Diario de Pernambuco
Busca
Literatura Nem mãe preta, nem negra fulô: patrões e domésticas do Recife são tema de livro Na esteira de produções como Que Horas Ela Volta?, historiador pernambucano lança obra sobre as relações de posse entre patrões e empregadas, com relatos dos séculos 19 e 20

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 28/04/2016 20:11 Atualizado em:

Filmes como Doméstica, de Gabriel Mascaro, e Que Horas Ela Volta? expõe a delicada relação entre patrões e domésticas, tema do livro Nem Mãe Preta, Nem Negra Fulô. Foto: Gabriel Mascaro/Divulgação
Filmes como Doméstica, de Gabriel Mascaro, e Que Horas Ela Volta? expõe a delicada relação entre patrões e domésticas, tema do livro Nem Mãe Preta, Nem Negra Fulô. Foto: Gabriel Mascaro/Divulgação

Na capital pernambucana do século 19, a órfã tutelada Theodora e a escrava doméstica Albina trabalhavam na mesma casa, servindo a rico farmacêutico baiano radicado no Recife, quando a primeira foi “deflorada” pelo tutor. Inflamada, a segunda partiu em sua defesa: unida a outras escravas e a inimigos poderosos do farmacêutico, o denunciou à justiça. Em troca do depoimento, Albina recebeu emancipação. Theodora, aos 15 anos, defendeu o tutor, embaralhando os fatos, e permaneceu reclusa.

Nem mãe preta, nem negra fulô (Paco Editorial, 416 páginas, R$ 50,31), lançado nesta sexta (29) no Recife, é sobre Theodora, mas também sobre Albina. É, ainda, sobre Cida, Roxane, Quitéria, Raimunda e Créo, do filme Domésticas - O filme. É sobre Val, de Que horas ela volta? e sobre Dilma, Maria das Graças e Lucimar, do pernambucano Doméstica. Assinado pelo historiador Maciel Henrique Silva, o livro denuncia a exploração de empregadas domésticas, enquanto reflete sobre os sentimentos de posse, lealdade e subordinação arraigados nas relações entre funcionárias e empregadores.

Ao expor relatos de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador, entre os anos de 1870 e 1910, e seus desdobramentos na atualidade, a publicação espelha personagens das recentes produções literárias e audiovisuais dedicadas à relação entre patrões e domésticas. Acompanha tendência fortalecida no ano passado - quando sancionada a Lei Complementar 150/15, regulamentação dos direitos trabalhistas das domésticas -  e ecoa abordagem realista, porém sensível acerca do tema.

“Afirmar que as trabalhadoras domésticas não podem ser representadas como mães-pretas deixa claro que não se pode rotular o mundo doméstico brasileiro como um mundo de generosidade e docilidade. Nesse mundo, há violência, lutas, resistências, conflitos, trabalhadoras não-escravizadas, escravas insubmissas”, explica Maciel, em relação ao título do livro, inspirado, ainda, na produção do romancista José Lins do Rego e do poeta alagoano Jorge de Lima. “Precisamos ir além das imagens cristalizadas na literatura.”

Para o autor pernambucano, o paternalismo e a escravidão marcaram definitivamente as relações de trabalho no Brasil, sobretudo no Nordeste, pano de fundo de seus estudos. “As experiências narradas mostram que se estava formando, no século 19, a classe das trabalhadoras e trabalhadores domésticos do Brasil. Uma classe majoritariamente negra e parda, sob condição precária, sem formalização”, descreve Maciel, dedicado à pesquisa há seis anos. Jornais, projetos de regulamento do serviço doméstico, fontes policiais, relatórios de presidentes de províncias foram consultados, além de romances, contos e poemas de escritores locais com mesmo mote. Sobre a contribuição das obras mais recentes dedicadas ao tema, o historiador sintetiza: “Devemos ter coragem de abrir as feridas de nosso passado e deixá-las escancaradas aos olhares contemporâneos.”

