Crônicas
É batata! Hipocrisia da sociedade retratada em A vida como ela é, de Nelson Rodrigues, permanece tema atual
Hoje disponível em DVD, adaptação completa 20 anos da primeira exibição na tevê. Editora Nova Fronteira lança box com três livros
Por: Fellipe Torres - Diario de Pernambuco
Publicado em: 06/03/2016 12:31 Atualizado em: 06/03/2016 12:58
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Nelson Rodrigues. Foto: no220wordpress.com/reprodução da internet |
A verve criativa do escritor e dramaturgo pernambucano Nelson Rodrigues não dava trégua quando o jornalismo entrava em cena. Tampouco ficava de lado a personalidade excêntrica, a compulsão pelos pecados cometidos por toda a gente, a inteligência e elegância no trato com o texto. Ser perspicaz, contudo, não impediu o autor de O vestido de noiva de acreditar em algumas mentiras contadas pelo dono do jornal para o qual trabalhava no começo dos anos 1950. Na época, embora já tivesse alcançado algum reconhecimento na dramaturgia, enfrentava um período de ostracismo, enquanto nomes como Silveira Sampaio se destacavam nos teatros cariocas. Redator de esportes no Última Hora, Nelson negou uma proposta do patrão Samuel Weiner – escrever uma coluna diária baseada em fatos policiais chamada “Atire a primeira pedra”.
Diante da teimosia do empregado, o empresário inventou um par de inverdades – o vencedor do Nobel de Literatura André Gide já havia feito aquilo na imprensa francesa e, no fundo, Crime e castigo, de Dostoiévski, era uma grande reportagem. O jornalista resolveu ceder, e pouco depois entregou o primeiro texto, baseada na morte de um casal em lua-de-mel, vítima de acidente de avião. Weiner considerou uma obra prima, embora tenha notado a alteração de nomes, situações e outros detalhes. Ao ser instado a corrigir, Nelson rebateu: “Não, a realidade não é essa. A vida como ela é, é outra coisa”. A posição firme do escritor marcou, naquele instante, o nascimento de sua série de maior sucesso, rebatizada a partir das próprias palavras. Por mais de uma década, a publicação diária das crônicas de A vida como ela causaria escândalos ao tratar do adultério cotidiano e questionar a (falsa) moral da sociedade.
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Cena de adaptação de A vida como ela é. Crédito: TV Globo/divulgação |
Das páginas do jornal, as histórias ganhariam adaptações as mais diversas, para livro, radionovela, fotonovela, teatro, cinema e televisão. A mais impactante delas foi ao ar pela primeira vez há 20 anos, em março de 1996, na TV Globo. A versão televisiva foi responsável por apresentar a prosa de Nelson (com frequência eclipsada pela força dos textos para teatro) a uma nova geração e para um público massificado. “A ótima adaptação guarda certa fidelidade às crônicas, mas é somente um aceno para aquelas obras. Não se pode comparar o texto com a versão audiovisual, pois a linguagem é outra. Ainda assim, com uma produção muito bem elaborada, foi uma maneira de a Globo pagar uma dívida histórica com Nelson Rodrigues”, opina o dramaturgo e encenador João Denys, cujo currículo traz montagens de peças rodrigueanas.
Já o escritor e cineasta Adriano Portela, mestrando em teoria literária, vê na adaptação de Euclydes Marinho um cuidado ao prezar pelo texto literário. Ao conduzir pesquisa sobre a transposição das histórias para a tevê, o acadêmico identificou muita semelhança entre o roteiro da série e as crônicas. Na opinião de Portela, Nelson Rodrigues possuía um “poderio na escrita” capaz de fazer o leitor imaginar as cenas enquanto passeia pelas narrativas. “Provavelmente o diretor e o roteirista tiveram essa mesma impressão e optaram por manter os episódios com a cara de Nelson. Não fizeram como outros, que mudam muito e tornam o produto final muito pouco baseado no original”.
