Música

Brega-funk em revisão: MCs pernambucanos inspiram tese de doutorado e dão voz à periferia

Uma contundente tese de doutorado produz conclusão à revelia do senso comum: as canções revelam discurso potente de ascensão social, liberdade amorosa e engajamento político

Publicado em: 16/08/2015 10:30 | Atualizado em: 15/08/2015 23:51

Vertinho faz média de 12 shows por semana. Foto: Guilherme Veríssimo/DP/DA Press

A corrente de ouro no pescoço é símbolo do que os MCs chamam de “estilo ostentação”, o mais popular entre eles nos últimos anos. Serve como cartão de visitas: deixa claro o patamar ao qual chegaram, os bens que conquistaram. Impõe respeito. “Os naipes mudaram. É tempo de corrente de ouro e camisa de botão”, diz Everton da Silva Lima, o MC Vertinho. Assim como outros MCs pernambucanos - a exemplo de Leozinho, Elloco, Schevchenko e Cego - garante ter abandonado as letras estigmatizadas, que incitavam o sexo e falavam da violência nas comunidades. O tempo das correntes de ouro é também, segundo eles, de letras mais racionais. Algo que a professora e pesquisadora Jaciara Gomes, da Universidade de Pernambuco (UPE) e do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da UFPE, já cogitava em 2009, quando decidiu investigar o funk (futuro brega-funk, mutação natural e gradativa do movimento) nas periferias pernambucanas.

As investigações de Jaciara deram corpo à tese de doutorado intitulada Tudo junto e misturado: violência, sexualidade e muito mais nos significados do funk pernambucano, um recorte inédito no estado. Através da análise de 15 letras de MCs da Região Metropolitana do Recife, a pesquisadora demonstra que a música produzida na periferia vai além dos estereotipos que a relacionam à violência e ao apelo sexual. Servem como denúncia de desigualdades sociais, dão voz às insatisfações dos que vivem às margens e, sobretudo, funcionam como forma de ascensão. “Não se trata só de erotismo e incitação à brutalidade. Se ficamos presos a esses estereotipos, não percebemos que aquilo que dizem é, sim, um posicionamento ideológico.”

A pesquisa, do tipo qualitativa, é dividida em cinco capítulos e destaca a análise de canções com forte carga temática de violência e sexualidade. “Consideramos as mais tocadas em carrinhos de CD pirata e em festas públicas, especialmente na Zona Norte”, explica a professora, incentivada, inicialmente, por alunos da rede pública que também atuavam como MCs. “O quarto espelhado do jeito que a gente quer. Tá todo mundo bebo e tem rodízio de mulher”, dos MCs Metal e Cego, enquanto ainda eram parceiros, está na lista. Letras mais “amigáveis” também são incluídas como contraponto, a exemplo de O bonde vai descer, do MC Leozinho, que diz: “Meu funk é paz, justiça, amor e união.”

Para Jaciara, embora o funk e o brega-funk não tenham, historicamente, o compromisso como gêneros musicais socialmente engajados (como é o caso do hip hop), eles clamam por liberdade. “E nisso, surge o engajamento político e social”, explica. O movimento de legitimação da periferia pode ser comparado, segundo Jaciara, com o provocado pelo grupo Racionais MC’s, em São Paulo. Para o rapper paulista Emicida, também conhecido pela manifestação ideológica através da música, qualquer gênero pode ser engajado. “A coisa mais pobre que a gente pode fazer é achar que só o hip hop pode falar das mazelas e dar voz à periferia. Há um caldeirão de músicas e culturas diferentes nas comunidades de todo o Brasil. Todas legítimas”, diz o músico.

Os MCs Cego, Elloco, Shevchenko e Vertinho (da esquerda para a direita) dão voz às periferias pernambucanas. Fotos: Nando Chiappetta, Ricardo Fernandes e Guilherme Veríssimo/DP/DA Press


Os movimentos do funk e do brega se desdobram, ainda, em transformação social. “É como se, antes, os rapazes da periferia só ‘subissem na vida’ jogando futebol, virando craques. Ser um MC de sucesso é uma nova oportunidade”, avalia o pesquisador Jeder Janotti Jr., da Pós-Graduação em Comunicação da UFPE. Ele aponta as transformações no processo de produção e consumo da música, além de políticas públicas recentes, como catalisadores dessa nova cena, na qual os MCs são protagonistas. Entre 2011 e 2012, anos de ascensão para o brega-funk pernambucano e para o estilo ostentação, o crescimento médio da renda real no Nordeste subiu 8,1% acima da inflação. No Brasil, esse crescimento foi de 5,8%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Enquanto a academia debate o tema, Vertinho, Cego, Elloco, Schevchenko, Leozinho e afins desfilam como ídolos nas ruas das comunidades (a maior parte na Zona Norte do Recife) onde se projetaram. Crianças e jovens pedem fotos e reproduzem as coreografias dos clipes, todos estourados no YouTube. Os MCs cantam a periferia que quem está de fora não conhece. Se perguntados sobre a migração para um bairro “nobre”, devolvem sempre - e não sem espanto - com outra pergunta: deixar a periferia por que?

