História Da embolada ao frevo: por que a cultura pernambucana depende da rua Em meio ao debate sobre restrição por lei às apresentações culturais, o Viver mostra como a ligação da arte com os espaços públicos construiu a identidade pernambucana

Por: Luiza Maia - Diario de Pernambuco

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Por: Fellipe Torres - Diario de Pernambuco

Publicado em: 07/06/2015 13:00 Atualizado em: 05/06/2015 20:22

Foto: Rafael Martins/Esp.DP/D.A.Press
Foto: Rafael Martins/Esp.DP/D.A.Press

O pernambucano não se espanta quando é surpreendido por uma dupla de repentistas com viola nas mãos. Ou quando testemunha uma performance circense sobre a faixa de pedestres. Ou quando se depara com um cortejo de maracatu, mesmo fora do período carnavalesco. É arte de rua, faz parte da paisagem. A dificuldade em apontar a gênese da cultura popular no estado indica, justamente, a presença atemporal das manifestações. Sempre esteve ali, pelas esquinas. “A cultura popular é praticamente desenvolvida a partir da integração na rua. Os desfiles são o coroamento e a vivência disso. A gente não teria em Pernambuco o que tem hoje se não houvesse essa integração e troca entre as pessoas”, crava a historiadora e pesquisadora Sylvia Couceiro, da Fundação Joaquim Nabuco.

Arquivo/DP
Arquivo/DP
A ligação indissociável foi confrontada pela Lei 15.516, em vigor desde o dia 27 de maio, que pôs a classe artística em estado de efervescência. A imposição de regras, como a ausência de menores de 14 anos, isenção de patrocínio privado para as performances e - ponto central das polêmicas - limitação de horário entre as 10h e as 22h, feriu a essência da arte de rua, a liberdade expressiva e suscitou debate. Desde a sanção, protestos foram realizados e notas de repúdio publicadas. 

“As manifestações culturais pernambucanas surgem nas ruas porque os clubes eram fechados. O povo não tinha lugar para brincar. A rua é o único lugar para se mostrar, até porque casa de pobre é pequena”, explica o historiador Severino Vicente, professor da UFPE.

Foi nas ruas que a religiosidade africana inspirou o cortejo dos maracatus, o culto à jurema conduziu os caboclos em desfiles, sambadas de coco ecoaram por madrugadas e a festa de Reis portuguesa ganhou contornos tropicais. “É nos locais abertos que soam as violas, que ocorrem as cantorias, as emboladas, os encontros de cordéis. A qualquer hora”, frisa o poeta popular Sennor Ramos. A onipresença da arte, gratuita e democrática nas ruas, perpetua o folclore local. Os poetas urbanos, na história da arte ao redor do mundo, dependem delas.

A metamorfose da capoeira no centenário frevo foi testemunhada pelas agremiações carnavalescas no espaço público. Alguns nomes refletem a identificação com a cidade, alertam Leonardo Esteves e Luiz Santos, do Centro de Pesquisa e Documentação do Paço do Frevo: Batutas de São José, Banhistas do Pina, Batutas da Boa Vista. “Pernambuco sempre foi feito de arte. De pintores, de cantores, de cordelistas declamando versos nas praças e mercados públicos, de repentistas, de maracatus e de malabares”, diz o cordelista e pesquisador de arte popular Jorge Filó. “E não existe palco para esse povo, não existe teatro. Existe a rua”.

Para o historiador e professor da UFRPE Lucas Victor Silva, o fato de a arte de rua não estar, necessariamente, vinculada a escolas, circos ou instituições desperta incompreensão e provoca medidas autoritárias - como ele classifica a nova lei estadual. “Por outro lado, essa falta de ‘vínculo’ transforma a arte de rua na mais livre das artes”, alega Silva, ecoando o pensamento da classe artística local.

A tentativa de regulamentar a convivência no espaço público é desafio das sociedades contemporâneas. Mas as normas nem sempre equilibram interesses gerais e respeito à natureza das manifestações artísticas. Em 2014, sob pretexto de preservar o silêncio em comunidades da Zona da Mata, a polícia restringiu as sambadas de maracatu às 2h - quando a dança até o amanhecer é tradição. Foi preciso uma reunião com Ministério Público, Prefeitura de Nazaré da Mata, PM e Fundarpe para findar a celeuma. O imbróglio ressuscitou conflitos típicos do século 19, quando as queixas ao barulho de ensaios e desfiles estampavam as páginas policiais dos jornais.

A regulamentação das apresentações de rua encontra par em cidades como Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo. Em países europeus, nos EUA e no Canadá, artistas obedecem a regras que incluem restrição de locais e horários, registro e até pagamento de taxas. A busca por um modelo viável para o estado guia um evento do Comitê Ação da Cultura, na segunda-feira, às 18h30. O encontro aberto a sugestões será no sexto andar do Edifício Pernambuco (Avenida Dantas Barreto, 324, Centro). Uma audiência pública também será realizada. O debate, assim como a arte, está na rua.

entrevista >> Severino Vicente, historiador
Por que a rua é tão importante para a cultura popular pernambucana?
As manifestações culturais surgem nas ruas porque os clubes eram fechados. O povo não tinha lugar para brincar. Era na rua mesmo. As festas tradicionais das igrejas tinham um momento sagrado, interno, e depois o profano, na frente, quermesse, brincadeiras.