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Cena de adaptação de A vida como ela é. Crédito: TV Globo/divulgação |
Fidelidades ou infidelidades à parte, a série premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte, na opinião de João Denys, não só deu ênfase aos escritos de Nelson Rodrigues, colocando todo o Brasil em contato com a obra, mas mexeu com os arquétipos do telespectador. “São histórias cruas e cruéis, que provocam o aspecto mítico, pictórico, e estão ligadas às questões fundantes do ser humano. Ele cutuca as feridas, expõe as mentiras da sociedade, aquelas ligadas a algo muito profundo, do interdito, de nossas relações com os tabus. Não à toa, muitos reagem mal aos episódios, pois é como se você tivesse vendo seu pai e sua mãe em cena, vendo toda a porcalhada que é debaixo do pano, nas camadas mais profundas”.
A capacidade de Nelson Rodrigues de desnudar o cidadão comum e escancarar seus pecados inconfessáveis tem origem, para o professor da UFPE Luís Augusto Reis, no interesse profundo pelas pessoas. “Sem Negacear, sem fazer concessões, a obra inteira dele, seja no teatro ou na prosa, faz um mergulho profundo no ser humano. Ele vê beleza no pacote completo, sem idealização. Nelson tem uma arte complexa, é um homem que domina o ensaio, tem um olhar amoroso, embora cruel”, analisa Reis, doutor em teoria da literatura, com várias pesquisas sobre a produção rodrigueana. Por todas essas características, completa o professor, os escritor de Nelson se perpetuam, embora a sociedade tenha se flexibilizado. “Se casar virgem era algo muito importante nos anos 1950, 1960, e não é mais hoje, isso é secundário, pois a relevância está na maneira como ele apreende a coletividade e, assim, atinge a individualidade. Suas obras são de interesse atemporal”, finaliza.
>>>> DEPOIMENTO >>> João Denys, dramaturgo e encenador
Em A vida como ela é, Nelson Rodrigues dá ênfase a algo muito importante, que hoje continua atual na sociedade brasileira – a hipocrisia humana, o discurso falacioso, a distância entre a fala e a ação, o que você propõe enquanto discurso e destrói com seus atos. Talvez na época em que as crônicas foram escritas elas tivessem força maior, porque hoje em dia a hipocrisia está exposta em carne e osso. Antigamente, para encontrar o chafurdo era preciso buscar notícias de jornais, crônicas. Hoje, qualquer pessoa tem acesso à informação, o escândalo não é tão escândalo como era na década de 1950 e 1960.
Entretanto, há, nos textos, uma força para além do escândalo. Não importa se o pai transa com a filha, se alguém se automutila... O principal em Nelson é como esses assuntos são postos, a urdidura, as ações... Algumas rubricas de Nelson são verdadeiros poemas. Existe algo mais interessante, mais poético, mais plástico do que um louco, nu, que roda uma casa? Do que alguém que se debruça sobre o mar? Essas imagens estéticas, plásticas, é que são o sumo do trabalho dele. Esses ensaios pegam emprestado muito da experiência jornalística dele e vão reverberar em toda a sua obra teatral, que está toda impregnada de A vida como ela é.
SERVIÇO
Para ler
Caixa A vida como ela é (3 livros)
Editora: Nova Fronteira%u2028Páginas: 1280 páginasuiikk
Preço: R$ 99
Para assistir
A vida como ela é (2 DVDs) – adaptação televisiva
Duração: 7h30
Preço: R$ 59,90
TRECHOS - A vida como ela é
Eram seis horas quando Romualdo a largou, num ônibus, apinhadíssimo. Ela fez a viagem em pé. A promiscuidade, ali, era uma coisa abjeta. Espremida, imprensada, triturada em meio dos passageiros, teve uma sensação de ultraje, de profanação, de aviltamento. Um cavalheiro que ia saltar no poste seguinte, foi varando a massa humana; ao passar por ela quase a derruba. A sensação do ultraje recrudesceu em Lucília. Resmungou: — Animal!
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Romualdo estava, no poste, esperando o ônibus. O garoto desconhecido aproximou-se e disse que era filho de d. Lucília e falou mais: — Volta para minha mãe. É meu “último” pedido. Romualdo não entendeu. Ou só entendeu quando o menino se atirou debaixo de um ônibus que passava a toda velocidade. A morte foi instantânea. Alta madrugada apareceu mais alguém para fazer quarto ao menino: era o assombrado, o enlouquecido Romualdo. Voltava, sim. E continuou voltando, escravo do “último pedido” de uma criança. Quando, finalmente, ela se cansou dele e quis deixá-lo, Romualdo lembrou, apenas, o desejo do menino. Então Lucília compreendeu que estavam unidos, e para sempre, dentro de um inferno.