>> Outras obras

Que horas ela volta? (2015)

A pernambucana Val, interpretada por Regina Casé, protagoniza a trama. Atua como doméstica em São Paulo, onde vive com os patrões e recebe a visita da filha Jéssica. A relação entre mãe e filha, o vínculo entre Val e Fabinho, o filho dos patrões, e os protocolos de convivência na casa são explorados por Anna Muylaert. O filme foi o escolhido pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil no Oscar de melhor filme estrangeiro neste ano, mas não foi indicado ao prêmio.

Doméstica (2012)

Dirigido por Gabriel Mascaro, o premiado documentário tem formato pouco convencional: sete jovens de diferentes classes e regiões filmam, durante uma semana, o dia a dia de suas empregadas domésticas. Mascaro compila os momentos mais marcantes, expondo as relações trabalhistas mascaradas por tratamentos cordiais e convivência quase familiar entre patrões e empregadas.

Domésticas - O filme (2011)

Cinco domésticas têm sua rotina explorada no filme de Nando Olival e Fernando Meirelles, inspirado em peça homônima de Renata Melo: Cida, Roxane, Quitéria, Raimunda e Créo. Uma delas sonha em se casar, outra deseja um marido melhor. Outra quer ser artista de novela, e outra, ainda, acredita ser destinada a servir a patroa e a Deus. Na época do lançamento, a crítica especializada considerou o filme mais cômico do que sociológico.

A criada (2009)

Do chileno Sebastián Silva, o longa trata de Raquel, uma babá que sabota outras empregadas contratadas para lhe ajudar. Eleito o melhor filme estrangeiro de Sundance no ano do seu lançamento, é protagonizado pela premiada Catalina Saavedra, a caricatura de uma doméstica excessivamente apegada aos patrões. Mistura de humor e drama, critica a forma como Raquel anula a própria identidade em função do emprego.

SERVIÇO
Lançamento de Nem mãe preta, nem negra fulô
Quando: Sexta-feira (29), às 19h
Onde: Livraria Cultura do Paço Alfândega (Rua Madre de Deus, S/N, Bairro do Recife)
Quanto: Entrada gratuita
Informações: 2102-4033

>> ENTREVISTA: Maciel Henrique Silva, escritor e historiador

Quais os dramas pós-abolição mais frequentes? O que restou, em linhas gerais, da relação escravocrata entre empregadores e empregadas?

Restaram os mitos de docilidade e submissão do tempo da escravidão; restaram a violência, a exploração, o preconceito racial  no mundo das empregadas domésticas; restou a desregulamentação em matéria de direitos; restou a noção de que o trabalho doméstico deveria ser precário mesmo, porque realizado por mulheres, em geral, negras; restou a ideia de que o trabalhador doméstico precisa ser grato e submisso, porque é "de casa", "quase da família"; restou a dificuldade de organização das trabalhadores e trabalhadores domésticos como entidade de classe.

Em que atitudes e comportamentos podemos perceber o sentimento de posse por parte dos patrões? Poderia exemplificar?
Vejo o sentimento de posse como algo que, hoje, pretende se dissimular, mas que está lá sob algumas facetas: 1. Perpetuar a noção de "quase da família"; 2. Horários imprecisos; 3. Dormir na casa de patrões; 4. Exigir de trabalhadoras e trabalhadores o cumprimento de tarefas não previstas no acordo; 5. A posse física, o assédio sexual da parte dos membros masculinos da casa, considerada "natural".

De modo geral, quais as contribuições desse tipo de publicação para a sociedade? O que esses relatos ensinam?
Esses relatos ensinam muito sobre as experiências das trabalhadoras e trabalhadores domésticos brasileiros em um momento crucial de nossa História: as décadas finais da escravidão legal; ensinam sobre a mentalidade patriarcal e escravista que antigos senhores mantiveram; ensinam que a formação de uma classe é uma história longa; que os grupos tidos por honrados, se não conseguiram manter a escravidão por mais tempo, contudo, tentaram continuar formas de dominação e controle sobre dependentes oriundos da escravidão; mas ensinam também que formas de resistência já se insinuavam da parte de trabalhadoras domésticas que, aos poucos, aprendiam que o paternalismo não era garantia de segurança e proteção.




MAIS NOTÍCIAS DO CANAL