Como essas festas tomaram as ruas?
Nas cidades, no fim do século 19, o povo foi para a rua durante o carnaval. Lá, organiza, no bairro, agremiações de acordo com a ocupação. Se é carvoeiro, vai fazer Pás Douradas. Varredores fazem o Vassourinhas. Cortadores fazem o Lenhadores. A fogueira é na rua, então a quadrilha tem que ser na rua. O frevo nasce na rua, o maracatu desfila na rua, como em procissão. O caboclo sai de casa. A rua é importante porque é um lugar onde as pessoas convivem e transmitem o seu saber. Hoje, a rua está muito controlada. É do automóvel. São corredores. E, agora, o estado quer tomar conta até da hora em que você vai dormir. 

Foto: reprodução da internet/blogdofinfa.com
Foto: reprodução da internet/blogdofinfa.com

Arte de repente
Logo ao nascer do Sol, enquanto comerciantes montam barracas para mais uma feira livre, artistas populares começam a chegar com seus instrumentos para, entre frutas e verduras, expor o talento na arte do improviso. Em comparação à capital pernambucana, municípios do interior do estado são terreno fértil para a proliferação de cantadores, repentistas, violeiros, declamadores. Com a viola em punho, Diomedes Mariano costuma se apresentar em feiras de Afogados da Ingazeira, Triunfo, Santa Cruz, Carnaíba, São José do Egito, Floresta, Serra Talhada. “Apesar de sermos artistas minúsculos, sem acesso à mídia, todos temos público. Muita gente nos escuta nas rádios e sente um impacto maior quando nos vê na feira, que é um ambiente de mistura de costumes, estilos, curiosidades”, defende o repentista.
 

Foto: Miguel Igreja/Divulgação
Foto: Miguel Igreja/Divulgação

Trupe engajada
Fazer teatro do povo para o povo. Com esse lema, nove atores e músicos se reuniram para criar, há 9 anos, o Grupo Loucos e Oprimidos da Maciel. Em frente à Praça Maciel Pinheiro, no bairro da Boa Vista, os artistas ensaiavam e se apresentavam gratuitamente, até receberem queixas de uma igreja das imediações. Mudaram-se para a Praça Oswaldo Cruz, onde permanecem até hoje. A plateia é formada tanto por transeuntes ocasionais quanto por pessoas que vão ao local somente para assistir aos números e, às vezes, até participar deles. “Estamos na rua por opção, por questão política. Queremos dar às pessoas acesso à arte e cultura. Ocupar o espaço público com teatro e poesia é uma missão nossa, que sempre tem uma recepção maravilhosa”, conta o produtor e ator do grupo, Rodrigo Torres.

Credito: Memorial Chico Science/Divulgacao.
Credito: Memorial Chico Science/Divulgacao.
Identidade cultural
O bairro Alto José do Pinho, na Zona Norte do Recife, foi berço para o desenvolvimento de expressões populares, com maracatus, reisados, blocos carnavalescos, grupos musicais e teatrais. Lá surgiram o Maracatu Nação Estrela Brilhante, bandas como Devotos do Ódio, Matalanamão, Faces do Subúrbio. Até hoje é mantida a vocação cultural, com grupos que levam para as ruas recitais poéticos, shows de caboclinhos, afoxé. “Sou morador e vejo o bairro ascender culturalmente em detrimento da violência. A cultura nasce nas ruas, na religiosidade, e só depois vai para teatros. Tem papel essencial na formação da identidade, na construção histórica do local, na criação da ideia de pertencimento. Daí surge o amor, o carinho, a caridade, a reconstrução de uma vida tão marginalizada”, diz o coordenador do grupo Poesis, Jailson Menezes.


Foto: Priscilla Buhr/Divulgação
Foto: Priscilla Buhr/Divulgação
 
Circular é preciso
Essencialmente coletivos, os cortejos de maracatus se constroem sobre uma produção musical comunitária, participativa, cujo cenário mais propício é a rua. É o que alega o músico, pesquisador e professor do Conservatório Pernambucano Climério de Oliveira. “É uma manifestação que depende do contato, do percurso, da agregação do público, pois se trata de uma performance itinerante. Como aprisioná-la num palco?”, questiona. “Imagine o som de dezenas de alfaias num teatro fechado!”, brinca. Segundo ele, registros históricos apontam para os cortejos dos reis de Congo, na África, como possível origem do maracatu - cujo nome, provavelmente, deriva de uma onomatopeia semelhante ao som dos batuques - presente no Recife desde meados do século 19. Para Manoelzinho Salu, presidente da Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco, a tradição centenária depende da rua para sobreviver. “Precisamos circular pela cidade, a qualquer época e horário, pois é a forma de preservar nosso legado”, reforça.


