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Geografia Cinema pernambucano capta transformações e permanências da paisagem rural Contrastes entre a industrialização, a globalização e as tradições da agropecuária são abordados de diferentes formas em filmes recentes

Por: Júlio Cavani - Diario de Pernambuco

Publicado em: 29/11/2015 08:07 Atualizado em: 29/11/2015 11:40

Curta de Lucas Caminha, que retrata o Vale do Catimbau, foi apresentado no Festival Janela. Foto: Victor Jucá/ Divulgação
Curta de Lucas Caminha, que retrata o Vale do Catimbau, foi apresentado no Festival Janela. Foto: Victor Jucá/ Divulgação
 
Questões urbanas têm ocupado uma posição central no cinema pernambucano contemporâneo nos últimos anos, mas isso não quer dizer que a paisagem rural foi esquecida. A repercussão de filmes como Boi Neon e A história da eternidade demonstra que o campo ainda é tão rico quanto a cidade em relação às representações de questões urgentes e universais. Mesmo em abordagens opostas, como no caso desses dois longas-metragens, a vida no interior carrega, em menor ou maior grau, um reflexo de transformações sociais que afetam identidades reconstruídas na convivência entre a ancestralidade arcaica e a sociedade de consumo pós-industrial.

As transformações socioeconômicas da globalização e da industrialização são transmitidas por filmes como Boi Neon, Sertão de acrílico azul piscina e Viajo porque preciso, volto porque te amo (o primeiro é dirigido por Gabriel Mascaro e os dois últimos são de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz). Por outro lado, a persistência do universo rural tradicional também mantém-se representada, como percebe-se na obra do cineasta Camilo Cavalcante, especificamente no curta Ave Maria ou mãe dos sertanejos e no longa A história da eternidade.

Atualmente, a agropecuária corresponde a apenas 2,7% do Produto Interno Bruto (PIB) de Pernambuco, enquanto a indústria envolve 25,1% e os serviços alcançam 72,2% (números oficiais do segundo trimestre de 2015). Mesmo assim, a identidade cultural rural sobrevive, até porque as cidades do interior concentram a maior parte da população. Dos 9 milhões de habitantes do estado, apenas 4 milhões estão na Região Metropolitana do Recife.

Em uma cena de Boi Neon, o vaqueiro interpretado por Juliano Cazarré tenta imprimir uma etiqueta com sua própria marca de roupas, mas vai a uma gráfica rápida e descobre que antes precisa encontrar uma lan house para "vetorizar" a imagem. Em A história da eternidade, filmado nos arredores de Petrolina, um telefone público permanece útil para os moradores de um vila onde celulares aparentemente não funcionam. Os dois filmes não se anulam e nem se confrontam, apenas se complementam ao mostrarem recortes diferentes sobre realidades que existem simultaneamente.

"É um sertão caravaggiano. Não gosto de trabalhar com estereótipos, prefiro os arquétipos. O desenvolvimento do Nordeste é uma farsa. Comer sushi no Sertão não é sinônimo de desenvolvimento", afirmou Camilo Cavalcante no Festival de Paulínia, onde lançou A história da eternidade. Em entrevista o Viver, o cineasta reafirmou a postura: "O Sertão é um lugar arcaico e distante, como a Patagônia, o Deserto do Atacama ou o interior do Irã. É um lugar seco, onde não chove quase nunca e a água tem uma ação transformadora. Quando chove, é como um vulcão que explode."

Marcelo Gomes, por sua vez, reconhece que quis mostrar um outro lado em Sertão de acrílico: "Desconstruímos um monte de clichês que nós próprios tínhamos. Fomos desconstruindo a romantização do Sertão aos poucos. Compreendemos que o Sertão não é só aquele sertão arcaico, quase mitológico. O Sertão também é uma feira do Paraguai que está ao lado da feira de Caruaru. O sertão também é uma garota que usa botas roxas com aquele calor pra ficar parecida com a Xuxa. O sertão é mais que uma casinha de barro com moradores levando uma vida simples. Por trás daquela simplicidade existe uma complexidade muito grande."

Gomes ainda retrata esse sincretismo cultural no curta que produziu para Cais do Sertão, projetado em uma sala na entrada do museu. Aïnouz também explora bastante essas contradições na composição cultural do filme O Céu de Suely, filmado no Ceará.

O documentário Garotas da moda, de Tuca Siqueira, filmado em Goiana (Zona da Mata), complementa bastante o raciocínio de Gomes e Karim ao retratar a rotina de um grupo de dançarinas que se apresentam ao som de música pop norte-americana, mas também participam de grupos de caboclinho.

