Pais Dia dos Pais: filhos de Reginaldo Rossi, Ariano Suassuna, Samico, Lula Cardoso Ayres e Abelardo da Hora vivem entre o legado e a saudade Nomes de destaque na cultura pernambucana deixaram legado artístico precioso, administrado pelos filhos

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 09/08/2015 07:10 Atualizado em: 09/08/2015 14:56



Entre a produção de um painel e outro, Lula consegue um projetor emprestado para dar ao filho, em repouso médico, a chance de ir ao cinema sem sair de casa. Enquanto outras crianças jogam bola, Reginaldo interrompe as composições e chama o seu menino para tocar piano na sala de estar. Ariano encontra um caderno de desenhos de Manuel e o matricula numa aula de arte. Gestos comuns à paternidade, os sobrenomes, nem tanto. O primeiro, Cardoso Ayres. O segundo, Rossi, e o terceiro, Suassuna. No Dia dos Pais, as cenas na memória são revisitadas, a convite do Viver, por filhos de artistas falecidos e com trajetórias marcantes na cultura do estado.

Eles relatam momentos de intimidade, saudades e o legado imaterial. Narram o desafio de administrar, preservar e perpetuar a herança incomensurável - em quantidade de peças (alguns acervos superam as mil obras) e dimensão cultural. Recordam a convivência com a rotina de produção dos mentores em vida. Descrevem o pai, relembram o artista. Entre os cinco personagens, três seguiram carreira nas artes plásticas ou cênicas. E não houve quem se afastasse do patrimônio que, fazem questão de frisar, pertence à cultura e à memória afetiva de todo o país.

Dantas Suassuna, artista plástico
“Não deu tempo de fazermos tudo. Nunca dá.”

Dantas Suassuna vai publicar livro inédito de Ariano. Foto: Rafael Martins/Especial para o DP/DA Press
Dantas Suassuna vai publicar livro inédito de Ariano. Foto: Rafael Martins/Especial para o DP/DA Press

ARIANO, PAI
Quando Manuel Dantas era adolescente, Ariano Suassuna (1927 - 2014) encontrou um antigo caderno de desenhos do filho e se impressionou com os traços. Intermediou matrícula do garoto no ateliê do mestre José de Barros e, mais tarde, temporada de aprendizado na oficina de Francisco Brennand. Aconselhava os filhos a trabalhar no que gostassem, sem esperar recompensas. Nos anos 1980, Dantas deixou o Recife para se distanciar de Ariano. Precisava encontrar a própria identidade artística, sem influência do mestre. Depois, produziu os cenários de várias das famosas “aulas-espetáculo.” O pai conversava todos os dias, à mesa do café, sobre família, política e arte. Dantas Suassuna diz sentir falta dos posicionamentos lúcidos sobre a situação do país. “Era carinhoso, leal e justo.” Hoje, usa a palavra “encantamento” para se referir à morte de Ariano - notícia que o pegou de surpresa há um ano. Diz sentir que, após a perda, se aproximou ainda mais da figura paterna, através de memórias e do contato com as obras. Os dois planejavam viagem pelo Sertão, pouco antes da despedida. “Não deu tempo de fazermos tudo. Nunca dá.”

ARIANO, ESCRITOR
Dantas Suassuna se mudou, em definitivo, para a casa do pai, na Zona Norte do Recife, após a morte de Ariano. Hoje é ele quem senta na cadeira de balanço onde o pai costumava conceder entrevistas e conversar com amigos. Os cômodos estão conservados, todos como Ariano deixou. Quanto ao legado, Dantas é pródigo: “É uma herança que não me pertence. Pertence ao Brasil.” Dedica-se à publicação do romance póstumo O jumento sedutor, cuja leitura ainda não concluiu. “Me emociono muito, então não tenho pressa. Não cataloguei tudo.” Está revendo desenhos assinados pelo pai, que podem ser compilados. Em abril passado, promoveu a exposição Em nome do pai, com quadros que remetem ao universo de Ariano. Um festival deve ser montado no Recife em 2015, em homenagem às seis décadas da obra Auto da compadecida. E, no Sertão da Paraíba, em Aparecida, será organizado o Museu Armorial dos Sertões. Ariano e Dantas haviam concebido uma pedra esculpida em Taperoá (PB), a Ilumiara Jaúna, algo que o filho pretende concluir sozinho em breve.

Lula Cardoso Ayres, engenheiro
“Diziam até que o nosso apego era exagerado.”

