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Música "As pessoas cantam música de preto, mas fecham o vidro do carro nos sinais", diz Emicida; confira entrevista Em turnê de divulgação do álbum Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa - fruto de viagem à África - o músico fala sobre preconceitos, ideologias e projetos musicais

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 30/08/2015 08:10 Atualizado em: 28/08/2015 18:51

Emicida planejada, há muito, a viagem ao continente africano. Foto: José de Holanda/Divulgação
Emicida planejada, há muito, a viagem ao continente africano. Foto: José de Holanda/Divulgação

Enquanto divulga o novo álbum Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa - disponível por streaming no Deezer, no Spotify e no Radio - o rapper paulista Emicida aproveita para desconstruir preconceitos e levantar debates sobre mazelas sociais. Em entrevista ao Viver, falou sobre o engajamento ideológico, as inspirações do disco - fruto de viagem à África - e a produção de documentário nos moldes do clipe Boa esperança. Confira:

>> ENTREVISTA
“As pessoas cantam música de preto, mas fecham o vidro do carro nos sinais, o que é horrendo. É esse tipo de barreira que eu tento quebrar.”

A viagem rumo à África era um projeto antigo? Já havia estudado essa possibilidade antes? O que o impulsionou a realizar esse plano agora?
Eu tinha sonhado com essa parada, mas como uma coisa de pesquisa. Mas pintou essa possibilidade, então decidimos que o disco seria fruto dessa viagem. Tivemos a oportunidade de alugar um estúdio lá, pude dar minhas impressões sobre o lugar. Foram 20 dias, entre Cabo Verde e Angola. Sou um sortudo. Não tinha cronograma, nem orçamento para permanecer, então tive que voltar e finalizar o disco no Brasil.

O álbum tinha que conversar com o Brasil. A ideia foi nossa, antiga, a gente acredita que é importante falar sobre os ancestrais. Entretenimento e as aulas de historia sempre superficializam a contribuição dos afrodescendentes no Brasil, o papel dos negros. Falamos da favela, da quebrada. Agora nós queríamos ir mais fundo, às raízes. As pessoas que inspiram nossa música são descendentes dos africanos escravizados. Quisemos falar sobre eles. Os europeus e a colonização cortaram alguns dos nossos laços.


Você gravou com músicos locais, da África? Como os conheceu? Como funcionou esse contato, essa parceria?
Eu ouvia, há algum tempo, músicas de Angola e de Cabo Verde. Pesquisamos na internet. Buscamos contatos. Chegamos a esses contatos, que se destacavam no trabalho desenvolvido na região. Montamos um trio fenomenal. Sentimos pela atmosfera dos lugares que Cabo Verde era um lugar mais tranquilo, Angola era mais pesado. Quisemos misturar. Músicas como Madagascar e Chapa têm cordas maravilhosas, que remetem ao chorinho. Nos influenciamos muito por percussão, com elementos como o semba, que deu origem ao samba. E o tianda, que as pessoas acreditam que é um samba rock. No Brasil, entendemos como samba rock. Mas na raiz é tianda.

“Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” (Laboratório Fantasma/Natura Musical). Como chegou ao título? Você diz que sinalizam uma lista de coisas com as quais se deparou por lá. De que forma te marcaram, essas especificamente, a ponto de se tornarem título do projeto?
A energia das crianças é a coisa mais pura que você pode ter. Eu pude conviver com essa energia, com esse olhar. Eu vi isso nas crianças. Eu queria falar com elas, falar sobre elas. Eu via os batuques, as batuqueiras estavam dançando o batuque e eu as observei, sem a visão sexista que temos no Brasil. E pude ver que aqueles quadris rebolavam como mulheres livres, não para atrair os homens. Aquilo me chamou a atenção. Era um movimento livre, parecia uma espécie de oração. E a referência aos pesadelos é para reforçar que, no meio de todos os pesadelos, as pessoas ainda seguem suas vidas.

Emicida fala sobre preconceitos, injustiças sociais e raízes africanas. Foto: José de Holanda/Divulgação
Emicida fala sobre preconceitos, injustiças sociais e raízes africanas. Foto: José de Holanda/Divulgação


Haverá turnê de divulgação pelo país, fora os shows programados em São Paulo? Os angolanos que participaram do projeto também participarão de shows no Brasil?
A turnê estreia em São Paulo e segue pelo Brasil, este ano ainda. Não mais em agosto. Ainda não temos data em Pernambuco. Os músicos africanos, a princípio, não participarão. Vou tocar a turnê com a minha banda de sempre.

Foi divulgado um minidocumentário com os bastidores do clipe Boa esperança. Haverá outros minidocumentários ou um grande documentário que contemple todo o álbum?

A gente vai soltar um grande documentário, este ano ainda, com os bastidores da produção do álbum em geral. Cada clipe inspira um minidocumentário, mas não há tempo hábil para isso, nem estava nos planos. Boa esperança é que foi muito intenso e queriamos mostrar de onde vieram as ideias. Precisávamos desse debate. O documentário está em fase de negociação com algumas emissoras, mas ainda não há previsão de lançamento.

O poeta pernambucano Marcelino Freire foi convidado para interpretar os versos de Trabalhadores do Brasil. Como se deu essa escolha? Qual a reação dele ao convite? O poema introduz alguma das músicas?
Marcelino organiza a Balada Literária em SP. Já havíamos nos encontrado em outros momentos, apresentados por uma amiga em comum. Não parei mais de acompanhar o que ele faz. A principio não havia esse poema no disco. Mas depois, por acaso, vi ele recitando esse poema no Youtube e o convidei para participar. Tinha tudo a ver com a música Boa esperança. Com a interpretação fantástica que ele tem. O resultado foi incrível, mais do que o esperado. Ele deixou à nossa disposição três interpretações do poema. Todas brilhantes, foi difícil escolher.

Boa esperança denuncia abusos nas relações de trabalho e na sociedade em geral. Cantar as mazelas sociais é, para você, um dever da classe artística? Deveria ser encarado assim? Quais os resultados mais perceptíveis? Esclarece a população?
Eu não gosto de dar obrigação aos outros. Cada um tem que fazer o que é natural. Dentro da minha construção artística, tem espaço para isso. Existe sempre essa preocupação. Fazer sem vínculo com o tema resulta em algo superficial. Para mim, soa natural com meu trabalho, com o meu pensamento. Queria falar da questão racial no Brasil, um problema que as pessoas ignoram, menos nós. Eu sugiro, com isso, que as pessoas olhem o mundo com os olhos dos outros. E as pessoas se veem representadas ali. As que se sentem esquecidas. As pessoas se veem ali. O hip hop tem essa característica: não esquecer.

Em Pernambuco, os movimentos do funk, brega e brega-funk têm dado voz à periferia. Fazem lembrar o hip hop paulista. Você acredita que a música produzida nas comunidades ainda sofra resistência? Ou sente o mercado mais aberto a essas criações?
O mercado está aberto ao que ele consegue comercializar. A periferia não pode ascender sem que a periferia ascenda junto com ela. É um paradoxo. As pessoas cantam música de preto, mas fecham o vidro do carro nos sinais, o que é horrendo. É esse tipo de barreira que eu tento quebrar. As pessoas querem se apropriar da cultura negra só até certo ponto. Isso é absurdo e é contra isso que eu luto.




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