Arraial Da França ao sertanejo: o segredo do São João para sobreviver por quase 2 mil anos Festa cristã incorporou as comemorações pagãs de verão, ganhou características regionais no Brasil e se adapta à urbanização e a novidades musicais

Por: Luiza Maia - Diario de Pernambuco

Publicado em: 22/06/2015 20:55 Atualizado em: 22/06/2015 20:23

Clique aqui para ler a versão gráfica. Artes: Samuca/DP
Clique aqui para ler a versão gráfica. Artes: Samuca/DP

Celebrados em homenagem aos santos Antônio, João e Pedro, os festejos juninos remetem a tempos anteriores até ao surgimento do Cristianismo. Incorporados com os esforços para suplantar religiões pagãs, entre os séculos 3 e 4, agregaram mais que dispensaram os rituais milenares. Desde a essência, estão impregnados de sincretismo e renovações, verificados quase 2 mil anos depois.

O São João coincidia com as boas-vindas dançantes e brincantes ao verão, em 21 de junho no hemisfério Norte. Com a expansão do catolicismo, Amon-Rá, Apolo e outros deuses perderam espaço no panteão junino para o trio de santos estampados em bandeiras. No oposto do calendário, estava o Natal, na chegada do inverno, outra festa pagã.

“Com o Cristianismo, a Igreja logo viu que não reprimiria as festas. Assimilou o que pôde: as danças ao ar livre, as fogueiras, as bandeiras, usadas também nas cruzadas e procissões”, conta o antropólogo e teólogo Bartholomeu Figueiroa, o Frei Tito. As vigílias solenes, na véspera, são herança nórdica. A Igreja tentou proibir as fogueiras, ligadas a rituais pagãos, sem sucesso. Apenas no Concílio de Trento, no século 16, foram legitimadas e aceitas como fogos eclesiásticos, de acordo com a antropóloga Luciana Chianca, autora de A festa do interior. Ganharam status purificador e, depois, viraram símbolo da Inquisição.

O caráter religioso e mundano sempre coexistiram. Missas para os santos são feitas até hoje, em paralelo às danças sensuais e bebidas alcoólicas. Em meados do século 20, o folclorista português Luís Chaves atestou, em Folclore religioso, que o entusiasmo no São João era tanto que “o povo chegou a acreditar que não se deve dormir nessa noite”. Trazido para o Brasil pelos colonos, recebeu influências dos cultos e da culinária dos povos das Américas e da África. O frei Vicente do Salvador escreveu, no século 17, sobre o envolvimento dos índios. A divindade iorubá Xangô também recebe honrarias.

As quadrilhas ao ar livre adentraram os salões, devido ao inverno brasileiro. Com a popularização, migrou para as palhoças e incorporou características locais. No Nordeste, a música regional virou o som oficial, difundido nacionalmente por Luiz Gonzaga. “São João migrou para os trópicos nos conveses das naus do imaginário católico lusitano e, uma vez desembarcado, o santo agrícola dos católicos foi ganhando musculatura nordestina, parecendo mais que é santo brasileiro, do Nordeste agrário”, diz o antropólogo Adriano Marcena, da UFPE.

A urbanização da segunda metade do século 20 marcou outra grande renovação. No Recife, são 64 arraiais armados pela prefeitura e incontáveis organizados pela população. Ficaram mais fortes no interior, para onde cerca de 52 mil veículos devem se dirigir por dia neste fim de semana, 30% a mais que em dias ordinários, de acordo com o Dnit.

O cenário é outro, e a trilha sonora também. A fogueira, as bandeiras, as simpatias e brincadeiras estão lá, porém ressignificadas. O arrasta-pé e a quadrilha junina - agora tema de concurso com roupas luxuosas - dividem espaço com o forró estilizado e o sertanejo, gênero hegemônico nas rádios e festas do país. Mudanças que suscitam discussão, mas se provam cruciais para a perpetuação e grandeza da festa popular.


no embalo do trio pé-de-serra
Unido por Luiz Gonzaga, nos anos 1950, o trio sanfona, zabumba e triângulo produz a sonoridade típica das festas. “Olha que casamento”, disse, sobre a combinação, em entrevista ao filho, Gonzaguinha, em 1988. O Rei do Baião é, pelo menos desde 2006, o mais executado do país, de acordo com o Ecad. Festa na roça (Mário Zan e Diogo Mulero), O sanfoneiro só tocava isso (Haroldo Lobo / Geraldo Medeiros) e Pagode russo (Luiz Gonzaga e João Silva) foram as mais tocadas em 2014.

