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Arte pública Arte que ocupa as ruas: esculturas e murais do Recife ganham mapeamento inédito Catalogação, coordenada por pesquisadores pernambucanos, é fonte de pesquisa para examinar como as obras ocupam as ruas e se comunicam com a sociedade

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 21/02/2016 11:40 Atualizado em: 21/02/2016 12:32

A escultura de Clarice Lispector integra o Circuito da Poesia, distribuído pelo Recife. Foto: Nando Chiappetta/Divulgação
A escultura de Clarice Lispector integra o Circuito da Poesia, distribuído pelo Recife. Foto: Nando Chiappetta/Divulgação

Em 1969, atuando como cronista do Jornal do Brasil, Clarice Lispector escreveu sobre o que chamava de “milagre das folhas”: a frequência com que folhas se desprendiam das árvores e lhe caíam sobre o rosto, o cabelo e, mais milagrosamente, sobre os cílios. Não sabia, então, mas o milagre seria eternizado quase 40 anos mais tarde, quando uma estátua em sua homenagem ocuparia lugar definitivo na Praça Maciel Pinheiro, na Boa Vista, no Recife. Quantas folhas caem sobre o monumento todos os dias, é impossível saber. Mas há outro “milagre” sendo articulado em torno da escultura (criada por Demetrio Albuquerque): o de atrair pessoas. Nesta semana, a versão em pedra da escritora ucraniana passa a constar em mapeamento inédito das mais de 200 esculturas e 70 murais distribuídos pela cidade. Concebido pela arquiteta e pesquisadora pernambucana Lúcia Padilha, o projeto Recife Arte Pública chega às mãos do público em formato de site e livreto gratuito, lançados na próxima quinta.

Arte-educadora e arquiteta há 25 anos, Lúcia passou a dedicar olhar mais atento aos monumentos da cidade ao assinar, com Augusto Ferrer, Eddy Polo e Jorge Alberto Barbosa, a escultura Carne da minha perna (escultura do caranguejo), instalada na Rua da Aurora, em Santo Amaro, em 2004. “Era necessário conservar a nossa obra, agora pública, composta de ferro e localizada junto ao rio, além de protegê-la do vandalismo, identificá-la devidamente, explicar motivações. Passei a me preocupar com o caranguejo e a observar outras esculturas com mais cuidado”, conta. “Anos mais tarde, me ocorreu a pergunta: por que não mapear todas as obras de arte públicas do Recife? Parecia impossível, mas decidi tentar.” O projeto recebeu apoio do Funcultura em 2013 - quando ela já pré-catalogara cerca de 30 murais e 100 esculturas - e foi desdobrado em duas vertentes: livreto dedicado às esculturas e site (recifeartepublica.com.br), aos murais.

Foram mapeados mais de 70 murais na Região Metropolitana do Recife. Foto: Breno Laprovitera/Divulgação
Foram mapeados mais de 70 murais na Região Metropolitana do Recife. Foto: Breno Laprovitera/Divulgação
Dividida em quatro zonas principais - Leste (Centro), Norte, Oeste e Sul -, a capital recebeu visitas dos pesquisadores em 32 bairros da Região Metropolitana. Lúcia Padilha, Janaísa Cardoso, Niedja Santos e Hassan Santos, acompanhados pelos fotógrafos Nando Chiappetta (esculturas), do Diario, e Breno Laprovitera (murais), encontraram esculturas francesas do século 18, peças em bronze e obras raras assinadas por pernambucanos como Abelardo da Hora e Francisco Brennand. “Éramos surpreendidos a todo tempo por novas esculturas. Algumas, encontradas por acaso, no percurso. Outras, indicadas por amigos, garimpadas na pesquisa”, diz Hassan Santos, arte-educador formado em design.

Foi nas prateleiras da casa da mãe que Hassan encontrou a principal referência bibliográfica do projeto: exemplar do livro Monumentos do Recife, lançado por Rubem Franca em 1977. Segundo ele, até mesmo a Empresa de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb), consultada pelos pesquisadores pela atuação na conservação dos monumentos, possui apenas fotocópias da publicação. “É uma fonte raríssima. Isso releva a escassez de pesquisas na área e ressalta a importância e o ineditismo do mapeamento”, observa. Com isso, a distribuição gratuita de 4 mil exemplares - 2 mil deles concedidos pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) - do livreto Recife Arte Pública: Esculturas pareceu insuficiente aos olhos do grupo. Decidiram disponibilizá-lo na web, não somente nos pontos turísticos e culturais da cidade. Pretendem, ainda, captar recursos para transformar o projeto em aplicativo para smartphones.

