter a cor que as negras quiserem”, argumenta Dandara Pagu, recifense produtora de cinema e uma das líderes do coletivo feminista Vaca Profana. Dandara carrega cicatriz no couro cabeludo em decorrência de queimadura durante processo de alisamento artificial dos fios. “Eu tentava seguir o padrão de beleza que conhecia. Por isso é tão importante o negro se ver, se sentir representado. Se você só vê loiras de cabelo liso, o que você vai querer? Ser igual a elas. Mas se você vê uma negra com cabelo black power, ainda mais se sentindo bonita, isso muda tudo. Está virando moda ser preto. Ainda bem!”, comemora a ativista.

Além das estampas étnicas e tons chamativos, os artistas reforçam a postura “tombamento” com performances sensuais, interpretações vigorosas no palco. “É uma guerra pela mudança, pela conquista de poder e para nos comunicarmos através da música, fazendo nossa arte de maneira sincera, divertida, contestadora e livre”, diz o músico performático Madblush, eregido no universo drag queen. De pele branca e classe média, ele se considera parte da geração dedicada a “tombar” musical e politicamente, já que outras bandeiras se aglutinaram à da valorização da estética negra, como o combate ao machismo, à homofobia e à transfobia. As Bahias e a Cozinha Mineira, outro expoente da geração, é exemplo disso: atraiu os holofotes no ano passado, com o álbum Mulher, dedicado às causas feministas. As vocalistas, Assucena Assucena e Raquel Virgínia, são transexuais e combatem, entre outras resistências, o pensamento de corrente radical do feminismo que rejeita mulheres transexuais por compartilharem privilégios do universo masculino.

Nos palcos, a androginia defende a liberdade sexual. Pernambucanos como Johnny Hooker e Fênix levantam a bandeira. Fotos: Divulgação
Nos palcos, a androginia defende a liberdade sexual. Pernambucanos como Johnny Hooker e Fênix levantam a bandeira. Fotos: Divulgação

>> ANDROGINIA: A MÚSICA É DE TODOS OS SEXOS

Uma das correntes da geração tombamento, dedicada a desconstruir normatividades de gênero e sexualidade, lança luz sobre a androginia (mistura de características masculinas e femininas num mesmo ser). “A questão da androginia na música é expressão de um movimento global de resignificação das noções de gênero que até então dominaram a nossa sociedade. Parece que estamos finalmente entendendo que a definição binária de gênero não corresponde à forma como as pessoas se vêem e se sentem”, explica Carol Soares, pesquisadora de música e comportamento e mestra em antropologia. Para ela, a performance andrógina nos palcos não é novidade - “apareceu em vários momentos, com artistas como David Bowie, Prince, Boy George, Placebo, New York Dolls, La Roux, Cassia Eller e Ney Matogrosso” -, mas agora espelha demandas da sociedade como forma de militância.

O pernambucano João Fênix, que nos anos 1990 já levava aos palcos a alquimia andrógina - performance sensual, timbre feminino e figurino hermafrodita - repetida hoje por nomes como o conterrâneo Johnny Hooker, reforça a nova leva com o recém-lançado De volta ao começo (Biscoito fino, R,90). “O surgimento deste tipo de artistas em nossa música é cíclico. Mas, de fato, há muitos representantes na cena atual. Isso se deve a uma repressão e onda conservadora que, ao mesmo em que se escancara na política, na internet e na sociedade, também encontra forte resistência entre a classe artística”, opina Fênix. “ Vejo todos esses artistas como ferramentas político-sociais fundamentais nesse processo de resistência e ruptura. Eles são únicos entre si. Alguns melhores como cantores, outros como compositores e outros, ainda, como performers. Sou fã”, completa o músico, um dos precursores da tendência.

Para o pesquisador e professor do departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Thiago Soares, a postura andrógina e performática é herança do rock internacional, hoje azeitada com discurso político mais latente. Ele acredita, porém, que os efeitos diretos dessa geração artística sobre a sociedade são incertos, corroborando o pensamento da filósofa do feminismo contemporâneo Judith Butler. “Ela acredita que os artistas pertencem a outra esfera social. Eles estão cercados de elementos cênicos, ficcionais, o que faz com que sua postura, aceita nos palcos, nem sempre seja aceita entre os cidadãos comuns. Existe uma linha divisória entre o artístico e o cotidiano”, pontua Soares. “No entando, é importante que o movimento exista. A partir do momento em que essas figuras emblemáticas se pronunciam e se colocam como sujeitos políticos, de gênero, isso traz à tona o debate”, completa.

