Danado pra Catende

Ilustradores pernambucanos adaptam para quadrinhos poesias de Ascenso Ferreira

Projeto lançado pelo Sesc foi aceito por 11 cartunistas, a maioria deles pernambucanos ou radicados no estado. Trabalho coletivo vai dar origem a livro.

Publicado em: 13/07/2015 10:47 | Atualizado em: 13/07/2015 11:17

Crédito: Sesc/Divulgação

“The bell’s ringing,/ the whistle’s blowing/ the train’s shrieking/ and starting to move.../ I’m rushing to Catende,/ rushing to Catende,/ rushing to Catende,/ and anxious to be there”. A tradução do poema Trem de Alagoas, do pernambucano Ascenso Ferreira, foi gravada em inglês e lançada no vinil Modern Brazil poetry (1965), produzido pelos professores Raymond Sayers e Cassiano Nunes, da New York University. Cinquenta anos depois, o cartunista Luciano Félix assumiu missão parecida. Mas, em vez do idioma norte-americano, ele usou como recursos lápis e papel. A versão em HQ da poesia modernista integra o projeto Residência quadrinhos para Ascenso, desafio lançado pelo Sesc e aceito por 11 cartunistas, a maioria deles pernambucanos ou radicados no estado. Em gestação há cerca de três meses, o trabalho coletivo vai dar origem a um livro, com previsão de lançamento para agosto. 

Além de Luciano, desenham os versos de Ascenso Ana Blue, Chistiano Mascaro, Rafael Anderson, Raoni Assis, Flavão e Silvino (ambos do Diario), Liz França, Tiago Acioli, Eloar Guazzelli e João Lin, a quem coube a coordenação do projeto. “Foi muito animadora a criação de um espaço-tempo para colaborar, trocar ideias. Isso é muito presente nas artes visuais, no cinema, mas existe pouco nos quadrinhos. Pelo contrário, o quadrinista tem uma característica muito forte de individualização. A residência tem essa força simbólica de desconstruir esse mito, essa má fama”, comenta João Lin. Ao conversar sobre o projeto, o grupo faz questão de enaltecer a participação do veterano Eloar Guazelli, ilustrador e animador gaúcho, com vários prêmios conquistados.

Crédito: Sesc/Divulgação


Desde os primeiros encontros, os artistas encontraram na poesia de Ascenso textos cuja essência tinha a ver com o trabalho de cada um deles, com o jeito de pensar e narrar histórias. “Trem de Alagoas caiu bem para mim porque é bem descritivo. É praticamente um roteiro. Como sou menos abstrato, menos grafista, poetizei as imagens, e o resultado saiu mais a minha cara do que eu esperava. Essa troca foi uma oportunidade de expandir meu universo, pois não leio tanto poema, nem conhecia Ascenso”, diz Luciano Félix. Já João Lin se sentiu à vontade com textos recheados de referências a religiões de origem africana. “Estava decidido a desenhar outra poesia, mas só por comodidade. Conversando com o grupo, percebi o quanto esse outro texto tinha a ver comigo”. 

Na opinião do coordenador da residência artística, a poesia de Ascenso é uma pré-história da poesia visual e concreta. “Em textos como Graf Zepellin, fica claro como a poesia dele tinha a semente da poesia visual. Por outro lado, em Oropa, França e Bahia, um texto bastante popular, ligado à literatura de cordel, Ascenso não investe na dimensão gráfica do poema, mas tem grande capacidade de criação de metáforas. É puro cinema”, conclui João Lin.

Depoimentos >>>  
Ana Blue, João Lin e Silvino. Crédito: Acervo Pessoal.
"Há quem acredite que mulheres quadrinistas têm, necessariamente, traços delicados, mas meu caso foge completamente à regra. Não consigo nem desenhar mulher, pois meus traços são hardcore, underground. Vou quebrar um pouco essa ideia. (...) Não conhecia muito bem Ascenso, mas fiquei encantada, completamente apaixonada. Coube a mim ilustrar o poema Cinema. No início, tive dificuldade, pois estava sem prática para quadrinhos e nunca havia ilustrado poesia. Mas passei a entender o que ele queria comunicar, e coloquei minha alma ali, a maneira como entendo.”
Ana Blue, ilustradora

"Quando convidei as pessoas, me surpreendi, pois as reações foram instigadas. Quem é da área de quadrinhos gosta de ver as publicações impressas, vibra com o resultado, mas não com o processo. Não foi o que aconteceu nesse caso. Mesmo quem não estava nas reuniões presenciais compartilhava ideias, pedia feedback. Funcionou bem. Os encontros foram riquíssimos, de trabalho mesmo, com discussões e reflexões baseadas na experiência criativa. Fiquei surpreso com a disposição para a troca de ideias.”
João Lin, ilustrador e coordenador da Residência Quadrinhos para Ascenso

“O que me deixou mais feliz nesse projeto foi não só a oportunidade de trocar figurinhas com colegas quadrinistas, coisa rara no nosso meio, mas também ter contato com a obra do Ascenso que conhecia tão pouco. Poder me debruçar sobre seus textos e ver toda a pluralidade dos seus poemas foi de uma satisfação enorme. Foi difícil escolher um só poema.” 
Silvino, ilustrador e cartunista do Diario

Referências >>>> 
O processo de criação foi norteado por poesia, conceitos literários e filosóficos:

Ascenso Ferreira
Poeta natural de Palmares, na Zona da Mata, ficou conhecido por integrar o movimento modernista de 1922 com poesia sobre temática regional de sua terra. Colaborou com o Diario na década de 1920. Além das poesias, compôs músicas com Capiba e Alceu Valença.

Zygmunt Bauman
Sociólogo criador do conceito de “modernidade líquida”. Para Lin, a adaptação a partir da poesia tem a ver com a palavra, mas não só com a poesia. “Fomos pensando com mais fluidez. A poesia pode estar derrapando mais para a música, talvez mais do que para a literatura”.

Haroldo de Campos
Poeta brasileiro, desenvolveu o conceito de “transcriação” de poesias, algo que, diz ele, não é uma mera adaptação, mas uma recriação. Em vida, “transcriou” em português poemas de autores como Homero, Dante, Mallarmé, Goethe, Mayakovski, além de textos bíblicos.
 
Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.
MAIS NOTÍCIAS DO CANAL