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O jeitinho brasileiro para além do bem ou do mal

Pesquisa em vias de virar livro investiga a musicografia e a literatura brasileiras para constatar: o famoso jeitinho do dia a dia contamina a produção cultural e perpetua uma forma indireta de encontrar solução para tudo - da cantada bem-sucedida à corru

Publicado: 13/09/2015 às 20:00

Crédito: Silvino/Arte DP/

Crédito: Silvino/Arte DP/

Crédito: Silvino/Arte DP
Você sabe com quem está falando? Tenho as costas quentes, vim trabalhar aqui por meio de um peixe. Aliás, peixe não, tubarão. Quebrei o galho de um magnata, então foi só ele mexer os pauzinhos e cá estou. Afinal, uma mão lava a outra, não é? Cá entre nós, tão importante quanto um bom currículo é ter QI (quem indique). Mas vou aliviar dessa vez, só porque é para você. É só me ajudar e eu te ajudo. Arranja o troco do guaraná e fica tudo certo. Sem fila, sem burocracia, em 15 minutos você está liberado.

[SAIBAMAIS]Se o parágrafo acima soa com naturalidade aos nossos olhos e ouvidos, tal qual uma conversa cotidiana, é prova do quão arraigado o chamado “jeitinho brasileiro” está no dia a dia. Ele se escancara no vocabulário, nas ações e insinuações. Se não é fruto de iniciativa nossa, nos assedia por todos os lados, em vários níveis. E, como é frequente aos fenômenos sociais, ecoa na produção cultural, filão explorado pela pesquisadora paulista Valquíria Moisés em Do jeitinho brasileiro ao Brazilian little way (2014), dissertação de mestrado em vias de virar livro. A despeito de não investir em tema inédito (de 1997 a 2013, ao menos 14 produções científicas mencionam a expressão), a obra se destaca pelo interlace com manifestações artísticas.

Mestre em letras pela USP, a professora buscou identificar vestígios das várias manifestações do “jeitinhos”. A partir de vasto material audiovisual pesquisado - onde pessoas fazem gambiarras, furam fila, pedem propina -, Valquíria Moisés garimpou, na literatura e na música, documentação de todas as conotações possíveis para o jeitinho.

A gradação parte desde um pedido em favor da solidariedade, em um dos extremos (Antonico, composição de Ismael Silva famosa na voz de Gal Costa), até corrupção, na outra ponta (Rap do Mensalão e Pega ladrão, de Gabriel O Pensador). No radar da pesquisa, textos de Clóvis Rossi,  Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis. Músicas compostas e/ou interpretadas por Roberto Carlos, Toquinho, Chico Buarque, Caetano Veloso, Tom Zé.

A investigação conclui: a produção cultural reflete o jeitinho cotidiano do brasileiro, seja ao retratá-lo, negá-lo ou estimulá-lo através das letras e textos nas músicas ou nos livros. “Aos poucos, observei preconceitos de minha parte. Há também conotações positivas, ligadas à solidariedade, criatividade pela sobrevivência, que aliviam a carga negativa da expressão. No lado negativo, há a flexibilidade moral, a opção de fechar os olhos para questões fundamentais, usar de prevaricação, corromper... Isso já é outra coisa. Estão usando o pobre do ‘jeitinho’ para tudo o que representa buscar saída”, esclarece a autora. Para ela, em outros países não encontramos expressões correspondentes a “jeitinho” porque as pessoas não têm tantas “saídas obscuras” como nós.

Diante da existência de uma gradação deste “positivo” até “negativo”, de favor à corrupção, qual seria, então, o limite aceitável? Para Valquíria Moisés, depende da situação e de quem está envolvido. “Na questão da saúde pública, por exemplo. Pessoas buscam acesso a consultas, às vezes com criança doente, na fila para transplante, mas não conseguem. No desespero, procuram saída junto a médico, posto de saúde, ou até a político. Esse assunto tem nuances que você não consegue colocar parâmetros, dizer qual o limite, onde começa ou onde termina algo, pois é linha muito tênue”.

Possível solução ou primeiro passo nesse caminho, diz a estudiosa paulista, é atuar em duas frentes. A educação cidadã junto aos alunos, com discussão de valores, e, para os casos mais graves, o “corretivo” pela via da punição. Ou, para encerrar com a mesma mordacidade do primeiro parágrafo, um dia desses a gente dá um jeito. Na vida só não há remédio para a morte.


