Diario de Pernambuco
Busca
Música "No Brasil, as pessoas só escrevem sobre o que gostam", ataca autor de livro sobre o sertanejo Em "Cowboys do asfalto", historiador Gustavo Alonso aborda o surgimento, as mudanças e os preconceitos enfrentados por artistas do gênero musical mais popular do país

Por: Luiza Maia - Diario de Pernambuco

Publicado em: 29/07/2015 19:55 Atualizado em: 29/07/2015 19:20

Autor planeja sessão de autógrafos no Recife no segundo semestre. Foto: Record/Divulgação
Autor planeja sessão de autógrafos no Recife no segundo semestre. Foto: Record/Divulgação

Entre as paredes da Maison du Brésil de Paris, onde morava com outros estudantes de doutorado, surgiu a inquietação impulsionadora das primeiras pesquisas de Gustavo Alonso sobre a música sertaneja. Autor do livro Cowboys do asfalto: Música sertaneja e modernização brasileira, o historiador fluminense se sentiu incomodado com a falta de livros que se dedicassem ao tema sem a couraça do preconceito geralmente envolta no gênero musical, o mais tocado nas rádios brasileiras.

Pouco após a morte precoce do cantor Cristiano Araújo, que ensejou o debate sobre a popularização e o alcance da música sertaneja, em meio a críticas sobre o trabalho dele, Cowboys do asfalto chega às prateleiras, assim como o livro Bem sertanejo: A história da música que conquistou o Brasil, do cantor e compositor Michel Teló e do jornalista André Piunti, como resultado da série de entrevistas realizadas para quadro homônimo exibido no programa dominical Fantástico.

Gustavo Alonso se debruçou sobre o surgimento, a modernização e a evolução do gênero. Traçando paralelos com a história do Brasil e da música brasileira como um todo, compara a incorporação de elementos estrangeiros à assimilação do jazz pela bossa nova, do rock pela Jovem Guarda e pelo manguebeat, resgata as críticas ao novo e as acusações de ingenuidade e ufanismo durante a ditadura militar.  

Cowboys do asfalto é uma versão ampliada e atualizada da pesquisa de doutorado defendida por ele em 2011, a primeira tese do Brasil dedicada ao tema. Desenvolvida desde 2008, a pesquisa deve ter lançamento no Recife ainda neste segundo semestre, pois o autor vai assumir o cargo de professor da Universidade Federal de Pernambuco em agosto. A data e o local ainda não foram definidos.

ENTREVISTA // GUSTAVO ALONSO
Como surgiu essa necessidade de escrever um livro sobre a história da música sertaneja?
Eu tinha um descontentamento em como a biografia trata os gêneros populares. Quando escrevi o livro sobre Wilson Simonal, discuti a questão da Jovem Guarda, acusada de ser ingênua, e do discurso de chamar a guitarra de instrumento do imperialismo. Elis Regina, Gilberto Gil, Juca Chaves, Geraldo Vandré participaram de uma passeata contra a guitarra elétrica (em 1967). Eu pensei que, nos anos 1990, nada mudou. Como imperava nos anos 1990 algo tão parecido? Procurei a resposta nos livros, mas sempre via um ponto de vista simplista sobre o tema. Assumi então como tarefa minha. Eu tinha essa preocupação de ficar atento aos artistas e levá-los a sério, para além da chacota ou menosprezo geral, como se eles fossem manipulados pela indústria cultural. Na música sertaneja, a indústria fonográfica morreu e eles continuam.

Por que existe uma resistência com relação às novidades na música?
Uma parte da intelectualidade brasileira ainda pensa através da ideia da pureza, de buscar as raízes. A bossa nova aceitou o jazz, a Tropicália aceitou o rock, o manguebeat também. É um discurso que foi necessário, nos anos 1920, 1930, em que cabia mostrar as raízes do povo brasileiro, mas ficou engessado. Essa é uma matriz do pensamento brasileiro que continua, com abrandamentos, em setores universitários de classe média e classe média alta urbanos. Há um romantismo estético. Para a geração atual, a anterior é a de raiz. Mas, na época de Zezé, eles eram os sem raiz.

O que a modernização do sertanejo representa na música brasileira?
Acho que, de certa forma, meu livro mostra que a música sertaneja não é muito diferente da brasileira, só que isso não é discutido. A bossa nova incorporou o jazz. Leo Canhoto e Robertinho incorporam os Beatles. Há diversas antropofagias possíveis, não apenas dos tropicalistas, com resultados tão distintos. A modernização diz muito sobre as diversas incorporações da música brasileira. A música universitária é o que é em parte porque eles buscam tocar em todos os cantos do Brasil. Gosto de citar Eu quero tchu, eu quero tcha, que menciona Tocantins, o Nordeste, não apenas o eixo Rio-São Paulo. A nacionalização se deve em parte ao trabalho de formiguinha. Nenhum dos sertanejos fala contra o CD pirata, por exemplo, porque eles construíram a carreira na internet.