ENTREVISTA: Dandara Pagu, produtora e ativista do feminismo em Pernambuco, uma das líderes do coletivo Vaca Profana

A geração tombamento já foi debatida em eventos organizados pelo Vaca Profana? É um tema comum em eventos promovidos por coletivos feministas?
Sim. Discutimos o tema na Mostra que é Femi, no Recife e em São Paulo. É uma pauta que abarca outras bandeiras, como o feminismo negro, por exemplo. E, por isso, está diretamente ligada às pautas feministas, de empoderamento e desconstrução de preconceitos.

E como vê essa corrente?

A geração tombamento surge, basicamente, de um núcleo jovem negro. Há músicas de pessoas mais jovens e estilos de pessoas mais jovens envolvidos no processo. Eles se inspiram nos sapeurs, do Congo, que se vestem muitíssimo bem, mas são muito pobres. Nessa comunidade africana, eles mesmos costuram e se vestem para reduzir diferenças sociais. Assim como faz a geração tombamento aqui no Brasil, se valorizam através da estética. Esse é um resgate de identidade, e isso também é empoderamento. Se sentir confiante é estar empoderado.

Há quem considere fútil essa preocupação estética. O que você pensa a respeito?

Não deixa de ser uma preocupação puramente estética, sim, e isso gera críticas. Mas a partir do momento que as pessoas se impõem pelo modo como se vestem, como se arrumam, e isso faz com que se sintam confiantes, considero saudável, válido. É óbvio que não se pode deixar de participar de um protesto porque o tom de verde do seu cabelo não ficou tão bom. Mas se ter o cabelo verde, azul ou rosa te deixa confiante o bastante para protestar pelos seus direitos, então vale a pena. A estética também empodera.

A estética contribui para o empoderamento e valoriza a cultura negra, acreditam os Sapeurs do Congo. Foto: Reprodução da internet
A estética contribui para o empoderamento e valoriza a cultura negra, acreditam os Sapeurs do Congo. Foto: Reprodução da internet
Como funciona esse processo de empoderamento através da aparência, da atitude?

Na verdade, é na estética que os preconceitos começam. É a partir da aparência que as pessoas são segregadas num primeiro momento. Esse é branco, aquele é preto... porque essa é a primeira característica que se observa num ser humano: a cor da pele. E a partir dessa primeira segregação, vêm as outras. Se você consegue se impor, se sentir bonito e seguro com sua aparência, desde esse primeiro contato, a preocupação estética é importantíssima. Se seu cabelo, corpo e roupa ajudam a transmitir sua mensagem, suas ideologias, então são importantes. Quem sai às ruas de cabelo azul não está à toa, entende? Essa pessoa deve ter algo a dizer. Nessa luta, a estética e a postura são armas a mais.

Esse movimento é sazonal? Ou a geração tombamento é uma corrente inédita?
A geração tombamento tem como grande base o movimento afropunk, as correntes de valorização do negro em países como Brasil e Estados Unidos. Esse tipo de movimento se forma porque sempre há alguém do movimento negro promovendo ações para manter sua estética, sua identidade. Isso existe desde sempre, e sempre existirá. O ineditismo da geração tombamento vem da combinação entre o propósito da corrente e o contexto histórico e social em que ela foi criada. A sociedade recebeu bem o tombamento, no momento certo. Ser preto está na moda. Estamos sendo mais aceitos e, ao mesmo tempo, está surgindo uma galera nova, ativa, ligada à música e à moda. Essa galera está querendo ter um [cabelo] black power azul, e ele vai ser azul. Porque o cabelo é seu e você faz com ele o que ele quiser. Um black azul, um batom rosa, uma roupa roxa... São pleitos atuais, representantes atuais, lutas atuais, todos derivados de movimentos muito antigos pela valorização da cultura negra em geral.