>> UMA CABEÇA, UMA TENDÊNCIA


Vertinho canta a ostentação e grava clipes luxuosos na periferia. Foto: Guilherme Veríssimo/DP/DA Press

A OSTENTAÇÃO >> Mc Vertinho

Autointitulado como o primeiro MC a ultrapassar a marca do 1 milhão de acessos em clipe divulgado no Youtube (Mulher do patrão, em parceria com MC Dinho, hoje com mais de 2 milhões de views), Everton da Silva Lima paga as contas com rimas desde os 14 anos. Som paredão (999 mil views) e Caidinha das novinhas (331 mil views) estão entre os hits. Detido em junho passado, acusado de estupro de vulnerável (um vídeo postado na internet mostrava performance erótica do artista, durante show no Recife, com pré-adolescente de 12 anos), diz que agora produz brega-funk com letras mais conscientes. Aderiu à ostentação.

“Corrente de ouro, camisa Dudalina de botão, estilo New York… isso dá reconhecimento, ajuda a Zona Sul a nos respeitar”, diz. Letras negociadas em parceria com artistas como Wesley Safadão e Gabriel Diniz “bombam” em boates da classe média alta e, para Vertinho, revelam preconceitos. “São minhas letras que tocam lá [nas casas de festa da Zona Sul], mas eles não querem dizer que também vêm aqui [na periferia] me ouvir.” Se orgulha de, aos poucos, penetrar nos ambientes elitizados. Clipes extravagantes, com carros importados e roupas de grife, mostram a que veio. O relógio de pulso e as correntes são de ouro, comprados com a renda (não revelada) de 12 shows semanais, em média. “Quanto mais eu ostento, maior é meu retorno.”

MC Cego faz letras sob encomenda para bandas de forró. Foto: Nando Chiappetta/DP/DA Press

O ROMANCE >> Mc Cego
Hugo Allyson, o MC Cego, evita o termo “novinha” - popularizado em parceria com MC Metal em 2011, com o hit Tá querendo o que? (mais de 1 milhão de views no Youtube). “Meu negócio agora é romance”, define, citando como exemplo as novas Bateu a saudade e Chorei demais. Vendia milho, frutas e maçãs do amor na feira pública de Casa Amarela, Zona Norte do Recife, antes de se tornar MC. Agora comanda produtora própria, a Tudo Nosso, e agencia novos talentos do brega e funk locais. A fim de atingir novo público, fora da periferia, adotou looks mais sóbrios e corte de cabelo comportado.

“Dizem que frevo é cultura. Mas se um turista chegar ao Recife, não vai ouvir frevo, que só toca no carnaval. Vai ouvir brega, brega-funk, então isso é cultura também”, analisa. Diz não entender a resistência das classes de poder aquisitivo superior. “Então, para eles, se uma banda famosa de forró toca as nossas letras, tudo bem. Se nós mesmos tocamos, não é bom. Qual o sentido?”, questiona. Ao contrário do início da carreira, quando se dedicava exclusivamente a animar baladas com letras inspiradas no funk carioca, MC Cego quer falar de amor. “Escrevo sobre saudade, romance, a mulher amada. É uma nova fase.” Ele faz, em média, oito shows por semana.

Mc Elloco e MC Shevchenko cantam a rotina da comunidade. Foto: Ricardo Fernandes/DP/DA Press

A COMUNIDADE >> Mc Shevchenko e Mc Elloco
Cleiton José da Silva, o MC Elloco, e Robson Rodrigues, o MC Shevchenko, começaram a compor em 2008, com coreografias fáceis (os “passinhos”) e letras dedicadas à rotina e às gírias da periferia, nas proximidades do Arruda, Zona Norte do Recife. Shevchenko é homenagem ao jogador de futebol ucraniano. Elloco, apelido dado pelos vizinhos na infância de Cleiton, diante das “traquinagens” dele. Braba de milionário, Sou favela e a recente Ei, aqui ó estão entre as mais populares da dupla, que cumpre agenda de seis shows semanais. Juntos, criaram marca de roupas e acessórios própria, a 24 por 48 - “uma mistura de ostentação e estilo de jogador”, define Elloco. O dia a dia na comunidade é a principal fonte de inspiração. “Gostamos principalmente de relembrar a fase de moleques, que todo garoto da periferia vive”, diz Shevchenko.

Entre o assédio dos fãs nas ladeiras do Alto do Pereirinha, no Arruda, e a entrevista à reportagem, a dupla se diverte. “Onde tem festa, nós estamos. Somos a festa”, fala Shevchenko, entre risos. Um dos clipes mais famosos, Sou favela, foi gravado com o campinho de futebol da comunidade ao fundo. “Os meninos pequenos olham o nosso trabalho e pensam: se eles conseguem, por que eu não consigo? E isso é massa!”, reflete Elloco. Para ele, vários ritmos hoje bem aceitos na sociedade (como o sertanejo) também já foram alvo de discriminação. “Nossa música está em toda parte. Não adianta ignorar.”