O sertanejo sofre da barreira social por ser uma música originada no interior brasileiro, ainda sofre os preconceitos do Jeca?
A música sertaneja conseguiu diversas vitórias no campo cultural brasileiro. A dificuldade é de atingir elites culturais muito bem delimitadas: classe média e classe média alta urbana. A classe média do interior não tem problema. O sertanejo faz, nos anos 1990, algo que o samba fez nos anos 1930. Mas ainda encontra, mesmo com a nacionalização, sobretudo em determinados bolsões de elite cultural, barreiras, sobretudo no eixo Rio-São Paulo, especialmente no Rio de Janeiro. Para ter ideia, Michel Teló só fez show no Rio quando estava literalmente pegando avião para o exterior. Com menos resistência, esses bastiões lutaram e ainda lutam contra essa hegemonia. Algumas vezes, até subestimando, como no caso da morte do Cristiano Araújo. A dificuldade é mais em ser analisado seriamente.

Michel Teló foi o responsável pela internacionalização da música sertaneja. Foto: Fábio Rocha/GShow/Divulgação
Michel Teló foi o responsável pela internacionalização da música sertaneja. Foto: Fábio Rocha/GShow/Divulgação
Por que há poucos livros sobre o sertanejo?
Primeiro, porque o público sertanejo não se preocupa muito em ler sobre o assunto, mas também porque não se interessa em analisar. Existe uma ideia de que cultura é o que se produziu até o século 20 e a MPB, bossa nova, Tropicália, rock. É o que a classe média das capitais aceita e gosta. A barreira não é de classe nem regional. É uma pequena barreira, importante , difícil de ser quebrada, de determinados bolsões da crítica que não conseguem analisar um gênero para além do gosto. Eu queria tratar como objeto, mas me perguntavam se eu gostava, como se isso fosse determinante. É como se me perguntassem, como historiados, se gosto de Proclamação da República, nazismo, escravidão. Isso diz muito sobre a escrita da música no Brasil: as pessoas só escrevem sobre o que gostam, e muitas vezes são puramente elogiosos. Eu quis me afastar desse tipo de discurso, ter um distanciamento crítico.

Em um artigo, você fala da questão da nostalgia, da dificuldade em aceitar o novo. Por que isso ocorre?
Há vários aspectos, como o geracional. O Zezé di Camargo rejeitou o universitário. Coloco como marco do universitário em 2005. Até 2010, ele falava que era uma mentira marqueteira. Ele tinha dificuldade em incorporar os artistas, que não tinham elo direto, a não ser admiração. Tem a dificuldade de flexibilizar o juízo para ver outras coisas, porque não adianta querer analisar sertanejo procurando notas dissonantes, da mesma forma que, para analisar Chico Buarque, não pode esperar a voz de Cauby Peixoto e outros intérpretes, que não compunham. Tem uma determinada crítica mais marxista à indústria cultural, simplista, que vê tudo como fruto da indústria cultural. Que tudo que toca é porque a gravadora quer, a mídia. A crítica rasa, como se tudo fosse feito da indústria cultural, não ajuda a compreender, demarca geralmente uma questão de gosto. A crítica preguiçosa não vê além. Eles tocam e tocaram, em parte, porque dizem algo sobre a sociedade, urbanização, modernização, ditadura, redemocratização, neoliberalismo. Para entender sso, é preciso abrir os ouvidos. Nelson Motta, em um livro dele, diz que a música sertaneja é da trilha sonora da era Collor e resolveu ir embora do Brail, produzir os discos fora do país. Associar movimentos estéticos a momentos políticos é um pouco simplista demais, como a bossa nova ao período JK. Tem a ver como uma visão política que atribui às classes populares uma visão de dominado, conservador, cafona.

E por que o antigo é mais valorizado?
Há um romantismo estético. É uma vertente interpretativa da culura brasileira muito forte. Para a geração atual, a anterior é a de raiz. Mas, na época de Zezé, eles eram os sem raiz. Nos anos 1990, ninguém falava de origens rurais, pobrezas. Um marco disso é o clipe É o amor, numa fazenda rica, com cavalos de raça. O legal era associar ao Texas, ao Tennessee. O discurso da raiz vai mudar a partir dos 1995, quando eles começam a regravar clássicos do sertão. Nos anos 1990, há a vitória do sertanejo. Até então, há a disputa entre caipiras e sertanejos, que surge na década de 1950, quando entra a guarânia, depois o bolero, rasqueado, e uma parte dos cantores do campo começam a repudiar isso. Em 1969, entra o rock. Depois, o brega, via Amado Batista, com Leandro e Leonardo. Hoje, pode funk, axé, arrocha, tudo. Até 1980, estava no mesmo nível. Em 1990, sertanejos estouram a boca do bolão e se tornam mais famosos. Eles começam a se construir como passado, presente e futuro e a gravar canções caipiras. Antes, só gravavam com guitarra, bateria. A forma como Zezé, Milionário, vão ser vistos como tradição tem a ver com o aspecto romântico do campo. Tem gente que não concorda com isso. Inezita morreu dizendo que Milionário & Zé Rico faziam música importante, que Victor e Leo são artistas sem ligação com a terra. A gente pediu autorização para citar o nome de Rolando Boldrin no livro e ele não quis, para não ser associado ao sertanejo.



MAIS NOTÍCIAS DO CANAL