Lula Cardoso Ayres Filho, no painel do Cinema São Luiz. Foto: Guilherme Veríssimo/Especial para o DP/DA Press
Lula Cardoso Ayres Filho, no painel do Cinema São Luiz. Foto: Guilherme Veríssimo/Especial para o DP/DA Press

LULA, PAI
Lula Cardoso Ayres Filho enfrentou sérios problemas ósseos na infância. Passou anos enclausurado em casa. O pai, Lula Cardoso Ayres (1910 - 1987), tomava emprestado o projetor de um primo, conseguia filmes raros e promovia sessões para divertir o garoto, todos os fins de semana. “Isso define bem quem foi meu pai. Foi o que deu origem à minha paixão pelo cinema, tema que pesquiso até hoje”, conta Lula. O artista plástico chegou a levar desenhos do filho de oito anos para exposição autoral no Masp, em São Paulo. Incentivava a inclinação artística que o herdeiro não levou adiante. As obras eram produzidas em casa, o que facilitava a convivência intensa. “Minha mãe até brincava, dizendo que eu era filho de chocadeira, que só queria saber do pai. Diziam que o nosso apego era exagerado”, recorda. Nas datas comemorativas, fazia questão de sentar-se ao lado dele durante todo o dia. “Não nos desgrudávamos.”

LULA, ARTISTA
O pintor, muralista e cenógrafo Lula Cardoso Ayres aprendeu em Paris, nos anos 1920, que a criatividade precisava ser aliada a muito estudo. Repassou a lição aos filhos João (já falecido) e Lula. O último fundou, em 1993 o Instituto Lula Cardoso Ayres, em Piedade, extinto em 2007. A falta de políticas públicas, segundo Lula (filho), anula qualquer possibilidade de as atividades serem retomadas. As obras foram recolhidas e estão conservadas em outro espaço, sem acesso ao público. Concessões são feitas para exposições eventuais. “Sou cuidadoso na identificação de peças originais. Se me chamam para averiguar, sei dizer se são legítimas e em que época foram feitas”, conta Lula. O painel permanente no Cinema São Luiz, um dos mais famosos do artista, é o preferido. Algumas obras, cedidas, são frequentemente expostas na Ranulpho Galeria de Arte, no Centro do Recife, e no Museu de Arte Contemporânea (MAC), em Olinda. “Papai se foi aos 76 anos, ainda tinha muito a produzir.”

Abelardo da Hora Filho, advogado e administrador
“Fiz da preservação do legado dele o trabalho da minha vida.”

Abelardo da Hora Filho administra o patrimônio do pai, Abelardo da Hora. Foto: Guilherme Veríssimo/Especial para o DP/DA Press
Abelardo da Hora Filho administra o patrimônio do pai, Abelardo da Hora. Foto: Guilherme Veríssimo/Especial para o DP/DA Press

ABELARDO, PAI
Nos últimos anos de vida, Abelardo da Hora (1924-2014) chamou o filho, de mesmo nome, para conversar. Disse que inverteriam os papéis: “A partir dali, eu seria o pai e ele, o filho.” Na infância, Abelardo (filho) achava curioso o trabalho do pai, diferente do que faziam os pais de todos os colegas, com funções mais burocráticas. “Ele fazia arte e eu sabia que vivíamos daquilo.” Generosidade e bom humor foram, para ele, as características mais marcantes do mentor. “Foi preso inúmeras vezes pela ditadura, torturado inclusive, mas se manteve alegre ao longo da vida”, recorda. Abelardo se refugiava no ateliê de casa durante horas, diariamente, e assobiava (ou cantarolava) enquanto moldava novas obras. Os filhos tentavam manter o silêncio e, depois, eram convidados a opinar sobre as estátuas em produção. Nos últimos dez anos de vida, o artista reunia a família aos domingos, quando recitava textos de Guerra Junqueiro a Edgar Alan Poe, além dos de sua própria autoria. “A figura paterna de Abelardo sempre norteou a minha vida, pelos exemplos de solidariedade, justiça e retidão.”

ABELARDO, ARTISTA
Abelardo da Hora deixou mais de 1,2 mil obras sob os cuidados da família, especialmente do filho homônimo. São esculturas, gravuras, poemas. Em 2004, foi criado o Instituto Abelardo da Hora, em esquema de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), responsável pela preservação do acervo. Abelardo da Hora Filho planeja, há mais de dez anos, transformar o ateliê da Rua do Sossego, Centro do Recife, em museu aberto ao público. Por enquanto, as obras são expostas em mostras esporádicas. “Ele pediu que mantivéssemos o acervo todo reunido e, sobretudo, ao alcance do povo pernambucano.” A partir do dia 12, o Recife recebe a inédita Abelardo da Hora 90 anos: Vida e arte, com 110 peças, na Caixa Cultural, no Centro. Advogado e administrador, Abelardo da Hora Filho abandonou a carreira burocrática para se dedicar ao legado do pai. “Fiz desse o trabalho da minha vida”, diz. No dia a dia, se divide entre visitas ao ateliê e reuniões para promover a obra, principalmente através de exposições, Pernambuco afora.

