Música Relíquias do Movimento Armorial ganham o mundo com partituras disponíveis na internet Partituras originais dos anos 1970, antes manuscritas, foram encartadas em publicações da Cepe e estão disponíveis para download gratuito no site do conservatório

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 29/05/2016 10:10 Atualizado em: 27/05/2016 16:22

Movimento Armorial ganha novo fôlego no ensino de música clássica em Pernambuco. Na foto, o violinista Iuri Tavares, da Orquestra Criança Cidadã. Foto: Rafael Martins/DP
Movimento Armorial ganha novo fôlego no ensino de música clássica em Pernambuco. Na foto, o violinista Iuri Tavares, da Orquestra Criança Cidadã. Foto: Rafael Martins/DP

Quando o primeiro violinista da Orquestra Criança Cidadã faz soar as notas de partituras armoriais, todas concebidas no Recife dos anos 1970, o movimento que propunha unir popular e erudito ganha nova vida. Os acordes anulam a distância de tempo e espaço entre a geração de Iuri Tavares, titular da função aos 18 anos, e a dos mentores do Movimento Armorial. Hoje, o estreitamento é facilitado pela publicação de partituras originais - editoradas a partir de manuscritos - em livros encartados pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) e organizados pelo maestro Sérgio Barza, do Conservatório Pernambucano de Música. Em três volumes, raridades musicais do levante cultural capitaneado pelo dramaturgo Ariano Suassuna são catalogadas pela primeira vez, robustecendo sua inclusão no ensino de música clássica no estado.

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“É uma conquista sem precedentes. Até o fim do ano passado, precisávamos resgatar partituras escritas à mão. Era um processo conduzido de boca a boca, entre professores, maestros, instrumentistas, sem catalogação. Muitas vezes tínhamos somente algumas partes cavas [instrumentos em separado] das peças, o que impossibilitava executá-las”, conta o pernambucano Clóvis Pereira Filho, violinista da Orquestra Sinfônica Brasileira e professor de música clássica em Pernambuco. Herdeiro de um dos criadores da Orquestra Armorial, o compositor e pianista Clóvis Pereira, o violinista trabalha há dez anos no resgate de partituras originais. Ele acompanhou, na infância, o envio de peças assinadas pelo pai a outros continentes, remetidas em malotes colossais.

“Quando um concerto era alugado ou comprado por orquestras estrangeiras, os manuscritos eram emprestados ou fotocopiados um a um. O processo de despacho era confuso, precário, arriscado. Mas era a única forma de estender o armorial para além do Brasil”, recorda Clóvis Pereira Filho. Hoje, partituras de Clóvis Pereira, Cussy de Almeida, Jarbas Maciel e Benny Wolkoff, entre outros, estão disponíveis em link aberto no site da Cepe. “Além da importância como registro histórico, a iniciativa atende à preocupação de que a música armorial volte a ser tocada, ouvida e pesquisada em larga escala pelas novas gerações”, opina o compositor e pesquisador Carlos Eduardo Amaral.

A união faz o som: artistas pernambucanos se unem para coproduzir músicas novas

Iuri está na OCC há sete anos, e hoje atua como primeiro violinista da orquestra. Foto: Rafael Martins/DP
Iuri está na OCC há sete anos, e hoje atua como primeiro violinista da orquestra. Foto: Rafael Martins/DP
Para o maestro Nilson Galvão, à frente da Orquestra Criança Cidadã, a catalogação de partituras originais dos anos 1970 lança nova luz sobre os concertos do grupo e revigora o legado do movimento armorial. “Nos últimos anos, tentamos reproduzir algumas peças armoriais por reconhecimento, adaptando as notas por audição. Foi bom compará-las às originais e ver que estavam corretas”, conta Galvão.

“Papéis se perdem, compositores morrem, partituras remetidas se extraviam… A editoração e publicação dos manuscritos garante sua perenidade”, comemora. Entre os 230 alunos do grupo, a adoção de novas partituras do segmento no repertório também é celebrada. “Tocar [músicas] armoriais tem uma dimensão diferente, mais especial, por se tratar de uma produção genuinamente pernambucana”, opina Iuri Tavares, que estuda violino erudito na OCC desde os sete anos.

