Mito Chico Buarque mostra ser "gente como a gente" em documentário em cartaz nos cinemas Assim o cantor e escritor é retratado em "Chico - Artista brasileiro", de Miguel Faria Jr

Por: Fellipe Torres - Diario de Pernambuco

Publicado em: 25/11/2015 12:19 Atualizado em: 25/11/2015 15:23

Crédito: Sony Pictures/divulgação
Crédito: Sony Pictures/divulgação

Rio de Janeiro -
Considerado mito por várias gerações durante mais de cinco décadas de carreira, Francisco Buarque de Hollanda, 71, é um cara comum. Solitário por opção, piadista, maduro, humano. Assim o cantor e escritor é retratado em Chico - Artista brasileiro, de Miguel Faria Jr, em cartaz no Recife a partir desta quinta-feira. Todo conduzido a partir de uma longa entrevista (foram mais de 20 horas de conversas, em oito dias), o longa-metragem tem ares de gênero cinematográfico híbrido, ao mesclar imagens de arquivo com apresentações de artistas contemporâneos em espaço cênico, pinçadas do vasto repertório de mais de 500 canções. “Tudo o que queria quando comecei era ser Tom (Jobim) e Vinicius (de Moraes) e um pouco de João Gilberto”, brinca.

O filme coloca no liquidificador trechos dos livros, depoimentos de colegas - como a irmã Miúcha, Hugo Carvana, Edu Lobo, Ruy Guerra, Wilson das Neves - entrevistas antigas (como a concedida por ele a um canal de tevê italiano, no exílio, em 1968, e outra, de Maria Bethânia). 

Amigo e parceiro de trabalho do diretor desde a década de 1960, o artista abre as portas do próprio apartamento para falar do casamento por 30 anos com a atriz Marieta Severo (“Não me imaginava só. Pensei que ia casar de novo na próxima semana. Isso faz 20 anos”), a relação com o pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, e a busca por um irmão cantor alemão, Sérgio Gunther.

Crédito: Sony Pictures/divulgação
Crédito: Sony Pictures/divulgação
Chico chega a filosofar sobre como a própria vida se traduz na obra. “Tem a memória real e a falsa, imaginada. Até um dia desses, tinha lembrança muito clara de ter visto o Zepellin passar no céu quando criança, mas descobri que não vi nada”. Fala de como se lembra da mãe cantarolando pela casa, de como usava a literatura para se aproximar do pai inacessível, do quanto ficou atordoado com o sucesso aos 22 anos de idade. Comenta o desejo de sempre explorar o desconhecido. “Quanto mais a gente sabe, mais difícil fica. Quero fazer o que não sei fazer”.

Chico canta três músicas. A ele são reservados os minutos iniciais e finais, para Sinhá e Paratodos. Em momento família, descontraído, empunha o violão em Dueto, com três dos sete netos. As apresentações são complementadas pela portuguesa Carminho (Sábia e Sobre todas as coisas, por Milton Nascimento), Adriana Calcanhotto e Martnália (Biscate), Laila Gagarin (Uma canção desnaturada), Péricles (Estação derradeira), Moyseis Marques (Mambembe), Mônica Salmaso (Mar e lua).

Entrevista >> Miguel Faria Jr, diretor

A história do irmão alemão foi guardada para fechar o filme pela sua força, o seu frescor?
Não sei se pelo frescor, mas essa história já apareceu quando o filme estava sendo feito. Começou por causa do Tom (Jobim) falando como se fosse uma qualidade: “Chico tem até um irmão alemão!”. E teve a coincidência de o Chico estar escrevendo o livro e o filme tratar de imaginação e memória. Ele começa inventando o irmão, como ele seria. Mas quando você inventa um personagem, aquilo se torna tão real, que ele entrou em crise e resolveu tentar conhecer esse irmão, sobre quem não conhecia nada. Acompanhei ele indo atrás e descobrindo o Sérgio Gunther, que também era um cantor e apresentador na Alemanha Oriental, uma espécie de Jô Soares. Foi um trabalho de detetive.

 Como surgiu o filme? O formato me lembra muito a série de DVDs do Roberto de Oliveira, a mistura de arquivo com entrevista.
Surgiu quando acabei o filme sobre o Vinicius, que era um artista nascido em 1913 e trabalhou intensamente até o meio dos anos 1960. O filme conta um pouco o que era a vida de um compositor musical que era reflexo do país. Comecei a ter vontade de contar como continua isso, como a música mudou. Para mim, foi natural o Chico, um dos maiores artistas brasileiros. O filme tem um olhar muito meu. O do Roberto é um pouco mais de registro jornalístico, de recuperação de arquivo.