Painéis talhados em madeira revelam preciosismo das obras. Foto: Breno Laprovitera/Divulgação
Painéis talhados em madeira revelam preciosismo das obras. Foto: Breno Laprovitera/Divulgação
Além de apontar o Centro do Recife (citado na pesquisa como Zona Leste) como coração do roteiro de arte pública - a região tem pelo menos 51 pontos com monumentos, contra 21 da Zona Norte, 19 da Zona Oeste e 11 da Zona Sul -, o projeto revela, dizem os autores, a necessidade de maior preservação patrimonial, já que muitas esculturas estavam depredadas ou mal conservadas na catalogação. “Escolas públicas e privadas deveriam orientar os mais jovens a respeitar as obras. Muitos desconhecem o significado delas, a história por trás de cada monumento e, por isso, praticam vandalismo ou não se esforçam para combatê-lo”, opina Lúcia. Para ela, a principal contribuição do mapeamento realizado nos últimos dois anos é ressignificar a arte pública perante os recifenses, transformando o acervo em ferramenta de relacionamento - “sensorial, universal”, ela reforça - entre as pessoas e a cidade. A exposição fotográfica do projeto - aberta ao público a partir do lançamento do livreto e do site homônimos - fica em cartaz até o fim de março, no Museu Murillo La Greca, no Parnamirim.

SERVIÇO
Recife Arte Pública

Lançamento com distribuição gratuita do livreto do mapeamento das esculturas públicas do Recife e do site com os murais e painéis públicos do Recife, com exposição fotográfica
Quando: 25 de Fevereiro, às 17h
Onde: Museu Murillo La Greca (Rua Leonardo Bezerra Cavalcante, 366 - Parnamirim)
Quanto: entrada gratuita
Informações: 3355-3129

Monumento "Tortura nunca mais" está localizado na Rua da Aurora, no Centro do Recife. Foto: Nando Chiappetta/DP/DA Press
Monumento "Tortura nunca mais" está localizado na Rua da Aurora, no Centro do Recife. Foto: Nando Chiappetta/DP/DA Press

INICIATIVAS

Vitrais
Lúcia Padilha, Hassan Santos, Janaisa Cardoso e Niedja Santos estão engajados em novo mapeamento. Contemplados pelo Funcultura no ano passado, aguardam agora a liberação da verba para catalogar os vitrais públicos do Recife. Um pré-mapeamento revelou preciosidades na Biblioteca Central da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Cinema São Luiz, no Palácio do Campo das Princesas, na Igreja do Espinheiro, no Palácio da Justiça e na Fundação Joaquim Nabuco do Derby. “A cidade possui rico acervo de vitrais, e o pré-mapeamento comprova isso, mas há pouca procura do público por essas obras”, diz Lúcia.

Artistas
Francisco Brennand, Lula Cardoso Ayres, Cícero Dias, Abelardo da Hora, Petrônio Cunha, Delfim Amorim, José Paulo e Maurício Silva estão entre os principais expoentes por trás dos murais públicos do Recife. Em relação às esculturas, se destacam os pernambucanos Abelardo da Hora e Francisco Brennand. Corbiniano Lins e José Cláudio também figuram entre os mais atuantes no segmento.

Períodos
A maioria das esculturas foi produzida entre as décadas de 1940 e 1960, durante o modernismo. E a maior parte dos murais, entre os anos de 1940 e 1990.

PROJETOS SEMELHANTES
Outros estados brasileiros já desenvolvem projetos semelhantes. No Rio de Janeiro, por exemplo, o projeto Rio arte cidade cataloga, em site, 61 obras (entre esculturas, murais e monumentos), com coordenação da museóloga Mariana Varzea, autora da obra Arte, ambiente, cidade:  Rio de Janeiro, lançada em 2010. Em São Paulo, os jornalistas Andre Deak e Felipe Lavignatti criaram projeto de mapeamento colaborativo da arte pública, intitulado Arte Fora do Museu, disponível em site vinculado a aplicativos como Google Maps e Google Street View (arteforadomuseu.com.br).

POR DENTRO DAS OBRAS


Contemporâneas
Em praças públicas e próximas ao Rio Capibaribe, esculturas contemporâneas são destacadas por Lúcia como registros da memória recente do Recife. Obras como o Monumento tortura nunca mais, em alusão aos crimes cometidos na ditadura militar, e a escultura Carne da minha perna, em homenagem a Chico Science e ao geógrafo Josué de Castro, são exemplos. O Circuito da poesia, composto por 12 estátuas de escritores que nasceram ou viveram no Recife, se destaca. Clarice Lispector, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Capiba e Carlos Pena Filho estão entre os homenageados. O Parque de Esculturas Francisco Brennand, com 90 obras, e a Rosa dos ventos, de Cícero Dias, no piso do Marco Zero, estão no projeto.