Preciosidades como A pedra do reino (Jarbas Maciel), Aboio (Cussy de Almeida) e No reino da pedra verde (Clóvis Pereira) estão entre as composições recém-reveladas - na íntegra, grades e cavas - ao ambiente acadêmico. “Nos livros, foram encartadas as grades completas. No site, é possível acessar também as partituras de cada instrumento, exceto as de Guerra Peixe, cuja família autorizou somente a divulgação impressa”, explica o maestro Sérgio Barza, organizador da coletânea editada pela Cepe.

O maestro Sérgio Barza coordenou a editoração de partituras. Foto: Ricardo Fernandes/DP
O maestro Sérgio Barza coordenou a editoração de partituras. Foto: Ricardo Fernandes/DP
Barza coordenou equipe de professores do Conservatório Pernambucano de Música no processo de editoração (conversão do manuscrito para o digital) das partituras durante seis meses, motivado pela propagação do movimento e pela conservação do acervo de originais. “A Orquestra Armorial nasceu aqui. Temos o acervo de partituras, já incluíamos o armorial em nossos concertos. A digitalização, porém, contribui para a conservação dos manuscritos, que não precisam mais ser consultados, nem fotocopiados. Eles já foram muito desgastados nas últimas décadas”, justifica o maestro.
    
>> O Armorial

Criado em 1970, o Movimento Armorial foi oficialmente lançado no dia 18 de outubro, em concerto aberto ao público no Pátio de São Pedro, Bairro do Recife. Estendido a diferentes vertentes artísticas, foi ecoado na música, literatura, dança, arquitetura, no cinema, teatro e nas artes plásticas. A proposta do movimento era criar arte erudita a partir de referências da cultura popular e popularizar o erudito. “Esses elementos regionais seriam transcritos de forma a serem internacionalizados, através da linguagem clássica da música”, explica o violinista Clóvis Pereira Filho. “O frevo, por exemplo, era tocado em orquestra erudita. Quem imaginaria isso naquela época? Eu comparo o armorial à bossa nova: um movimento profundo em sua estrutura musical, que permanece atual há quatro décadas. A melodia, a harmonia, são modernas, atuais”, complementa.

O dramaturgo Ariano Suassuna foi o principal idealizador do Armorial, apoiado por grupo de artistas e escritores nordestinos. Antonio Madureira, Raimundo Carrero, Gilvan Samico e Francisco Brennand reforçaram a corrente. Do projeto, nasceram grupos como a Orquestra Armorial de Câmara, o Quinteto Armorial, o Balé Armorial do Nordeste e o Grupo Grial. A literatura de cordel e o romanceiro popular da região foram referência para o movimento, dos versos à xilogravura. Instrumentos tipicamente nordestinos, como a rabeca, e manifestações folclóricas como o cavalo-marinho e o bumba-meu-boi foram peças-chave do Movimento Armorial.

>> Percussão Armorial
O maestro Nilson Galvão coordena a execução de peças armoriais na orquestra de crianças e jovens. Foto: Rafael Martins/DP
O maestro Nilson Galvão coordena a execução de peças armoriais na orquestra de crianças e jovens. Foto: Rafael Martins/DP
Além das peças reproduzidas por orquestras tradicionais, a lógica armorial se estende, ainda, a grupos percussivos. No Contratempo, coordenado pelo professor Enoque Souza, instrumentista da Orquestra Sinfônica do Recife, a valorização da música regional, pilar do Movimento Armorial, é inquietação básica. “Nas periferias, ritmos como o bregafunk tocam em todas as esquinas. Quando chegam às aulas, os jovens têm contato com a música regional, com a cultura popular nordestina, de raiz. Esse resgate é fundamental”, explica Enoque. Em alguns concertos, diante da escassez imprevista de flautas, o professor regeu alunos substituindo o instrumento por xilofone (instrumento de percussão cujos teclados são tocados por baquetas) e vibrafone (teclado com placas de metal que produzem som por vibração).