+documentário

Momentos stand-up comedy 
Descrever Chico Buarque como tímido é um lugar-comum. Nos depoimentos, ele nega com veemência tal timidez contando histórias engraçadíssimas, como quando descreve os piores shows da sua vida (possível explicação para certo “trauma" de plateias). Mas a faceta piadista não acaba por aí. Mesmo quando fala sério, sobre as minúcias da memória real e da memória inventada, Chico dá risada de si mesmo por ter acreditado por muito tempo ter visto o dirigível Zepelim voar nos céus. Mesmo quando não tem a intenção de fazer graça, ele se sai com frases impagáveis, como essa: “Na verdade, mesmo, quando eu comecei a carreira queria ser Tom e Vinícius e um pouco de João Gilberto". Ao falar de assuntos mais duros, como a censura na época da ditadura militar, relata casos cômicos. Quando reflete sobre a renovação do público, conta, aos risos, como um jovem o abordou e disse: “Deixa eu tirar uma selfie com você? Minha avó te adora”.

“Ele é exatamente assim. Uma pessoa reservada, mas não é triste e, sim, muito engraçado. Chico já foi muito escaldado, levou muita porrada, ao mesmo tempo em que foi bastante elogiado. Quando está à vontade, fala. Mas se você colocar 30 pessoas para entrevistá-lo, perguntando se ele comeu tal atriz, vai ser diferente”, testemunha Miguel.

Chance única de conhecer a intimidade do "vovô Chico" 
Por serem amigos e parceiros profissionais há décadas, o músico abre as portas de casa e o coração para o cineasta. Na tela, vê-se o suprassumo de 20 horas de conversa, gravadas em oito dias. Tudo parece muito real nos depoimentos concedidos pelo cantor, quase todos na própria casa. As descobertas são inúmeras. Vemos o escritor Chico Buarque trabalhando no teclado do seu computador Mac, o compositor Chico Buarque tentando lembrar como se toca Dueto no violão para, mais tarde, interpretá-la com três de seus sete netos. Aparentemente, todos herdaram(ou foram influenciados pela) intimidade com a música. Em um minuto, o vovô Chico ouve de uma das netas se tem sorvete em casa. No outro, os reúne em uma sala repleta de instrumentos para uma “jam session" em família. 

Os arranjos foram feitos pelo diretor musical de Chico Buarque há 20 anos, Luiz Cláudio Ramos. Para o diretor do documentário, a escolha do repertório e dos intérpretes foi a parte mais difícil de todo o processo. Segundo ele, os números musicais foram pensados para acompanhar a cronologia do filme, sem interrompê-lo. Cada canção ajuda a contar a história. “[Na música], Chico atuou em diversas ‘praias' diferentes, e eu queria contemplar tudo isso. Escolhi os cantores que achei que melhor pudessem fazer”, justifica. Um dos poucos comentários feitos por Caetano Veloso após a exibição do filme, na segunda-feira, foi dizer que “a parte preferida” havia sido a participação de Péricles. Com todo o respeito às preferências de Caê, a reportagem elege Carminho o ponto alto - absoluto - das apresentações.


Chico é meio filósofo, meio psicólogo 
Os temas mais duros são encarados sem medo na fala de Chico. Ele analisa, por exemplo, como a relação era difícil com o pai, um grande intelectual, e como a literatura serviu de artifício para se aproximar do chefe da família. Consegue fazer ligações extremamente claras a respeito do fato de ter se tornado cantor com memórias de sua mãe viver cantarolando Noel Rosa dentro de casa. Também fala com serenidade à respeito da solidão. Depois do fim do casamento de 30 anos com a atriz Marieta Severo, há 20 anos, ele imaginava que se casaria novamente dentro de pouco tempo. Hoje, prefere seu “espaço solitário”, ideal para trabalhar. 

Sobre o conjunto da obra, faz análise coerente sobre as composições surgidas a partir do combate à ditadura militar. “Criei muita coisa por raiva, sob pressão. Depois que o motivo passa, a canção fica solta, perde o chão”.  Por outro lado, demonstra grande compreensão de seu papel na luta pela democracia. Sobre o processo criativo aos 71 anos, filosofa: “Quanto mais você sabe, mais difícil fica. Quero fazer justamente o que não sei (…) A memória vai se alargando e falhando"

- O repórter viajou a convite da Sony Pictures


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