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Literatura Campanha #primeiroassedio será transformada em livro e jornalistas do Diario aderem à corrente Pesquisadora brasileira recolhe depoimentos de vítimas da violência para transformá-los em livro, com lançamento previsto para 2016

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 10/11/2015 09:41 Atualizado em: 10/11/2015 16:48

A campanha incentiva mulheres a compartilhar depoimentos pessoais. Arte: Jarbas/DP
A campanha incentiva mulheres a compartilhar depoimentos pessoais. Arte: Jarbas/DP


Adriana estava a caminho da aula de ballet quando um taxista lhe ofereceu carona e passou a mão em sua perna. Bruna esperava a mãe, na fila do supermercado, quando dois homens a apalparam. Aline passeava na orla da praia, enquanto banhistas disparavam assovios e frases maldosas sobre seu corpo. Valentina apareceu na televisão, como participante de reality show de culinária disputado entre crianças, e se tornou alvo de assédio nas redes sociais - “Sobre essa Valentina: se tiver consenso, é pedofilia?”, dizia um dos comentários no Twitter. Casos de assédio como esses, todos reais, se multiplicam em silêncio. Este último, envolvendo Valentina (12 anos), porém, deu origem à campanha #PrimeiroAssedio, que prega o desabafo público das memórias de abuso. No próximo ano, a iniciativa será transformada em livro pela professora de literatura Giovanna Dealtry, que já recolhe depoimentos para a publicação.

“É a primeira vez que eu conto”, segundo a professora, é a frase mais comum nos textos que coleta por email. “Os relatos [da campanha] me chamaram a atenção, não por ter ficado surpresa com as histórias, mas pela onda de apoio que se formou, um movimento inédito em torno do assédio. A ideia do livro surgiu a partir do desejo de não perder esses relatos tão intensos, que, fatalmente, desapareciam nas redes sociais”, explica Giovanna, que foi vítima de assédio aos 11 anos - seu relato também estará no livro, cujo título provisório é Nunca contei para ninguém. A obra deve ser publicada online, com acesso gratuito, pela Zazie Edições. Segundo a professora, várias mulheres já se voluntariaram para colaborar com a revisão dos textos - “essa cooperação é emocionante”, diz.

A professora de literatura brasileira, cujas linhas de pesquisa envolvem também cultura, música e experiência urbana, observa o alcance da hashtag #PrimeiroAssedio desde o início da campanha virtual, lançada no dia 22 de outubro pela jornalista Juliana de Faria, criadora do coletivo feminista Think Olga. Nos primeiros quatro dias na rede, a hashtag foi replicada mais de 80 mil vezes. As palavras “cara”, “homem”, “mão” e “casa” estão entre as mais citadas pelas vítimas, segundo análise feita por Juliana - que, a partir dos relatos, estipulou em 9,7 anos a idade média do primeiro assédio.

“Não é uma missão simples, indolor, fácil. Mas se apoderar da própria história é importante, de forma que a vítima assim se reconhece como vítima. Não é vitimismo. É o empoderamento de enxergar que a opressão é, de fato, uma opressão e não ‘parte da vida’. Esse é o primeiro e mais importante passo para a mudança”, declarou Juliana de Faria no site do Think Olga. Para Giovanna Dealtry, outro ponto importante, encorajado pela campanha, é não relativizar os assédios. “Se noticiamos apenas os casos de violência extrema, abrimos uma porta para dizer que o cara chamando uma mulher de ‘tesuda’ na rua é um elogio. Não é.”, defende, incentivando a publicização de todos os casos com igual destaque. No livro, os relatos de assédio contemplam de “cantadas” a estupros - a maioria, segundo a autora, cometida por homens que conviviam com as vítimas como pessoas de confiança.

SERVIÇO
Depoimentos com a hashtag #PrimeiroAssedio podem ser enviados até o dia 15 de dezembro, através do email assedio2015@gmail.com ou através do perfil de Giovanna Dealtry no Facebook. “Não recolho nenhum relato sem a permissão das mulheres. E não autorizo ninguém a recolher além de mim. Quero dar essa segurança a elas e tento responder o mais rapidamente possível”, informa a pesquisadora.

As palavras mais recorrentes foram analisadas pelo coletivo Think Olga, criador da campanha. Foto: Think Olga/Reprodução da internet
As palavras mais recorrentes foram analisadas pelo coletivo Think Olga, criador da campanha. Foto: Think Olga/Reprodução da internet


>> DEPOIMENTOS

Jornalistas do Diario de Pernambuco também compartilharam relatos de assédio.