O filme Amor, plástico e barulho reforça que o brega não é "baixa cultura." Foto: Antonio Melcop/Aroma/Divulgação

>> UNGIDOS PELA TECNOLOGIA

A discussão em torno do brega-funk produzido na periferia e sua aceitação nas classes sociais mais abastadas vai além da música: é permeada pela ascensão da cultura periférica em geral. É o que pensa o professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Thiago Soares. “Tudo isso sempre existiu, a realidade e os costumes que inspiram as letras. A diferença é que agora, graças à internet e aos canais de divulgação alternativa, o que se faz na periferia é visto em toda parte”, explica. A internet, segundo ele, não pode ser ignorada: foi fundamental no processo de ascensão dos MCs.

“Tecnologias como a banda larga e os smartphones com câmeras potentes não são mais ícones de luxo. Isso facilita a captação de material audiovisual de qualidade, bem como a disponibilização dele no Youtube”, diz Thiago. Além dos vídeos e da interação direta com fãs nas redes sociais, outra estratégia é a gravação e distribuição independente de CDs, custeadas com cachês dos shows - no início da carreira, estimado por produtores e empresários entre R$ 200 e R$ 4 mil por hora - ou com propagandas vendidas a pequenos comerciantes da periferia. “Há, ainda, os DJs parceiros, que popularizam o brega-funk nas casas noturnas. Pedem as músicas ou baixam diretamente da internet, nossa principal ferramenta”, explica Christian Douglas, que produz, entre outros, Afala e Case e Meninos da Net - alusão óbvia ao ambiente virtual onde ganharam fama. Thiago Gravações, também produtor do ramo, mantém canal no Youtube com mais de 96 mil inscritos. “É assim que ganhamos espaço. E ainda vamos conquistar muito mais. O sucesso migra da web para a vida real”, sentencia.

Produções audiovisuais também sinalizam, no cinema, a projeção dos gêneros brega e funk, ajudando a desconstruir estereotipos. Amor, plástico e barulho, lançado este ano e dirigido pela artista plástica Renata Pinheiro, constroi clima de fantasia em torno do brega e reafirma que o estilo foge ao estigma de “baixa cultura.” Em fase de edição, o curta Estás vendo coisas, projeto de Bárbara Wagner contemplado no Funcultura de 2013, deve chegar ao público nos próximos meses. “São os bastidores do movimento brega, da concepção das letras e coreografias”, explica a diretora. O gênero foi escolhido por, assim como o funk e o brega funk, reforçar a visibilidade das classes emergentes na última década.


Jaciara Gomes se inspirou em alunos para pesquisar sobre o funk. Foto: Facebook/Reprodução
>> DUAS PERGUNTAS: Jaciara Gomes, professora e pesquisadora

Esses músicos sugerem a prática do sexo (ou mesmo da violência) atribuindo, muitas vezes, a interpretação ao leitor/ouvinte. Como você vê esse “repasse” da responsabilidade?
Violência e prática do sexo são/foram sugeridas em diferentes estilos musicais e em todas as épocas não sendo portanto exclusividades do funk-brega. Podemos compreender bem isso se lembrarmos de algumas letras, de artistas como Sidney Magal (Se te agarro com outro te mato/ Te mando algumas flores  e depois escapo), Gustavo Lima (Gatinha assanhada/ cê tá querendo o que/ cê tá querendo o que/ eu quero mexer/ eu quero mexer), Michel Teló (Nossa, nossa/ assim você me mata/ ai se eu te pego/ai, ai se eu te pego). Quanto a não se comprometer com o dito, deixando para o interlocutor (ouvinte, leitor...) a responsabilidade da interpretação, também estamos diante de uma estratégia linguístico-discursiva que não é exclusividade do funk. Parece-me mais interessante pesquisar por que e como esses aspectos são apontados apenas, ou com maior ênfase, nesse estilo.

Você ingressou, em 2005, na Secretaria de Educação do estado de Pernambuco. Muitos dos seus alunos eram funkeiros, inclusive compositores. Eles foram a inspiração inicial para as suas pesquisas? O que lhe ensinaram sobre esse gênero musical?
Isso mesmo, foi a partir do contato com eles que decidi pesquisar o tema. No começo, os mais envolvidos com o funk não se interessavam muito por minhas aulas. Então, busquei saber do que eles gostavam e descobri que, além de frequentar os bailes funks, alguns eram compositores (MCs). Foi a porta de entrada para o mundo deles. Levavam CDs para mim, cantavam e contavam suas participações nos bailes. Aspiravam o sucesso e o sucesso para eles era o MC Leozinho do Recife, o grande ídolo.

>> DEPOIMENTOS
No vídeo abaixo, confira depoimentos dos MCs Vertinho, Shevchenko, Elloco e Cego sobre a música produzida na periferia, o preconceito e a ascensão social.


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