Intercâmbio
Músicos e fotógrafos se juntam e criam a Orquestra Pernambucana de Fotografia
Projeto inédito no estado será lançado na sexta-feira, 16 de outubro, em formato de livro-CD; ouça as faixas
Por: Luiza Maia - Diario de Pernambuco
Publicado em: 30/08/2015 18:25 Atualizado em: 15/10/2015 12:00
Enquanto uma mostra em cartaz na renomada National Galery, em Londres, apresenta músicas inspiradas em quadros de Paul Cézanne, Théo van Rysselberghe e outros pintores, um projeto instiga compositores pernambucanos – ou com forte relação com o estado – a criar a partir de obras de artistas visuais conterrâneos. Idealizada pelo fotógrafo Gilvan Barreto e com produção de Pupillo, da Nação Zumbi, e Berna Vieira, a Orquestra Pernambucana de Fotografia é formada por nove ensaios e nove canções sobre temas distintos.
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Apesar do ineditismo, a relação dos artistas com as outras linguagens é próxima. Ricardo Labastier compõe e toca ao vivo algumas músicas com instrumentos - e objetos - percussivos. Junio Barreto, Juliano Holanda e Fábio Trummer já assinaram trilhas sonoras de espetáculos de teatro, dança, cinema ou televisão. A primeira fotografia publicada de Priscilla Buhr está no encarte de Tocar na banda (2003), da Cumadre Fulozinha, banda da qual a irmã, Karina, era vocalista. Lira, ex-vocalista do Cordel do Fogo Encatando, é o responsável pela trilha sonora de documentário de Cláudio Assis sobre o artista plástico Rodrigo Braga – ambos integrantes do grupo regido por Gilvan. "Ressinto que a gente trabalhe tanto nas nossas caixinhas, nas nossas salas", confessa Braga.
A experiência de uma canção inspirada por um ensaio fotográfico, entretanto, é inédita para quase todos. Quando questionado, Beto Figueiroa, de pronto, respondeu nunca ter participado de projeto semelhante, mas acabou por recordar a parceria com Berna Vieira durante a existência do Canal 03, criado por ele, Mateus Sá, Luca Barreto e Jura Capela em 1997 e mantido por 10 anos. "A gente fazia projeções de slides em exposições, eventos, congressos de fotografias. Berna chegou a fazer mais de uma trilha para os trabalhos", conta.
O resultado da Orquestra Pernambucana de Fotografia será lançado pela Jaraguá Produções em outubro, em formato de livro, no qual cada ensaio terá cerca de 14 páginas, e um CD encartado. Mas os trabalhos já trilham caminhos próprios. Lira e Karina inseriram Desamar e Rimã nos álbuns O labirinto e o desmantelo e Selvática (ainda em produção), respectivamente. Bárbara exibiu Faz que vai em São Paulo e no Recife e Gabriel articula uma exposição, além de ter divulgado o trabalho na internet, como Beto Figueiroa. A esperança de Gilvan Barreto é que não só as obras, mas, principalmente, a ideia, gere frutos.
Marcas
Amigos desde a década de 1990, Gilvan Barreto e o vocalista da banda Eddie, Fábio Trummer, formam uma dupla. O regente da orquestra selecionou o ensaio e o texto O homem elegante, dedicado ao pai, morto em 2014. "Quando reescrevi, comecei a me distanciar do pessoal. É meu pai, mas é um homem, uma figura que partiu", pontua. Nas fotografias, palavras recortadas – como branco, azul, coroa de flores – foram tatuadas na pele do próprio artista. Em vez do pigmento, o sangue provocado pela agulha desvendam a mensagem. "Ele me passou um briefing e me deixou livre. Eu comecei por outro caminho, mas depois mudei. Foi fácil, porque a tristeza é um mergulho que torna você mais sensível que a alegria", explica o cantor, sobre A gente jazz no mesmo corpo. Era inevitável, pois ele também vivenciou a perda, no mesmo ano.
Arquétipos
Conterrâneos de Goiana, no litoral Norte pernambucano, o fotógrafo Beto Figueiroa e o cantor, instrumentista e compositor Juliano Holanda são parceiros de trabalho – o encarte do álbum A arte de ser invisível (2013) tem imagens clicadas por Beto, na casa do avó de Juliano. As primeiras fotografias do ensaio ExistenCidades já existiam, e o projeto foi ampliado durante viagens ao Pará, Rio Grande do Norte e Alagoas, além de Serrita, no Sertão pernambucano. Em meio às distintas paisagens, da praia à seca, os personagens não têm rostos. Apenas os animais têm a identidade revelada. "A ideia é mais o arquétipo, desconstruir o corpo. Pode ser eu, você", conta Beto. Nas letras, algumas paisagens ganham descrições literais, em um contorno poético. "É para ouvir vendo", conta o autor, sobre De certa maneira.
Irmãs, Priscilla e Karina Buhr acompanham de perto a carreira uma da outra. O primeiro trabalho profissional de Priscilla foi para o encarte do segundo CD do Cumadre Fulozinha, Tocar na banda (2003), da qual Karina era vocalista. A série de imagens Lento tem um quê autobiográfico. Retrata um novo ciclo profissional e pessoal na vida da fotógrafa, que cortou uma guia – simbólica, pois não tinha relação com religião – usada por ela no pulso durante cinco anos. "Usei o simbolismo da quebra. Não é muito concreto. São nuanes, como se fosse um relicário de histórias e sentimentos. Uma libélula morta dentro de um livro transmite a ideia de guardar a liberdade", conta Priscilla. Rimã, anagrama de irmã, foi composta em um dia. Mesmo sem pistas ou um texto explicativo, como outros fizeram, Karina escreveu sobre precisar aprender de novo.
