MPB Geraldo Vandré: o ícone da música de protesto faz 80 anos no completo ostracismo Recolhido ao isolamento, em São Paulo, cantor e compositor paraibano nem sonha em reaver a projeção conquistada com sucessos da música brasileira nos anos 1960

Por: Luiza Maia - Diario de Pernambuco

Publicado em: 06/09/2015 17:40 Atualizado em: 04/09/2015 20:50

Cantor e compositor paraibano cravou o nome da história com canções sociais. Foto: Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press
Cantor e compositor paraibano cravou o nome da história com canções sociais. Foto: Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press

Desde a fatídica entrevista concedida no aeroporto, na companhia de oficiais do regime militar, para anunciar o retorno forjado à pátria-mãe, a vida e a carreira artística de Geraldo Vandré ganharam contornos mitológicos. Naquele 18 de agosto de 1973, o paraibano punha um irrevogável ponto final na trajetória popularizada menos de dez anos antes, com o sucesso de Disparada, apesar da promessa de "fazer canções de amor e paz" a partir de então.

"Não tenho partido. Nem voto". Confira entrevista exclusiva com Geraldo Vandré

Em 12 de setembro, o cantor e compositor cuja obra mais conhecida, Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando), foi tatuada na musicografia nacional como hino durante os anos de chumbo da ditadura militar completará 80 anos em meio ao ostracismo mais notável e longevo de um artista neste país.

As oito décadas são marcadas - especialmente pela liberação das biografias não autorizadas pela Justiça, em junho - com o lançamento de dois livros. Vandré: O homem que disse não, de Jorge Fernando dos Santos, escrito a partir de 2013, após um sonho do autor com o artista, de quem é fã desde a adolescência, foi lançado pela Geração Editorial. Os 100 exemplares de Geraldo Vandré: Uma canção interrompida foram bancados pelo próprio escritor e distribuídos gratuitamente, após recusa das editoras. Com a liberação, sairá em breve por editora já definida.

Funcionário público aposentado, Geraldo Pedrosa de Araújo Dias - Vandré é a corruptela de Vandregíselo, nome do pai, otorrinolaringologista - mora em um apartamento modesto na Rua Martins Fontes, em São Paulo. "Ele passa boa parte do tempo na casa da irmã, em Teresópolis (RJ). Noutras vezes, se hospeda no Hotel da Aeronáutica, no Rio", conta o biógrafo Jorge Fernando. A poucos é concedida a honra de adentrar o lar. "É tudo espalhado pelo chão, cheio de livro, disco por todo canto", conta Marcelo Melo, do Quinteto Violado, um dos instrumentistas do quinto e último disco de Vandré (Das terras de Benvirá), gravado na França, em 1971.

Cantor se exilou na França e no Chile durante a ditadura. Foto: Elias Nassef/O Cruzeiro/EM/D.A Press
Cantor se exilou na França e no Chile durante a ditadura. Foto: Elias Nassef/O Cruzeiro/EM/D.A Press
São obscuras as teorias sobre a prisão e as sessões de tortura às quais teria sido submetido entre 14 de julho de 1973, quando retornou ao Brasil, e o dia 18 de agosto de 1973, dia no qual foi gravado enquanto descia de avião da Força Aérea Brasileira (FAB) - veementemente negadas por ele. Na entrevista gravada pelo próprio governo e veiculada na tevê, rechaçou qualquer ligação com partidos políticos e se comprometeu a não escrever canções com teor político.

As aparições públicas são discretas, à margem dos holofotes, mas a última surpreendeu até admiradores mais esperançosos. Em março de 2014, subiu ao palco no primeiro show no Brasil da cantora e ativista norte-americana Joan Baez - barrada pela censura em 1981 -, em São Paulo. "Eu vou convidar para o palco um mito. Ele não gosta disso, prefere ser somente um homem. Ele virá aqui, mas não vai cantar, vai ficar do meu lado", ela apresentou. Com o boné nas mãos e tão emocionado quanto deslocado, o ermitão foi aplaudido calorosamente. Voltou no dia seguinte e declamou Soberana, dedicado a São Paulo.

A sonoridade da receptividade remete ao impacto causado pelas letras impactantes e arranjos de apenas duas notas - como instrumentista, ele nunca foi exatamente um virtuoso - nos festivais de música da década de 1960, dos quais foi um dos ícones. Baluarte da música de protesto a partir de 1968, quando enlouqueceu o Maracanãzinho durante a execução de Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando), Vandré tem enorme contribuição no processo de incorporação das raízes sertanejas à música brasileira.