de olho no palco
Sobre os palcos, do Sertão à capital, em festas gratuitas ou pagas, é vívida a modernização do forró, em melodias mais agitadas e letras urbanas. “Há uma pluralidade de coisas acontecendo, sem uma matar a outra. Há o palhoção, a fogueira, o milho, a pamonha. E o show”, analisa o pesquisador Climério Ferreira, cujo doutorado é dedicado ao forró. Em Caruaru, a plateia dança do som de Benil e Petrúcio Amorim ao Wesley Safadão e Banda Garota Safada.

o som da festa
Os meses de maio e junho são os preferidos dos forrozeiros para lançamentos de discos, pois é o período no qual mais se escuta e dança o ritmo. Raramente inserido das grades de programação das rádios, o gênero conseguiu emplacar três canções - Problema seu, de Alcymar Monteiro, Espaços e vazios, de Magníficos, e Ressentimento, de Flávio José - ficaram entre as 15 mais tocadas no Recife, de acordo com o instituto Crowley, empresa de monitoramento de rádio.

pula fogueira

Após tentativas frustradas de proibir as fogueiras, a Igreja Católica as incorporou aos cultos e criou um formato para cada santo do período junino: quadrada, para Santo Antônio, piramidal, para São Pedro, e cônica, para São João. A diferenciação e o significado purificador ficaram esquecidos, mas elas permanecem obrigatórias. Há quem diga que Isabel, mãe de João, usou as chamas de uma fogueira para avisar do nascimento do filho à irmã, Maria.

quadrilhas de luxo
Derivada das danças de salão, famosas na corte francesa e trazidas pelos europeus, as quadrilhas são dançadas desde o Brasil colonial, primeiramente no Rio de Janeiro. Em vez de passos de baile, os trotes ganham os salões das camadas sociais mais populares. As expressões em francês permanecem, misturadas a brincadeiras como “olha a chuva”, “olha a cobra”. As tradicionais roupas simples, de “matuto”, ganham ares profissionais e estilizados nos concursos, para os quais se ensaia desde o início do ano.

entre bandeiras e santos
Agora utilizadas como ícones de decoração - em versões coloridas, estampadas ou até feitas de papel de jornal e revista -, as bandeiras reforçavam a tradição católica de adoração às imagens dos santos do período. Elas eram molhadas e abençoavam a água, para que os fiéis se banhassem e fossem agraciados pelas graças do santo batista, ao primeiro Papa e a Santo Antônio.

olha pro céu
Criados no Oriente, aos fogos de artifício era creditada a capacidade de espantar os maus espíritos, o que os colocou na mira da Igreja Católica, junto com as fogueiras. Ambos foram proibidos no século 17, mas as autoridades sempre foram ludibriadas pelos brincantes. Os fogos ultrapassaram oceanos e séculos e persitem em shows pirotécnicos e brincadeiras.

brincadeiras

Pau de sebo, bingo, correio elegante, passa chapéu e pescaria são jogos populares incorporados ao período junino. “As brincadeiras fazem parte dos festejos dos povos e, inicialmente, não estavam atrelados à infância”, esclarece Adriano Marcena. Muitas foram criadas como metáforas sociais. Para o professor Marcena, o pau de sebo pode ter relação com a prosperidade da vida, renovação social provocada pela safra e colheita e com a recompensa pelo esforço.

é para simpatizar
O lado profano e sacana da festividade se revela também nas brincadeiras de simpatia e adivinhação. Intricados à fé, alguns jogos têm como vítima Santo Antônio, o casamenteiro, castigado de cabeça para baixo pelas mulheres solteiras. Planta  típica dos climas tropicais, a bananeira é protagonista de outra: o líquido escorrido com a retirada de uma faca, após uma noite fincada, revela a primeira letra do nome do futuro companheiro. 

o sabor junino
Cereal mais consumido do mundo, o milho tem na América popularidade antiga: remete aos tempos dos incas e maias. “O milho fez o grande elo das civilizações americanas com os portugueses”, atesta o antropólogo Raul Lody, sobre o fruto colhido em junho. Aqui, comidas como canjica, pamonha e munguzá dividem espaço à mesa com outras à base de mandioca, o coco – asiático, mas incorporado à culinária brasileira pelos africanos -, o arroz doce árabe e os bolos, típicos do ciclo junino europeu, conta Lody.



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