Escuridão
Pio Figueiroa já era fã da Nação Zumbi, "desde moleque", conheceu os integrantes em meio aos trabalhos jornalísticos e acabou por se tornar amigo do grupo – além de já ter fotografado os mangueboys e dirigido o clipe Um sonho, estrelado por Lula e Ramon (filhos de Chico Science e Jorge du Peixe, respectivamente, e namorados), indicado ao Prêmio Multishow. A dupla foi a única a conversar sobre a proposta antes da criação, em quatro encontros pessoais e cerca de dois meses de trocas de mensagens via e-mail e WhatsApp. O enigmático escuro – representação poética também do silêncio, pausas, intervalo de notas – norteou os cliques de Sobre o escuro, durante as férias de Pio, que mora em São Paulo, em casa de praia e de campo em Pernambuco, e a composição de Samba escuro, com participação de Lula nos vocais.
Desamar
Gabriel Mascaro não clicou, mas pediu – e chegou a comprar – fotografias inusitadas com um forte significado implícito: retratos nos quais uma das pessoas teve o rosto cortado. "Eu chamo de cartografia do desafeto. A tesoura é um gesto de empoderamento, uma tentativa de ressignificar o passado", conta o diretor do filme Boi neon, selecionado para o Festival de Cinema de Veneza, na Itália. Às 13 imagens com cabeças decepadas e de fotografias das tesouras, ele agregou depoimentos dos donos. "Em geral, as pessoas fizeram também como gesto de afirmação. Minha pergunta é: com o buraco, a ausência não vira também uma presença?", reflete. Lira também traça questionamentos na letra de Desamar – "que sobrou do amor?". A faixa está em O labirinto e o desmantelo, lançado em abril, e o ensaio está no site do artista.
Interação
Durante o processo de produção, o ensaio de Bárbara Wagner em parceria com o marido, Benjamim de Burca, se transformou no vídeo Faz que vai, de 12 minutos, com quatro recifenses com menos de 24 anos. Negros e gays, eles são os primeiros da família a trabalhar com cultura. São passistas de frevo durante o carnaval e, no resto do ano, bailarinos de outros estilos, como o brega. Tchanna mescla o ritmo centenário ao funk. Bhrunno, à swingueira. Ryan, ao eletro. Edson, ao vogue, estilo de dança que incorpora elementos do desfile. A trilha sonora, apenas com instrumentos percussivos, foi desenvolvida pelos músicos Cícero Batom, Wellington Jamaica e Waltinho D’souza, da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, também na interseção entre os gêneros musicais. O trabalho de Bárbara já foi exibido em São Paulo e no Recife.
Natureza
A relação orgânica e estética entre a natureza e as formas humanas guiaram os cliques de Rodrigo Braga, em uma vila de pescadores no Cabo de Santo Agostinho, em junho de 2013. "Trata das formas da natureza, que se repetem, e da minha ação, que conduz o sentido. Em uma porção de barro vemelho, coloco uns gravetos e dou uma ideia de pulmão. Junto pequenos fragmentos de ossos com pedras", esclarece ele, que nasceu em Manaus, foi criado no Recife e reside no Rio de Janeiro há quatro anos. Quando criou Corpo duro, ainda não sabia que a música seria composta por Otto. O cantor e compositor amoleceu as firmes formas orgânicas na leve poesia de Pode falar cowboy.
Ideologia
Dois desafiadores e libertários grupos da década de 1970 são homenageados pela única junção de projetos não inéditos da orquestra. Oito fotos selecionadas do vasto acervo de Ana Farache – que serão lançados em livro no próximo ano – são combinadas com a canção O pirata, da lendária banda de rock psicodélico Ave Sangria. O ensaio, em preto e branco, foi realizado no pátio da casa onde Ana morava, em Olinda, próxima à sede do Vivencial. "Foi uma época muito difícil de se viver como queria, por conta da ditadura, e esse pessoal mostrou que era possível. Acho que foi importante a ousadia deles, num momento de muito preconceito e hipocrisia", opina ela. Amiga de membros dos dois grupos, ela comemora a junção. No projeto, a canção ganhou versão especial da cantora Isaar.
Última dança
Através do registro de um garoto, um casal arrumado para sair, uma dança a dois, capturada nas ruas do Recife Antigo, e sangue espalhado por escadarias, Ricardo Labastier reproduziu uma inquietação dele. "Toda vez que vejo bailes, salões de dança, me vem à cabeça a beleza, mas também os desfechos mais violentos, com sangue, morte até", revela. O ensaio, sem título, remeteu a inspiração do cantor e compositor Junio Barreto, em parceria com Pupillo, aos rituais de umbanda e candomblé em Última dança. "Porque eu vi as pessoas girando, dançando. A dança fica entreaberta. Pode ser alguém recebendo um santo. É uma dança, uma oferenda, mas pode ser a morte também", instiga Junio, que não tem religião e já assinou trilhas para teatro, dança e cinema, mas nunca compôs a partir de registros fotográficos.
>> OUÇA
Abaixo, ouça algumas faixas das gravações da OPEF. No link, ouça todas as canções.
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