"Geraldo Vandré" (1964), "Hora de lutar" (1965), "5 anos de canção" (1966), "Canto geral" (1968) e "Das terras de Benvirá" (1971, na França, e 1973, no Brasil) são os LPS lançados por Vandré
"Geraldo Vandré" (1964), "Hora de lutar" (1965), "5 anos de canção" (1966), "Canto geral" (1968) e "Das terras de Benvirá" (1971, na França, e 1973, no Brasil) são os LPS lançados por Vandré

Muito antes do retorno do exílio e da reclusão, demonstrava traços de uma personalidade forte e difícil. Enfrentava séria dificuldade para seguir uma disciplina de composição ou ensaio e insistia em controlar o processo com modificações e improvisos. Inspirado, modificava letras e melodias constantemente, testando a aptidão técnica - e a paciência - dos colegas.

De volta ao Brasil, após exílio com temporadas na França e no Chile, Vandré morreu. No lugar, renasceu o paraibano Geraldo Pedrosa, filho de José Vandregíselo e dona Martha. Misantropo, o senhor de 80 anos compõe, toca e canta, mas faz questão de passar o aniversário longe dos fãs e da imprensa. A obra, no entanto, dificilmente será esquecida.

Relembre alguns momentos marcantes:

O garoto dos festivais
 (Foto: Sétimo Céu/Reprodução)
Vandré estreou nos concursos em 1965, aos 20 anos. Defendeu, no I Festival Nacional de Música Popular Brasileira, Sonho de um carnaval, do amigo Chico Buarque, sem chegar à final. Em 1966, os dois protagonizaram a acirrada disputa entre Disparada, defendida por Jair Rodrigues, e A banda, pelo próprio compositor, com prêmio dividido entre os dois. Em 1968, Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, levou a melhor do júri, mas o público preferia Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando): Cynara e Cybele foram vaiadas no Maracanãzinho por 10 minutos. Ouça o momento no qual ele pede respeito a Chico Buarque e Tom Jobim e depois é acompanhado na execução de Pra não dizer que não falei das flores.


Porte de drogas
 (Foto: Marcelo Melo/Acervo pessoal)
Se não há provas de uma prisão em 1973, é certa outra, na fronteira da França com a Bélgica (a foto é com amigos europeus). Vandré, o pernambucano Marcelo Melo e alguns amigos foram presos por portar seis gramas de haxixe (na época, foi publicado que seriam 60 gramas) e expulsos. "Procurei o consulado e tive uma audiência com o general Lira Tavares. Ele disse que eu tinha sido leviano em estar na companhia de Vandré", conta Marcelo, à época estudante de pós-graduação em agronomia. Ele participou das gravações de Das terras de Benvirá.

O último show
 (Foto: Franklin Correa/Divulgação)
Os pernambucanos Naná Vasconcelos e Geraldo Azevedo integravam o Quarteto Livre, junto com Franklin Correa e Nelson Ângelo. Acompanharam Vandré no último show, em Goiânia, em 10 de dezembro de 1968. "A gente tinha feito um grande show em Goiâna e estava esperando o empresário de Vandré para irmos para Brasília fazer o show. Ele telefonou e disse 'não venha, que caiu o AI-5'. Aí cada um correu, pulou para o lado que podia o mais rápido possível. Depois disso, nunca mais voltou a ser quarteto", recorda. No dia 14, começou interminável espera pelo próximo show.

Força aérea
 (Foto: Carlos Moura/CB/D.A. Press)
A relação de Vandré com a Aeronáutica intriga os defensores da tese das torturas. "Quando voltou do exílio, ele ficou doente e acabou atendido num hospital militar. A partir dali, alimentou relações com grupos far-dados", conta Vitor Nuzzi. Marcelo Melo já foi levado por ele a um quartel. "Era uma entrega de medalhas. Todo mundo o cumprimentava. Ele fazia um tratamento periódico no hospital da aeronáutica", revela. Em 1994, Vandré recitou Fabiana (feita para a FAB) durante homenagem ao filme A hora e a vez de Augusto Matraga, no Festival Brasília do Cinema Brasileiro.

Rei do Baião
 (Foto: Band/Divulgação)
O interesse pelas raízes musicais brasileiras e a origem nordestina o levaram a gravar Asa branca, de Luiz Gonzaga, no LP Hora de lutar – Feira de gado, do Rei do Baião e de Zé Dantas, foi registrada, mas incluída depois em compacto do Trio Marayá. "Asa Branca eu cantei como quem aboia mesmo, e a minha ideia era fazer isso à capela, somente a voz angustiada anunciando a rebelião. Essa foi uma reverência mesmo", contou, ao site Ritmo Melodia, em 2004. Gonzaga retribuiu. Lançou Pra não dizer que não falei das flores em um compacto, o único dele recolhido pela censura, e Fica mal com Deus, em 1971.

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