GRADAÇÕES DO JEITINHO NA MÚSICA PERNAMBUCANA
Grau um
O jeitinho de resistir 

A resistência é uma forma de enfrentar as agruras e não ceder à passividade. Alceu enxerga o fundo do poço, embora se mostre reerguido. Gonzaga reconhece a situação difícil, mas sempre dá um jeito de sobreviver e não deixar a terra natal.

Você pensa
Alceu Valença 

Mas você pensa 
que morri
Quando eu subia
Com a corda no pescoço
(...) Você pensa que 
eu engol
O nó que trago 
sem descer
No meu pescoço


Último pau-de-arara
Luiz Gonzaga 
(Venâncio / Corumba / J.Guimarâes)

A vida aqui só é ruim
Quando não chove 
no chão
Mas se chover 
dá de tudo
Fartura tem de montão
Tomara que 
chova logo
Tomara, meu 
Deus, tomara
Só deixo o meu Cariri
No último pau-de-arara

grau dois
o jeitinho de conquistar 

Uso de mentiras para obter vantagem amorosa. Geraldo promete o impossível para cair nas graças de alguém. Conta mentira branca para ganhar o coração. Já Clarice se dispõe a se rebaixar, contanto que tenha espaço na vida do amado(a).

Dia branco
Geraldo Azevedo

Se você vier pro que der e vier comigo
Eu lhe prometo o sol... 
se hoje o sol sair
Ou a chuva... 
se a chuva cair
Se você vier até onde 
a gente chegar
Numa praça na beira 
do mar
Um pedaço 
de qualquer lugar
E neste dia branco 
se branco ele for

Qualquer negócio
Clarice Falcão 

Me deixa ser 
Quem faz o laço 
Da gravata
Do mordomo 
Que te serve o jantar
Me deixa ser 
O suporte que segura
A tela plana 
Da sua sala, no lugar
Me deixa usar 
O pé pra equilibrar
Aquela mesa bamba 
Que você aposentou
Há mais de um mês 
Me deixa ser
A sua estátua de jardim,
O seu cabide de casacos,
Só não me tira de vez 
Da sua casa

grau três
um jeitinho e ganhar 

Madeira que cupim não rói
Capiba

Queiram ou não queiram os juízes
O nosso bloco é de fato campeão
E se aqui estamos, cantando esta canção
Viemos defender a nossa tradição
E dizer bem alto que a injustiça dói
Nós somos madeira de lei que cupim não rói

Vida boa
Eddie

A gente tá querendo 
a vida boa
Boa como a vida 
de outras pessoas
Outras pessoas 
que também querem uma vida boa
Boa como a vida 
de outras pessoas

grau quatro
um jeitinho de pular a cerca

Lenine diz que a amada é a perfeita e a compara a musas inspiradoras. Mas comete um lapso. Confessa uma traição em potencial (ou duas, ou três). Reginaldo Rossi aconselha a mulher que conquista má fama depois de levar vida promíscua.

Todas elas juntas num só ser
Lenine

Só você, rainha aqui 
é só você,
Só você, a musa dentre as musas de A a Z.(...)
Se um dia me surgisse uma moça
(...) Confesso que eu talvez não resistisse;
Mas, veja bem, meu bem, minha querida;
Isso seria só por uma vez,
Uma vez só em toda a minha vida!
Ou talvez duas... mas não mais que três...

Em plena lua de mel
Reginaldo Rossi (Clayton / Cleide)

Toda vez que o seu namorado sai, você vai ver outro rapaz.
Olha todo mundo está comentando, o seu cartaz tá aumentando.
Moça linda, por favor, guarde todo esse amor pra um rapaz.
Dá vergonha de dizer, o que disseram de você. Mas ouça.
Dizem que o seu coração, voa mais que avião.
Dizem que o seu amor, só tem gosto de fel
Vai trair o marido, em plena lua de mel.


grau cinco
o jeitinho de burlar a lei 

Bezerra da Silva aponta onde estão os verdadeiros ladrões, protegidos pela classe social.