O uso de apetrechos eruditos para reproduzir sonoridades populares - como os violinos em lugar da rabeca nordestina - é obedecido em arranjos armoriais como os de Chegança, uma das músicas executadas pelo Contratempo, além dos usados em peças teatrais criadas no auge do levante. “No Movimento Armorial, os intrumentos percussivos são zabumba, agogô, triângulo… Além do berimbau, incorporado às peças por Cussy de Almeida. Se usado, o berimbau é afinado nas notas da música que será orquestrada. Não se usa a cabaça, somente as cordas”, descreve o professor, que já regeu concerto no qual os músicos usaram somente os próprios corpos como ferramentas de percussão. A ideia do grupo, que mistura armorial e contemporâneo nas apresentações, é dar protagonisto a percussionistas, já que, comumente, são posicionados ao fundo do palco, como apêndices da orquestra tradicional. “A cada concerto, uma média de oito alunos entra em cena, com o objetivo maior de valorizar a música genuinamente pernambucana.”

ENTREVISTA: Clóvis Pereira, maestro e pianista, um dos fundadores da Orquestra Armorial de Câmara

“Não tive forças para continuar sozinho”

O maestro Clóvis Pereira foi um dos fundadores da Orquestra Armorial de Câmara. Foto: Cepe/Reprodução
O maestro Clóvis Pereira foi um dos fundadores da Orquestra Armorial de Câmara. Foto: Cepe/Reprodução
Poderia sintetizar, em linhas gerais, o contexto histórico e o sentimento que contribuiram para a gênese do Movimento Armorial, nos anos 1970?

Na época, estados do Sul e Sudeste do país não conheciam o cancioneiro popular nordestino. Conheciam Luiz Gonzaga e Zé Dantas, mas esse era apenas um segmento da música nordestina.

Como surgiu a Orquestra Armorial?

Quando Ariano [Suassuna] fundou o movimento, convidou Jarbas Maciel, que era músico da Orquestra Sinfônica e professor da universidade para o projeto. Jarbas aconselhou que ele chamasse a mim também, pois havíamos estudado com Guerra-Peixe nos anos 1950. Jarbas também recrutou Cussy de Almeida, que estava à frente do Conservatório Pernambucano de Música, que seria o organismo público a serviço da nova orquestra. Nos reuníamos no conservatório, na casa de Ariano… As primeiras músicas começaram a surgir em escala armorial, como a dos violeiros tradicionais do agreste pernambucano. Com o tempo, Jarbas e Cussy convenceram Ariano a usar toda a orquestra do conservatório. Esse era o plano desde o começo. As flautas faziam papel de pífanos e os violinos, da viola sertaneja. A primeira gravação foi Mourão, de autoria minha e de Guerra Peixe, considerada o hino do movimento armorial. Nosso primeiro conserto foi na casa de Francisco Brennand, organizado por Ariano, ainda com formação reduzida da orquestra. Ele [Ariano] fez questão de fazer essa homenagem a Brennand, grande nome das artes e da cultura locais. Assumi a função de maestro porque não havia lugar para o meu piano na lógica armorial. Além do mais, Jarbas não queria reger, ele preferia tocar. E nós sabíamos que a orquestra, com ele tocando, soaria muito melhor.

Como podemos definir a música armorial, para onde apontam suas raízes?
Quando o Brasil foi colonizado, grupos de portugueses influenciados pelos espanhóis e pelos povos orientais se estabeleceram em algumas regiões do país. Isso há muitos, muitos séculos. Eles trouxeram escalas diferentes das que viriam a ser chamadas de clássicas. Na Zona da Mata de Pernambuco, violeiros que desconheciam a escala clássica guardaram por gerações essas escalas. Elas eram puras, desprovidas de influências da música clássica europeia. Nos anos 1940, Sivuca começou a resgatar essas escalas. Nos anos 1950, Guerra Peixe veio à região pesquisar sobre música, e introjetou a valorização daquelas notas em músicos locais, inclusive em mim.