Foto: Ricardo Fernandes/DP/D.A Press
Foto: Ricardo Fernandes/DP/D.A Press
 
Da madrugada à meia-noite
Nas primeiras décadas do século 20, os chamados “capoeiras” (que, mais tarde, seriam conhecidos como passistas) coreografavam pelas ruas do Recife à frente de bandas, ensaiando os primeiros passos do ritmo que viria a ser chamado de frevo. “A rua foi cenário dessa gênese”, explica o pesquisador fonográfico Renato Phaelante. Para o coreógrafo Alexandre Macedo, é nos espaços públicos que o frevo se estabelece, se legitima. “Símbolos máximos, como o Homem da Meia-Noite e o Galo da Madrugada são provas de que a rua é nosso palco”, sentencia. “É que a rua atende à necessidade de expressar o que é do povo. De ‘dar’ às pessoas o folclore, em espaços públicos, livremente”, explica Phaelante. Para Eduardo Araújo, coordenador da ONG Guerreiros do Passo, é na rua que nascem espetáculos espontâneos do frevo que, depois, podem ser levados aos palcos. Em atuação há dez anos, a organização desenvolve, entre pesquisas e ações, aulas de frevo em ruas e praças públicas, a fim de incentivar a vivência do ritmo.

Emiliano Dantas/Divulgação
Emiliano Dantas/Divulgação

Na porta de casa
Neste sábado, a sambada mensal em frente à casa da yalorixá Beth de Oxum, no bairro de Guadalupe, em Olinda, não foi realizada. Os ganzás silenciaram para marcar o luto pela morte do Mestre Pombo Roxo, no dia 30 de maio. A festa é a perpetuação de uma tradição centenária no estado, observada da Zona da Mata a vilas de pescadores no litoral, como o Amaro Branco, cuja representante mais antiga é Dona Glorinha, 80, coquista desde os 7. “O coco vem do terreiro, mas se materializa na rua. É uma brincadeira de compartilhamento da comunidade”, conta Beth, que frequentava, quando menina, as comemorações em frente à casa de Selma do Coco, morta no mês passado. “O coco sempre foi manifestação de rua, conjunta, herdada dos africanos e indígenas”, diz Marileide Alves, autora do livro Nação Xambá: Do terreiro ao sal. No Xambá, as sambadas marcam casamentos, aniversários, batizados desde a década de 1930.

>>> Como países e cidades encaram a regulamentação da arte de rua

INGLATERRA
Performances de rua só com licença do governo. São proibidos: muito barulho,  bloqueio de ruas, avisos para pedir pagamento e comércio. Alguns locais são proibidos e os horários, restritos das 10h às 21h. Crianças até 14 anos não podem participar.

ESPANHA
Em Madri, desde 2014, músicos precisam de licença. O registro é gratuito, dura um ano e é emitido após audição. Segundo a lei, o objetivo é garantir o descanso dos moradores, devido ao barulho causado pelas apresentações. 

CANADÁ
Em Vancouver, as performances têm limite de uma hora. Retratistas podem permanecer no local por até duas horas. Crianças de 13 a 15 anos só acompanhadas dos pais. Menores de 12 não participam. O horário é das 10h às 22h.

CHINA
O hábito de dançar - mais comum entre os mais velhos - em ruas e praças gera polêmica. Houve até quem jogasse fezes nas pessoas. Leis proíbem som alto, mas não há limite de decibéis. Estima-se que 100 milhões dancem nas ruas.

>>>> NO BRASIL

PORTO ALEGRE
De 2008, a lei dispensa autorização prévia, mas exige que o responsável informe hora e local da performance, que deve ser gratuita e não atrapalhar trânsito e pedestres. O projeto prevê realização de um festival de artistas de rua e descarta cobranças de  tributos ou preços públicos.

SÃO PAULO
Além da permissão para venda de CDs, DVDs, livros, quadros e peças artesanais dos próprios artistas, inclui o respeito à integridade das áreas verdes e instalações particulares ou públicas. De 2013, a lei estabelece 22h como horário máximo para a conclusão dos eventos. 

RIO DE JANEIRO
Desde 2012, os artistas não precisam de autorização prévia, desde que não usem palco, mas devem avisar. Sem patrocínio privado que denote evento de marketing e sem atrapalhar o fluxo de trânsito ou pedestres. Devem acabar antes da meia-noite e não podem durar mais de 4 horas. 

PERNAMBUCO

Lei 15.516
Pontos polêmicos:

Art. 1º 
As apresentações de natureza cultural, realizadas por artistas de rua, em vias, cruzamentos, parques e praças públicas, no âmbito do Estado de Pernambuco, observarão as seguintes condições:

VIII - realização entre 10 (dez) e 22 (vinte e duas) horas;
IX - não recebimento de patrocínio privado que as caracterize como evento de marketing, salvo no caso de projetos apoiados por Lei de incentivo à cultura.

X - proíbe terminantemente a presença de crianças de 0 (zero) a 14 (catorze) anos de idade nos referidos eventos;


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