Roberto Rossi, ator
“O legado dele está na boca do povo”

Roberto e Reginaldo Rossi seguiram ramos diferentes, mas ambos no campo artístico. Foto: TV Globo/Divulgação
Roberto e Reginaldo Rossi seguiram ramos diferentes, mas ambos no campo artístico. Foto: TV Globo/Divulgação

REGINALDO, PAI
“Perdi a conta de quantas vezes acabávamos abraçados um ao outro ouvindo música até alta madrugada. Por vezes, em meio a olhos marejados e choros”, recorda Roberto Rossi, ator. Atribui à infância de Reginaldo (criado pela avó) a eventual falta de traquejo no papel de pai. Levou anos para entender que, sentados ao piano, vivenciavam momentos de extrema conexão. “Essa era a nossa brincadeira de pai e filho, como jogar futebol ou ir à praia.” Ao contrário do que o cantor performático sugeria, Reginaldo era tímido, reservado. Roberto subia à mesa da sala e imitava o músico, sem que ele visse. “Sempre houve muito carinho, sim, por maior que fosse a distância entre nós. Nossas brincadeiras eram muito nossas, só nós entedíamos. Para mim, era o céu quando nos sentávamos no chão, com os vinis espalhados pela sala, e começávamos a escolher aleatoriamente o que ouviríamos”, conta Roberto.

REGINALDO, CANTOR
Reginaldo Rossi (1943-2013) começava a compor de repente. “Do nada, pedia o violão, o gravador, um caderninho e um lápis e, quando eu via, ele já estava rabiscando as letras e notas, abraçado ao violão, dedilhando em busca da melhor melodia”, conta Roberto. Traçava, nos ensaios, roteiros que não chegava a seguir nos shows. Montava o repertório no palco. “Ele se alimentava do que o povão, como ele gostava de dizer, estava no clima de escutar”, conta o filho, que pretende organizar, no ano que vem, uma biografia, em parceria com algum escritor. Redigirá, ele mesmo, um único capítulo da obra. “Alguém ficaria encarregado do texto e de fazer a pesquisa comigo.” Quer montar também coletânea de sucessos. “Um mimo, um regalo para os fãs”, descreve. “O legado dele está na boca do povo.” O uso de imagem e a reprodução das músicas são acompanhados por Roberto Rossi, que vive no Rio e, se necessário, aciona advogados para preservar a obra. “É preciso vigilância constante.” Os objetos deixados no Recife, porém, não são visitados com frequência.

Marcelo Peregrino, artista
“Tudo que remete a ele é bom.”

Marcelo Peregrino dá continuidade à arte do pai, também ensinada ao neto de Gilvan Samico. Foto: Rodrigo Silva/Especial para o DP/DA Press
Marcelo Peregrino dá continuidade à arte do pai, também ensinada ao neto de Gilvan Samico. Foto: Rodrigo Silva/Especial para o DP/DA Press

GILVAN, PAI
Muitos anos se passaram antes que Marcelo Peregrino percebesse a dimensão do talento do pai. “Eu era maloqueiro de Olinda, vivia na rua, não dava atenção.” Gilvan Samico (1928-2013), pintor, desenhista e xilogravurista, levava o filho ao campo, onde bebiam vinho e conversavam sobre arte e trivialidades. Incentivou Marcelo a se engajar com as gravuras - vocação herdada pelo filho e, mais recentemente, pelo neto, Daniel. Em casa, Gilvan era inventivo: reformava e adaptava tudo, do corrimão das escadas às gavetas onde guardava as pinturas. Dizia que, se fosse de outra espécie viva, seria um cupim. “A convivência em família era bastante intensa. Eu chegava em casa e ele havia pintado meus quadros, mexido em minhas telas”, lembra Marcelo. Gilvan Samico, porém, não era de discussão. Se o filho gostasse, as intervenções eram aceitas. Se não, que pintasse por cima. E tudo bem. “A saudade é enorme. Mas tudo que remete a ele é bom.”

GILVAN, ARTISTA
As gavetas de Samico continuam, em parte, intocadas. Há bastante material à espera de revisão e catalogação. Marcelo Peregrino pretende construir, junto com a irmã, Luciana, o Instituto Gilvan Samico, sem previsão de inauguração. Funcionaria em Olinda, na casa onde o artista viveu e onde o ateliê continua preservado, da forma como ele o deixou. A viúva, Dona Rita, ainda mora lá. Por enquanto, os herdeiros não têm ideia da quantidade de obras deixadas pelo pai. Visitam o espaço com frequência, mas sem intervenção. “O material está todo preservado, com inúmeras gravuras inéditas. Algumas recentes, outras antigas e nunca expostas. Ainda não contabilizei”, explica. As últimas 20 produções de Gilvan Samico estão à venda, mediante negociação com a família. E o acervo, disponível para exposições. As pinturas do pai e do filho entram em cartaz no dia 12, no Rio de Janeiro, na mostra coletiva Retratos do Brasil. No Recife, ainda não há exposição prevista. 

Veja trechos dos depoimentos no vídeo abaixo:



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