Vítimas da sociedade
Bezerra da Silva

Se vocês estão a fim 
de prender o ladrão
Podem voltar pelo mesmo caminho
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho
(...) Se há um assalto à banco
Como não podem prender o poderoso chefão
Aí os jornais vêm logo dizendo 
Que aqui no morro só mora ladrão

Crédito: Acervo Pessoal

A encruzilhada dos desejos

Acadêmicos e pesquisadores renomados, Lília Schwarcz e Pablo Holmes discordam em pontos fundamentais sobre a existência e o significado do “jeitinho brasileiro”. Alinhada à tradição de Roberto DaMatta, ela acredita na falta de distinção entre o público e o privado como raiz do problema. Para ele, “jeitinho” não existe e, sim, corrupção estrutural fruto das estruturas sociais do país.

Entrevista >> Lília Schwarcz
Historiadora, doutora em antropologia social ela USP, autora de Brasil: uma biografia

De onde vem o “jeitinho brasileiro”?
O menosprezo pelas leis e pelo espaço público é exemplo da dificuldade do brasileiro de entender as próprias atitudes republicanas. O que é, no Brasil, a figura do despachante? Uma pessoa que dá um “jeitinho” na lei para você passar na frente. Somos um país consumidor de filmes, livros e músicas piratas, como se a nossa contravenção não fosse tão importante quanto a contravenção pública. É uma questão de valores.

Esse comportamento já foi mais presente em outras épocas?
Sim. Durante muito tempo nos acostumamos a abusar dos setores privados em detrimento do público. O jeitinho brasileiro é algo que lembra o antigo malandro que trafegava entre o público e o privado e, como diria o professor Antônio Cândido, “não fazia nada muito errado, mas também nada muito certo”. Usava brechas do sistema para se beneficiar. Desde 1988, com a Constituição Federal e a volta das eleições, houve fortalecimento das instituições democráticas. Ficou cada vez mais difícil agir na lógica do jeitinho, apesar de ainda termos isso muito presente em nossas vidas. Prova disso é que, pela primeira vez, estamos de fato punindo corruptores e corruptos. 

E no dia a dia, avançamos?
Ainda nos valemos muito do jeitinho nos lugares privados. O que falta é na questão da república. Nossos valores não vão bem. A gente cobra dos estados, dos políticos (e temos mesmo que cobrar), mas não cobramos de nós mesmos. Partimos do princípio de que o corrupto e o corruptor são os outros. Precisamos superar isso, entrarmos numa lógica mais republicana e menos na lógica de troca de favores. É uma forma de alcançar uma cidadania mais ativa e voluntária.

Entrevista >> Pablo Holmes
doutor em sociologia pela Universidade de Flensburg (Alemanha), mestre em direito pela UFPE 

Como enxerga o “jeitinho brasileiro”?
É como perguntar se alguém é contra ou a favor do carnaval pernambucano. De tão amplo, fica difícil se posicionar política ou teoricamente. A origem teórica do “jeitinho” é problemática. Há jeitinho em vários países da Europa. No Brasil, houve uma antropologia culturalista que associa a questão ao patrimonialismo, uma categoria igualmente problemática, pois aplica à nossa sociedade capitalista e moderna o que [o sociólogo Max] Weber criou para explicar sociedade que não era nem moderna nem capitalista. Jeitinho é o que a gente faz na família. Não se pode dar conotação cultural ao que é estrutural, como se fosse do caráter brasileiro e, portanto, imutável. Chamar de “jeitinho” simplifica muito o problema. É algo que vem do [Roberto] DaMatta, associar o problema da pobreza, do subdesenvolvimento e da corrupção estrutural à herança dos povos ibéricos, à confusão entre público e privado. Isso é naturalizar as desigualdades.

Mas o Brasil não tem mais corrupção do que outros países?
Sim, mas isso tem a ver com estruturas sociais atuais, com reprodução de privilégios, com inclusão e exclusão social, redes superpoderosas que confundem poder, dinheiro e os direitos que podem ser comprados, que as colocam acima da lei. É típico de uma sociedade como a nossa, extremamente desigual, excludente. Isso acontece em outros países, mas em menor medida porque as condições sociais são outras. 

Qual a saída?
Criar mecanismos sociais de inclusão capazes de garantir igualdade jurídica, para que as pessoas tenham boa expectativa da garantia das normas. Porque gente “mala” existe em qualquer lugar do mundo.