MAIRA BARACHO, 25 anos
Eu tinha uns 13 anos, ele devia ter uns 30. Era amigo de infância da família e estava trabalhando como motorista para minha tia. O conhecia desde que nasci, frequentava sua casa e era amiga das suas filhas. Um dia ele foi me levar da escola pra casa da minha tia e, no caminho, ficou falando como eu já "dava um caldo", estava linda, etc. Fez isso durante o caminho todo e no elevador, me olhando nojento e me alisando no rosto e na perna, algumas vezes. Na casa da tia, me tranquei no banheiro até ele ir embora - não sem antes insistir por intermináveis minutos pra que eu abrisse a porta. Lembro do medo, do choro e da sensação de fechar os olhos e vê-lo perto, que demorou a passar. Levei um tempão pra digerir. "Será que foi alguma coisa que eu fiz?" Minha família acreditou em mim e cortou relações com ele, que chegou a dizer que eu tinha dado cabimento. Até hoje ainda o vejo, no bairro da minha infância. Depois de anos, me livrei do nó na garganta a cada encontro com ele. Esse é só meu #PrimeiroAssédio, dentre tantos abusos que se repetem todos os dias na minha vida e na de todas as mulheres, desde que somos crianças, em cada espaço que ocupamos, o tempo todo. Esse comportamento é naturalizado, aceito, legitimado - vide os comentários nojentos direcionados a uma menina de DOZE anos no MasterChef. #NãoPassarão

LARISSA RODRIGUES, 32 anos
Depois de ler o texto da colega Maira Baracho sobre seu #PrimeiroAssedio, descobri que passei por umas três situações parecidas com a dela. Entendo completamente a dor, o medo, o nojo e o trauma da colega de redação. E só relembrando e querendo colocar pra fora o que também passei é que me dei conta de como esses episódios mexeram comigo e deixaram marcas difíceis e não superadas. Tanto que não consigo ainda relatá-los. Talvez um dia. Uma coisa é certa: é confortável saber hoje em dia, antes tarde do que nunca, que não fui a única a passar por isso, nem fui culpada. Sim, porque a gente se culpa mesmo, ou culpava, por falta de informação ou imaturidade. A gente acha mesmo (ou achava) que era a única a sofrer com a violência contra a mulher. “Foda” descobrir que, de alguma forma, essa violência atingiu boa parte das mulheres ao meu redor. Violência não é só física. Nenhuma mulher deveria passar por nenhum tipo de violência. Como disse Maira: "esse comportamento é naturalizado, aceito, legitimado", mas os tempos mudaram, ou começaram a mudar.

MARCIONILA TEIXEIRA, 42 anos
Entre os muitos assédios sexuais vividos por mim na infância, um marcou mais porque somente percebi que se tratava de abuso quando amadureci. Achei importante contar porque as meninas precisam saber que nem sempre o assédio acontece em forma de exibição do pênis ou de toques maliciosos. No meu caso, o que mais me faz refletir hoje surgiu “fantasiado” de cumplicidade. Eu tinha entre 12 e 13 anos e ele, com cerca de 40, sempre se aproximava quando me via. Nessas horas, não poupava elogios e olhares libidinosos (somente mais tarde entendi a intenção daquele olhar que tanto me incomodava na conversa). O papo dele era sempre sobre o quanto eu era bonita e sobre sexo. Era casado, mas dizia com quantas mulheres saia e por aí vai... Como ele era alguém com formação superior, muito próximo da família e educado, estava acima de qualquer suspeita para meus pais. Também imaginava que, diante daquela proximidade familiar aceita em casa, ele não estaria fazendo nada errado, apesar de sentir sempre aquele incômodo quando o “mala” começava o papo. Um dia, de tão bêbado, se jogou em cima de mim na frente da esposa. Foi a gota d’água. Desde então, passou a me procurar cada vez menos. A redução na procura também coincidiu com o fato de eu começar a namorar. Por sinal, ele tinha ciúmes de todos os meninos. Dia desses, perguntou a um parente porque eu não falava mais com ele. Contei tudo. Mas já era tarde para algum reparo. Hoje ele está bem distante. Graças a Jah.