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Aos 16 anos, teve o seu primeiro namorado. Era um primo, ótimo rapaz, educadíssimo, simpático e mesmo bonito, aristocrata nos modos, ideias e sentimentos. Ela se chamava Margô e ele, Paulo. Pareciam feitos um para o outro. Para as duas famílias foi, como se disse, “um achado”. Não houve duas opiniões. Todos disseram: “Ótimo, ótimo.” E o pai, que tinha a religião do dinheiro e a ideia fixa da pompa, exigia, esfregando as mãos: — Quero um casamento de arromba! — e sublinhava: — Um casamento que deixe todo mundo besta!
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No dia seguinte, encontraram-se a velha e o detetive na porta de uma companhia de ônibus. Súbito, o profissional indica: “Olha o homem!” Ela espiou. Lá vinha ele, no meio de outros motoristas, um negro gigantesco. Segundo apurara o detetive, ele saíra, no último carnaval, no rancho, de escravo etíope, com o dorso nu e retinto. A velha, fora de si, gaguejava: “Quer dizer que é esse o namorado de minha nora?” O detetive pigarreou: — Isto é, mais do que namorado. Eu apurei tudo, direitinho. Tenho endereços, o diabo. E posso provar
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No quarto, vestindo-se, Conceição criava uma hipótese deslumbrante: a de morrer, no altar, com grinalda e véu. Essa morte muito linda a tentou de uma maneira quase irresistível. Quando uma das tias, com infinito cuidado, colocou a grinalda, Conceição não se conteve, fez a pergunta quase alegre e frívola: — E se eu morresse hoje?
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Ao despertar, lá estava ele. Mas, uma manhã, acordou e não ouviu nada. Compreendeu que a esposa estava morta. Cinco dias depois, os vizinhos começaram a sentir um cheiro horrível. Investiga daqui, dali, acabaram desconfiando. Entraram no quarto e encontraram a esposa morta e o marido, sentado no chão, de barba crescida, quase à Monte Cristo. Os mais sensíveis levaram o lenço ao nariz. Alberto, quase sem voz, explicou que a mulher pedira para não ser enterrada.
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— Esse miserável não soube respeitar nem este teto! — e apontava, realmente, para o teto. — Sabe o que ele fez? Faz uma ideia? — baixou a voz: — Aqui, dentro de casa, quase nas barbas da esposa, deu em cima de uma cunhada, com o maior caradurismo do mundo. Vê se te agrada! Assombrado, perguntou: “Que cunhada?” Pensava na própria mulher. E só descansou quando Flávia disse o nome, num sopro de horror: — Sandra, veja você! Sandra! Escolheu, a dedo, a caçula, uma menina de 17 anos, que nós consideramos como filha! É um cachorro muito grande!...
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— Claro! Evidente! Onde já se viu? Porque, vamos e venhamos, o que é que é uma cunhada? Não é a mesma coisa que uma irmã. E ninguém é de ferro, minha filha, ninguém é de ferro! Tua irmã menor, por exemplo. Quando ela comprou aquele maiô amarelo, de lastex ou coisa que o valha, deu uma exibição, aqui, dentro, para os cunhados. Isso está certo?...
(...)
Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: “Eu desço contigo.” O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam a distância; e houve um, que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais? Começou a relação de nomes: Fulano, Cicrano, Beltrano... Ele berrou: “Basta! Chega!” Em voz alta, fez o exagero melancólico: — A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!
(...)
A partir de então, a vida de Norival foi um cotidiano esbanjamento. De três em três dias, apanhava um cheque com a esposa e ia gastar com as piores mulheres da cidade. Chegava em casa bêbado de cair. Não havia esposa mais humilhada, mais ofendida. E corria, até, que ele, nas suas bebedeiras monumentais, a castigava fisicamente. Mas havia um momento em que ela se sentia a mais amada das mulheres. Era quando, sem dinheiro, Norival queria um cheque. E, então, a tratava com uma dessas loucuras de lua de mel. Uma vez obtido o cheque, voltava a ser brutal
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