Escondidas
A equipe se deparou com obras pouco conhecidas, algumas delas relegadas ao abandono. No campus da UFPE, na Avenida Jornalista Aníbal Fernandes, o Monumento a Fernandes Vieira, de Bibiano Silva, de 1958, composto de bronze, está cercado por mato, em área pouco frequentada da universidade. Na Academia Pernambucana de Letras, nas Graças, uma escultura abstrata de Amílcar de Castro - procurada por pesquisadores que esperavam encontrá-la em Boa Viagem, provável local de origem, antes de ser doada à APL - repousa no anonimato. Na Universidade Federal Rural de Pernambuco, painel de Lula Cardoso Ayres ainda é pouco conhecido, em comparação ao painel exposto no hall do Cinema São Luiz. No Edifício JK, na Av. Dantas Barreto, painel do mesmo artista, de 1959, está em área destinada a depósito de carros e objetos fora de uso, não frequentada pelo público e sem as condições de conservação.

Famosas
Foram mapeadas esculturas sacras, como a de Nossa Senhora da Conceição (construída em 1904 pela Fundição Val d’Osne, no Morro da Conceição, em Casa Amarela), o primeiro mural abstrato da América do Sul (de Cícero Dias, na Secretaria da Fazenda do Estado de Pernambuco, na Estrada de Belém, na Encruzilhada) e as esculturas francesas do século 18 instaladas no Museu do Estado, na Praça da República e na Ponte Maurício de Nassau, além da tradicional Rosa dos ventos (de Cícero Dias no Marco Zero).

O monumento a Nossa Senhora da Conceição é um dos mais conhecidos na lista dos pesquisadores. Foto: Nando Chiappetta/DP/DA Press
O monumento a Nossa Senhora da Conceição é um dos mais conhecidos na lista dos pesquisadores. Foto: Nando Chiappetta/DP/DA Press

NÚMEROS
Pontos com monumentos no Recife
51 ficam na Zona Leste (Centro)
21 na Zona Norte
19 na Zona Oeste
11 na Zona Sul
R$ 2 milhões - são gastos por ano pela Prefeitura do Recife na recuperação de monumentos, pontes e edificações públicas depredadas por pichação e vandalismo, segundo a Emlurb.
R$ 114 mil - foram investidos no ano passado na restauração das 12 estátuas do Circuito da poesia, entre as quais está a de Clarice Lispector.

DENÚNCIA
Denúncias de atos de vandalismo podem ser feitas através dos telefones 3355-1450
ou 3355-8452)

ENTREVISTA: Lúcia Padilha

Lúcia Padilha é arquiteta e pesquisadora. Foto: Facebook/Reprodução
Lúcia Padilha é arquiteta e pesquisadora. Foto: Facebook/Reprodução
O que o mapeamento revelou sobre a conservação da arte pública no Recife?

A necessidade urgente de uma educação básica preocupada com o patrimônio público. Muitas vezes, pré-mapeamos uma escultura e a encontramos depredada quando voltamos para fotografá-la. Quando isso acontecia, usávamos as fotos amadoras do pré-mapeamento. Ou, quando a escultura estava deteriorada durante todo o processo de pesquisa, registrávamos aquela obra no estado de má conservação. Houve um caso em que encontramos a escultura depredada e, ao retornar, conseguimos fotografá-la restaurada pela Emlurb. Era o Monumento ao gari, produzido por Abelardo da Hora nos anos 1970.

E quanto às obras menos conhecidas. Como seria possível torná-las mais populares, assim como são as de Brennand e Abelardo da Hora?

Uma boa solução seria aplicar novos recortes temáticos na utilização da arte como ferramenta educativa. Ao invés de ensinarmos as crianças e os jovens a reconhecerem peças do acervo de artistas mais famosos, poderíamos, por exemplo, mostrar a eles obras dedicadas a homenagear escritores, a referenciar momentos históricos. Poderíamos trabalhar a arte pública por eixos temáticos diversos, além dos autores, como época, motivação, localização.

O que tinha em mente ao dar início ao mapeamento, qual era a grande missão?

Tornar visível esse patrimônio artístico, cultural. É um acervo aberto ao público, permanentemente à disposição, mas pouco ou quase nunca catalogado. A ideia era trazer as obras à luz. Hoje, penso que uma grande conquista do projeto é levar a arte pública às salas de aula, poder transformá-la em instrumento da arte-educação. Em projetos anteriores, nos quais mapeamos o acervo do Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco (MAC), viabilizamos uma exposição itinerante pelas Escolas de Referência em Ensino Médio do estado. Foi emocionante ver os meninos interagindo com a arte com tamanha naturalidade. Isso deveria fazer parte do cotidiano deles, mas ainda não faz. Projetos como o nosso ajudam a melhorar esse quadro.

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