NA BOCA DO POVO >>>> 
Segundo o pesquisador pernambucano Fred Navarro, autor de O dicionário do Nordeste, o “jeitinho brasileiro” povoa boa parte dos verbetes do livro de referência para o vocabulário popular nordestino. Confira seleção feita pelo autor:

mamãezada • s.f. • N.E. • 1 • Roubalheira no serviço público, filhotismo, afilhadismo, compadrio: a mamãezada não tem fim. • 2 • Intriga, maquinação, patranha, anguzada.

peixe • s.2g. e adj. • peixinho • N.E. • Protegido, afilhado: ele é peixe da professora. • bedegueba güe • s.m. • bedeguela güe • 1 • N.E. • Chefe mandão, patrão autoritário.

curema • s.m. • PB / PE • 1 • Autoridade, figurão, poderoso. • 2 • Valente, ousado, corajoso, cabra da peste.

dividir com o beiço • fraseol. • N.E. • Sinal típico de autoritarismo e mandonismo: indicar a divisão de algo (terras, em geral) ao simples mover do lábio inferior numa direção.

dunga • s.m. • N.E. • 1 • Autoridade, chefe, maioral. • 2 • Corajoso, valentão, atrevido.

regrista • s.2g. e adj. • N.E. • 1 • Autoritário, cheio de regras. • 2 • Falador, tagarela, boquirroto. • 3 • Intrometido, inconveniente. Dicionário Aurélio

banhar-se • v.pron. • N.E. • 1 • Aproveitar-se, corromper-se, locupletar-se: como secretário do governo, ele banhou-se. • 2 • Lavar as partes sexuais depois da cópula. Dicionário Aurélio

comidilha • s.f. • BA • Roubalheira, corrupção. Dicionário de baianês, Nivaldo Lariú

marreteiro ê • s.m. • N.E. • Trapaceiro, vigarista, ladrão. • [em São Paulo: vendedor ambulante, camelô, biscateiro]

pega-lalau • s.m. • N.E. • Peça de ferro, ou de outro metal, com duas pontas triangulares, em forma de bandeirinha de São João invertida, colocada em série nos muros e portões para impedir que se ande ou se pule sobre eles. • [lalau, no país: ladrão, larápio, gatuno]

a colhão u • loc. • a migué • BA • // • a locé • PB / PI • No improviso, como for possível, do jeito que der. •

a facão • loc. • na mão grande • 1 • BA • Trabalho feito com poucos recursos, no improviso, na marra. Dicionário de baianês, Nivaldo Lariú • 2 • AL / PE • Objeto tosco, sem acabamento.

entrujar • v.t.d. e v.int. • CE • Costurar na base do improviso.

safarrascado • s.m. • safarrasco • PE • Baile carnavalesco sem programa e organização, realizado na base do improviso. Dicionário do frevo, Nelly Carvalho, Sophia Karlla Mota e José Ricardo Paes Barreto

trepeça • s.f. • PE • 1 • Objeto quebrado, velho, abandonado. • 2 • N.E. • Malfeito, feito de improviso, ‘arranjado’. •

badaronha • s.f. • BA • 1 • Recurso, arte, criatividade. • 2 • Malandragem, artimanha.

bater fofo ô • fraseol. • CE • // farrapar • v.t.d. e v.int. • // • fuleirar • v.t.d. • N.E. • Não cumprir o combinado, desrespeitar um acordo.

calungagem • s.f. • fuleiragem • fuleragem • N.E. • Vadiação, malandragem,: passei a tarde de fuleiragem.

cochambrança • s.f. • conchambrança • N.E. • // • conchamblança • N.E. / S. • 1 • Acerto, jeitinho, conchavo. • 2 • Entusiasmo, vibração, torcida. • 3 • Ato ou efeito de se harmonizar com alguém. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa

maruagem • s.f. • PB • Malandragem, sabedoria, esperteza. Dicionário popular paraibano, Horácio de Almeida

quengo fino • s.m. • N.E. • Esperteza, sabedoria, vivacidade.

papo de vereador • s.m. • CE • Conversa de conteúdo político, para os integrantes das gangues de menores de Fortaleza.

tuntunqué • tutunqué • N.E. • 1 • s.m. • Mandão, autoritário. • 2 • s.m. • Liderança política, especialmente no interior. • 3 • s.m. e adj. • Valentão, brigão.
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