ÁGUA, PRÉ-HISTÓRIA E MACONHA
O poder simbólico que a água exerce sobre questões identitárias deve ser discutido em Aqua movie, próximo filme de Lírio Ferreira, que será filmado em 2016. O personagem principal, a ser interpretado por Guilherme Weber, será o mesmo de Árido movie (2006), mas a trama envolverá novos temas. "Nesses 12 anos aconteceu muita coisa no Sertão com as obras da transposição do Rio São Francisco e da Transnordestina. Houve uma migração muito grande, uma migração inclusive contrária, de técnicos que vieram do sul para cá por causa das oportunidades de emprego. As cidades cresceram e passaram a consumir novas coisas que até então não consumiam", aponta o cineasta.

O cineasta Daniel Aragão chegou a filmar as obras da transposição do Rio São Francisco em Boa sorte, meu amor. O personagem principal do filme, assim como em Árido movie, é um homem da cidade que reencontra as raízes da família quando viaja ao interior, mas o núcleo rural só surge na tela na terceira parte da história.

Na visão de Lírio, "há novos sotaques e novas alteridades. É o discurso da água. Vou revisitar esse ambiente da falta d'água, que ainda persiste, mas com as novas possibilidades surgidas mais de uma década depois". Em Árido movie, o diretor incluiu uma cena ambientada em uma fictícia plantação de maconha, uma verdadeira riqueza agrícola clandestina pernambucana cujo potencial econômico não é aproveitado legalmente.

Lírio buscou representar o encontro entre passado, presente e futuro no filme 4Kordel, exibido no Cais do Sertão, em que inscrições rupestres convivem com a cultura da cantoria e com as novas tecnologias digitais. Árido movie explorou bastante a paisagem do Vale do Catimbau, na divisa entre o Agreste e o Sertão, recentemente revisitada pelo curta Catimbau, de Lucas Caminha, que opta por uma visão ainda mais ancestralizada ao retratar o local com uma ênfase na natureza, no sobrenatural e nas culturas pré-históricas, projetadas na tela do cinema ao som de rock psicodélico.

CONTRADIÇÕES TECNOLÓGICAS
Um exemplo de nova abordagem sobre a chegada do "desenvolvimento" à paisagem rural é o longa-metragem Brasil S/A, de Marcelo Pedroso, que cria alegorias para ironizar as mudanças, com uma linguagem que satiriza o tom épico das apoteóticas propagandas de grande estatais. No filme, cortadores de cana passam a pilotar tratores e são retratados como astronautas e heróis, enquanto retroescavadeiras participam de um balé em meio a um canavial.

A evolução tecnológica das lavouras também pode ser percebida nas cenas iniciais de Deserto feliz, de Paulo Caldas, que retrata as novas plantações de frutas na região de Petrolina, bastante mecanizadas e estruturadas por investimentos na irrigação. O filme mostra, entretanto, que esses avanços não necessariamente são acompanhados por melhoras em questões sociais, pois a personagem principal é uma adolescente castigada por uma rotina de abusos sexuais.

O RURAL NO URBANO
No caso de Boi Neon, o cenário é principalmente o agreste (o crescimento da indústria têxtil na região está bastante presente no filme), mas o choque entre o rural e o urbano também afeta diretamente a própria Região Metropolitana do Recife, como flagram o curta O levante, de Jonathas de Andrade, e o longa Ramo, do coletivo Jacaré Vídeo. Ambos retratam a permanência do uso de carroças e cavalos nas ruas do Recife como um símbolo de resistência política e cultural.

"Descobrimos que existe uma grande quantidade de pessoas que criam cavalo e outros animais na Região Metropolitana do Recife e que muitas dessas pessoas se conhecem, formando um grupo de criadores, com uma cultura própria e bastante viva", revela Pedro Andrade, um dos diretores de Ramo. "Os que estão próximos dessa tradição mais antiga valorizam o aboio, vão pra cavalgadas, jogos e festas que estão relacionados ao cavalo. O conhecimento que essas pessoas têm com os animais é surpreendente. Acredito que isso não deve se perder, porque significa distanciar o ser humano ainda mais dessa origem rural, desse saber, que não é científico e não têm que ser, mas construído através da experiência, que vem de geração em geração. O documentário questiona esse modelo de suposto desenvolvimento."

Documentário Ramo mostra persistência da cultura rural na cidade. Foto: Jacaré Vídeo
Documentário Ramo mostra persistência da cultura rural na cidade. Foto: Jacaré Vídeo

De uma maneira menos explícita, O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, trabalha a persistente influência do ambiente rural sobre a sociedade urbana. O filme tem algumas poucas cenas filmadas em antigos engenhos desativados no agreste, mas é na própria Região Metropolitana que se manifesta a herança de valores morais construídos pelo coronelismo.