DUAS PERGUNTAS: Clara Santana Parker, pesquisadora musical, especialista em história da música, rock'n'roll, blues e produções musicais dos anos 1960 e 1970

Acredita que seja uma tendência o surgimento de artistas com bandeiras voltadas à androginia, à igualdade de gênero e à desconstrução de preconceito
s?
Estamos vivendo um momento da história em que o conservadorismo está juntando forças para impedir avanços nos direitos humanos e ameaçando a evolução da sociedade em geral, pregando intolerância e preconceito. É natural que surja um contraponto, e acredito que artistas, sejam do meio musical, teatral, da literatura, ou das artes plásticas, tenham a sensibilidade e criatividade para traduzir essas reivindicações básicas do campo das ideias para a realidade artística. Esta, por sua vez, se reflete na realidade da sociedade quando atinge o público. Por isso, acredito que a militância no meio artístico tende a crescer e estar em evidência, à medida que a resistência à evolução cresça.

Na história da música, para onde apontam as raízes da geração tombamento? Há alguma associação com o cenário político nacional?

Acredito que ápice da militância musical no Brasil tenha sido nas décadas de 1960, 1970 e começo dos anos 1980, especialmente durante a ditadura militar. Artistas como Chico Buarque, Edu Lobo e Gilberto Gil utilizavam o palco para protestar, principalmente nos populares Festivais de Música. A televisão se consagrava como principal meio de comunicação, levando para a tela os jovens músicos brasileiros, que por sua vez, se esforçavam para educar o público, subversivamente, por meio de músicas de protesto. Fora do Brasil, o Movimento Hippie teve sua origem como contraponto para a guerra do Vietnã, tendo seu ápice no Festival Woodstock, em 1969. Ou seja, sempre que há uma crescente onda de retrocesso, há, também, o crescimento do contraponto, a contracultura.

>> Ingredientes


Politização
As bandeiras libertárias pautam as composições e os discursos dos expoentes da geração tombamento. Politizados, eles usam as redes sociais para comentar crises sociais e políticas, não temem o envolvimento em polêmicas e rebatem argumentos de seguidores que se opõem a seus posicionamentos. No palco, dão "sermão" em governantes conservadores e reforçam ideologias pessoais.

Os Sapeurs costuram as próprias roupas como forma de dirimir a miséria em que vivem. Foto: Youtube/Reprodução
Os Sapeurs costuram as próprias roupas como forma de dirimir a miséria em que vivem. Foto: Youtube/Reprodução
Estética

Estampas étnicas e cores fortes são elementos básicos para a composição do visual tombamento. A aparência funciona como cartão de visitas e anuncia a postura empoderada dos músicos, predominantemente jovens e negros. As referências à cultura africana, matriz dos símbolos da estética negra, se estendem, ainda, aos penteados com turbantes e cortes black power com fios coloridos em tons extravagantes.

Som
A maioria das músicas é dançante, já que a performance sensual e confiante no palco - e na plateia - é elemento fundamental da proposta. Ritmos africanos e caribenhos se misturam, somando componentes do zouk, da salsa, da cumbia, do rap e do hip hop. A libertação do corpo como propriedade pessoal é valorizada nas coreografias, que exploram movimentos livres, ritimados, lascivos, contagiantes.

Empoderamento
O resgate estético da cultura negra, as ideologias igualitárias e o combate a preconceitos contribuem para o processo de empoderamento diretamente atrelado à geração tombamento. Tombar é, para os expoentes do movimento, se empoderar. Conscientes de seus direitos e do valor cultural de suas raízes, os músicos pregam a liberdade sexual e de expressão. Eles incentivam a emancipação individual dos fãs, a superação das dependências políticas, econômicas e sociais.

Feminismo
Estreitamente ligado ao movimento, o feminismo está inserido na valorização estética da mulher negra, nas letras dedicadas à emancipação da mulher e nos dicursos politizados de representantes da geração tombamento. O feminismo negro, mais especificamente, compartilha muitas bandeiras do movimento, combatendo racismo e sexismo concomitantemente.

Liberdade sexual
A liberdade sexual é encorajada em coreografias e letras que privilegiam a livre manipulação do próprio corpo. O direito de expressar e exercer a própria sexualidade, sem que ela seja reprimida por outros indivíduos, é peça-chave da conduta da geração tombamento.



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