Considera possível um novo levante do movimento armorial nos dias atuais?
Sim. Por que não? Não tem nada a ver com o espírito da época. Basta que alguém se sensibilize e fale com a diretoria do conservatório. Quando a mensagem do movimento se espalhou pelo país, o grupo se desfez. Ariano assumiu cargo de secretário no governo e Cussy de Almeida deixou a direção do conservatório. Perdemos o organismo vivo (o conservatório) que nos mantinha ativos. Eu não tive outro organismo, nem forças, para continuar sozinho. Mas se o conservatório tiver interesse, hoje em dia, nós podemos nos reunir. Eu, Jarbas, André Madureira, entre outros. Eu ainda tenho saudade disso. Falta somente esse organismo vivo e pensante, alunos, professores… Nossa conversa me despertou essa ideia. Vou fazer uma visita ao conservatório.

E em relação à catalogação e digitalização das partituras, o que pensa? Seria um novo incentivo à retomada do movimento?
Sim. Eu passei a editorar as minhas composições no fim dos anos 1980, início dos anos 1990. Viajei ao exterior e adquiri computador e softwares para reproduzir as partituras. Isso garante que elas sobreviverão a mim.

>> Orquestra armorial em números
2 flautas
1 percussão
2 violinos, 1 viola (além de violoncelos e contra-baixo em número variável)

>> Livros
A compilação de partituras gravadas pela Orquestra Armorial de Câmara nos anos 1970 está distribuída em três volumes lançados em dezembro passado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), organizados pelo maestro Sérgio Barza. As músicas foram retiradas de seis LP’s e dois CD’s armoriais. As partituras podem ser acessadas (grades e partes cavadas) no link: acervocepe.com.br/partituras.html

>> Preciosidades

Muitas das partituras originais, manuscritas, estão arquivadas no Conservatório Pernambucano de Música. Foto: Ricardo Fernandes/DP
Muitas das partituras originais, manuscritas, estão arquivadas no Conservatório Pernambucano de Música. Foto: Ricardo Fernandes/DP
Mourão

Composta por César Guerra-Peixe e Clóvis Pereira, a música era considerada o hino do Movimento Armorial. Hoje, é tocada pelas principais orquestras européias como bis. A peça é inspirada no som das rabecas do folclore nordestino, com as quais Guerra-Peixe teve contato nos anos 1950, em viagens ao Nordeste do país no intuito de pesquisar a música popular da região.

Terno de pife
Composição de Clóvis Pereira, faz alusão direta aos pífanos, ícones da música nordestina. Os pífanos - flautas transversais com timbre intenso, estridente - são representados na Orquestra Armorial de Câmara pelas flautas.

A pedra do reino
Composta por Jarbas Maciel, a música cumpre um dos preceitos do Movimento Armorial: criar obras de arte a partir de produções anteriores. A composição é inspirada no romance homônimo, de autoria de Ariano Suassuna, que rendeu também série de quadros contemporâneos assinados por Aluízio Braga.

Partituras ganharam força com a editoração e digitalização. Foto: Ricardo Fernandes/DP
Partituras ganharam força com a editoração e digitalização. Foto: Ricardo Fernandes/DP
Asa branca

O clássico sertanejo de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira é revisitado pela estética armorial aos cuidados de Cussy de Almeida. Na versão, violinos, violoncelos, violas substituem o tradicional trio de instrumentos do forró (sanfona, triângulo e zabumba).

Missa armorial

Cantada em latim, a composição de Louranço da Fonseca Barbosa, o Capiba, faz tributo aos cantos gregorianos e sua disseminação entre os índios durante o processo de colonização. A melodia passeia entre o baião, o xote e o xaxado nordestinos.

Chegança
Composição de Elias Benjamin Wolkoff, conhecido como Benny Wolkoff, a música remete a danças populares nordestinas inspiradas nas tradições portuguesas do século 18, em celebração às chegadas dos marinheiros à terra firme.

Gavião

Música de Jarbas Maciel, foi marcante para o movimento pois, em seu LP de lançamento, o compositor discutia a diferença entre “boa música” e “grande música.” Ele definia a primeira como reflexo da alma do povo. A segunda, como “a boa música que, pela sua excelência técnica e conteúdo cultural, ascende a um nível de universalidade e erudição bastante acima da música de raízes simplesmente folclóricas.”

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