ZONA DA MATA
A cana-de-açúcar, um dos símbolos de Pernambuco, está presente principalmente em filmes que têm a Zona da Mata como cenário. O exemplo mais famoso é Baixio das bestas, de Cláudio Assis, que foi filmado em Nazaré da Mata e mostra como a economia canavieira contemporânea pode esconder problemas sociais graves, sobretudo em relação à condição da mulher.

Em uma abordagem totalmente diferente, Nazaré da Mata voltará a aparecer no cinema como cenário do primeiro longa-metragem do cineasta Tiago Melo, ainda sem título definido. O filme já foi rodado, mas ainda será montado e finalizado. O lançamento está previsto para 2016. Os personagens vivem três histórias ambientadas entre a musicalidade do maracatu rural e o conservadorismo das igrejas evangélicas.

Uma visão ainda mais crítica e direta da monocultura da cana-de-açúcar manifesta-se no curta Acercadacana, de Felipe Peres Calheiros, que denuncia a situação vivida por uma agricultora cuja propriedade foi cercada pelas plantações de uma usina. O documentário mostra como os funcionários do latifúndio a ameaçam e sabotam o pequeno sítio onde ela planta frutas e verduras para sobreviver.

Também ainda em fase de pós-produção, o longa-metragem Açúcar, de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, deve retratar a decadência da elite canavieira com uma história ambientada em um antigo engenho, onde os proprietários são obrigados a se acostumar com novas formas de conviver com os empregados. As filmagens ocorreram na zona rural de Vitória de Santo Antão.

Questões trabalhistas ganham ênfase no documentário Canavieiros, de Andréa Ferraz, que já foi exibido na TV e ganhará uma versão extendida para o cinema. A cineasta acompanhou a rotina do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipojuca, na Zona da Mata Sul de Pernambuco.

Outros filmes dirigem o foco para a produção artística da região (com raízes religiosas e influências musicais contemporâneas), como os curtas Kaosnavial, de Marcelo Pedroso e Afonso Oliveira, O homem da mata, de Antônio Carrilho, Fuloresta do samba, de Marcelo Pinheiro, Salu e o cavalo-marinho, desenho animado de Cecília da Fonte, Garotas da moda, de Tuca Siqueira, e o inédito longa-metragem Maracatu sagrado, de Tiago Melo.

ANTECESSORES
A questão do impacto do desenvolvimento sobre paisagens rurais não é tão recente e começou a ser problematizada no cinema nacional já na década de 1970, em filmes como Iracema: Uma transa amazônica, de Orlando Senna e Jorge Bodanzky, e Bye bye Brasil, de Cacá Diegues, inspirado na música homônima de Chico Buarque, que tem versos como "Já tem fliperama em Macau". Os filmes mais novos, entretanto, atualizam o tema no contexto de uma globalização cada vez mais infiltrada e multiplicada graças às novas tecnologias digitais.

"O RURAL NÃO É MAIS A IMAGEM DO DESCONHECIDO"
* Por Érico Andrade

A arte reinventa a vida. Com as mudanças que se passaram no Brasil nestes últimos anos a forma de reinventá-la, no que concerne ao universo rural, precisou ser refeita. Não para que a ficção se adequasse forçosamente à realidade, mas para que o objeto ficcional não perdesse o foco do seu tempo. O cinema contemporâneo brasileiro, adotou, nesses termos, uma compreensão cinematográfica do Rural que se desvia do idílico, muito próximo de uma epopeia, para criar personagens e ambientes que fazem dos habitantes da zona rural nem fortes, nem fracos, mas simplesmente humanos. Assim, o rural passou a ser o cenário de filmes como Cinema Aspirinas e urubus que mostram o sertanejo, como qualquer outra pessoa, precisa apenas de oportunidade para prosperar. Ou filmes como A história da eternidade que faz o sertão estar grávido de todos os dramas humanos. Temas estritamente clássicos, como Lampião, são colocados na ótica da modernidade. Lampião vai ao cinema em Baile perfumando. Mais do que tudo isso: o rural não se restringe mais ao sertão. Ele é agreste como em Boi Neon e vai para a cidade para vencer como em Estômago. O rural não é mais a imagem do desconhecido, nem tempo esquecido e morto, mas da transformação, da mudança e da travessia.

* Érico Andrade é filósofo e professor da Universidade Federal de Pernambuco, com doutorado pela Université Sorbonne (Paris IV)

Veja o curta Ave Maria ou Mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante, na íntegra (12 minutos):
 


Veja o filme Sertão de acrílico azul piscina, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, na íntegra (26 minutos):
 


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