TATIANA PIMENTEL, 30 anos
Eu tinha mais ou menos 12 anos, e meu #PrimeiroAssedio aconteceu dentro de um ônibus elétrico, hoje extinto, que cruzava a Avenida Caxangá. Um caso clássico, muito comum. Voltando do colégio, acompanhada por uma prima, senti que um homem se encostava atrás de mim. O colégio ficava a cerca de quatro paradas de distância da minha casa. Quando percebi aquela aproximação suspeita, peguei os meus livros, que estavam no colo de um passageiro, e os usei para empurrar o homem, fingindo que o empurrão era acidental. Pedi licença, rispidamente, e me afastei. Soube como deveria agir porque minha mãe já havia me alertado sobre esse tipo de situação. Dizia para não conversar com homens estranhos e não deixar que ficassem atrás de mim no transporte coletivo. Desde então, sempre fico atenta e nunca me calo quando testemunho esses assédios. Já pedi para se afastarem de mim outras vezes, homens que também ficavam às minhas costas, o que ajuda a intimidá-los.

ANNACLARICE ALMEIDA, 41 anos
Quando pequena, tive um vizinho que costumava me chamar para brincar, tentava se aproximar de mim e de outras crianças da rua onde morávamos. Nunca houve nenhum contato físico suspeito, porque eu sentia que havia algo de estranho nas aproximações dele e eu sempre me afastava. Eu e outras crianças dizíamos que ele não iria brincar conosco porque era maior do que nós. Aquilo não me traumatizou, mas ficou na minha memória. Tenho certeza de que se eu não fosse atenta e não me manifestasse, teria acontecido alguma coisa.


Giovanna está recolhendo depoimentos por email.. Foto: Facebook/Reprodução
Giovanna está recolhendo depoimentos por email.. Foto: Facebook/Reprodução
>> ENTREVISTA: Giovanna Dealtry

Você comentou no Facebook sobre homens que usam as redes sociais para se redimir de comportamentos machistas do passado. Qual sua opinião sobre o assunto? São relatos válidos ou enfraquecem, ainda que sem a intenção, o movimento #PrimeiroAssedio?
Acho muito cômoda essa "remissão" nesse momento. Se esse homem abusou ou assediou uma mulher, ele deveria pedir desculpas a ela. E arcar com as responsabilidades pelo seu crime. Se arrepender em busca de aplausos é fácil. Difícil é ser a vítima.

Em declarações anteriores, você pontuou que foi vítima do primeiro assédio aos dez anos. Caso se sinta à vontade, poderia compartilhar esse relato?
Sim. Não me lembro se estava indo ou voltando do colégio. Mas estava ali, de uniforme, quando percebi um homem se masturbando a poucos metros de mim, na mesma calçada, atrás de uma árvore. Me lembro do nojo e de não entender o que ele estava fazendo. Só o olhar era assustador. Voltei correndo para casa. Minha sorte é que sempre tive meus pais ao meu lado, podia conversar abertamente com eles. Mas aprendi que o "certo" era andar de cabeça baixa, olhando pro chão.

Qual o seu conselho para mulheres que foram vítimas de assédio e relutam, por medo ou vergonha, em compartilhar a experiência traumática?

As mulheres, infelizmente, naturalizaram o assédio. Raramente, chega-se em casa e conta: “Sabe o que aconteceu hoje? Um cara me chamou de gostosa na rua!” É como se não fosse espantoso. Ainda que seja mais assustador isso acontecer com crianças, não podemos nos calar diante de qualquer violência. Alguém se calaria diante de um assalto? A vergonha e o medo estão presentes, quase sempre. E isso faz parte da cultura machista em que nós vivemos. É uma forma de dominação. Quanto mais falamos, mais nos fortalecemos. É preciso deixar claro que a culpa nunca é da vítima. Jamais.

Analisando a história dos últimos anos, poderia citar uma conquista relevante na luta pela igualdade de direitos? Pode ser uma lei, personagem  engajado em filme ou telenovela, debate em seminários, etc.
Acho que uma grande conquista foi a regulamentação da Lei de 1940, que permite o aborto em casode estupro. É inconcebível obrigar a mulher a ter um filho de um estuprador. Mas as conquistas são paulatinas e diárias. Há um movimento de mães lutando pela humanização dos partos, pela dimunuição do número de cesáreas desnecessárias. O Governo Federal também criou uma regulamentação que visa diminuir o número de cesáreas sem indicação. A presença maior de mulheres negras nas universidades, ainda que longe do ideal, também é um grande passo. A mulher negra é a maior vítima de violência e que recebe menores salários, hoje. 



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