Único relato autobiográfico de um ex-escravo brasileiro vai virar livro
História revelada, com exclusividade, pelo Viver em novembro do ano passado será editada pela Civilização Brasileira. Ainda não tem previsão de chegar às livrarias
Publicado: 13/05/2015 às 13:13

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O único relato autobiográfico de um ex-escravo brasileiro vai virar livro. A história de Mahommah Gardo Baquaqua, levada a público com exclusividade pelo Viver em novembro passado, joga luz sobre as atrocidades da escravidão no país. O livro de memórias deixado por ele, An interesting narrative. Biography of Mahommah G. Baquaqua (Uma interessante narrativa. Biografia de Mahommah G. Baquaqua, em tradução livre), publicado em 1854, nos EUA, revelou detalhes da passagem por Olinda e se tornou alvo de um estudo inédito do pesquisador pernambucano Bruno Véras. A pesquisa será publicada como livro pela editora Civilização Brasileira.
"A história de Baquaqua é conhecida nos meios acadêmicos, principalmente os relacionados à história da diáspora africana no Brasil. Alguns trabalhos no exterior e aqui no Brasil citam a versão de R. Krueger (1997), o precioso artigo de Silvia Lara (1989) e a edição feita pelo professor P. Lovejoy e R. Law (2007). Contudo, até o presente momento são referência pouco acessíveis e pouco divulgadas para um público mais amplo aqui no Brasil", diz o historiador pernambucano pela UPE, mestre pela Universidade Federal da Bahia e doutorando pela Universidade de York, no Canadá.
[SAIBAMAIS] O projeto do pernambucano é em parceria com o historiador Nielson Bezerra, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem financiamento do Ministério da Cultura do Brasil e apoio institucional do Consulado do Canadá no Brasil. “Após a publicação da matéria no Viver, o professor Paul Lovejoy (York University, Canadá) também esteve aqui no Brasil e demos prosseguimento ao que estamos chamando do Baquaqua Trail. Nos últimos meses seguimos os passos de M. G. Baquaqua nos EUA, Canadá e, agora, no Brasil, procurando novos documentos e conhecendo a geografia. Importante para imaginarmos os contextos em que se inseriu Baquaqua em vida", observou.
"Fizemos vários registros em Itamaracá - ilha que no século 19 serviu de desembarque ilegal de gente a ser vendida no Recife, em Olinda e Goiana. Pretendo nos próximos anos viajar para Lagos, na Nigéria e para Liverpool, na Inglaterra procurar novas peças que completem o quebra-cabeça da história deste personagem", acrescentou.
HISTÓRICO
A história lembra a do norte-americano Solomon Northup, contada em 2013 no filme 12 anos de escravidão, adaptada da biografia homônima de um homem livre vendido como escravo. O enredo de Baquaqua, no entanto, se passa em solo brasileiro. Mesmo com "direito à liberdade", ele foi vítima do tráfico de escravos para o Brasil, em 1845, quando o traslado já era proibido no país desde 1831. Filho de um próspero comerciante da cidade de Djougou (hoje o Norte de Benin), no continente africano, ele foi trazido à força ao Litoral Norte de Pernambuco. "Ele foi escravizado por um senhor que era padeiro (em Olinda) e brutalmente castigado. Trabalhou, como escreveu na autobiografia, na construção de casas, carregando pedras”, revelou o historiador e consultor de estudos afro-brasileiros da Unesco Bruno Véras. O pesquisador viajou aos EUA atrás de vestígios do escravo.
A conexão com os Estados Unidos e o Canadá não é por acaso. Baquaqua foi vendido, depois, para um dono de escravos no Rio de Janeiro.
De lá, teve uma missão de trabalho na cidade de Nova York, em 1846, numa entrega de café das empresas do "novo dono". Foi lá, no norte do país, onde a escravidão não era mais permitida, que fugiu em busca de liberdade. “Abolicionistas o ajudaram a escapar da prisão. Não fica claro no relato o método usado para libertá-lo. Provavelmente, uma bebida e um papo descontraído com o carcereiro o fizeram cochilar”, analisa Bruno.
- Os passos do ex-escravo
A bebida
Fugido da prisão em Nova York, conseguiu refúgio no círculo abolicionista de base religiosa protestante batista no Haiti. Na ilha independente por ação dos ex-escravos, passou os anos 1847 a 1849 deslocado socialmente. Não falava o francês nem o crioulo. Voltou a beber até se converter ao cristianismo batista. Fugiu para não ser alistado no exército da ilha.
O aprendizado
De volta aos EUA, entra nos círculos críticos à escravidão ligados à rede Batista da Livre Vontade de caráter Abolicionista. Entre 1850 e 1853, frequenta o Central College na cidade de MacGrawville. Aprende o inglês e mantém contatos por cartas com nomes importantes do abolicionismo dos EUA, como o reverendo William L. Judd e Gerrit Smith. Em 1854, está no Canadá, em Chatham. Ainda fala em viagem à Inglaterra e retorno à África.
O navio
Ele relata trecho da viagem em navio negreiro até Pernambuco, durante o Império Brasileiro (1822-1889). "Chegamos a Pernambuco, América do Sul, de manhã cedo, e o navio ficou zanzando, sem lançar âncora. Ficamos sem comida e bebida o dia inteiro, e nos foi dado a entender que deveríamos permanecer em silêncio, sem clamor, senão nossas vidas estariam em perigo".
A escravidão
Na biografia, provoca quem defendia a escravidão. "Que aqueles 'indivíduos humanitários' que são a favor da escravidão coloquem-se no lugar do escravo no porão barulhento de um navio negreiro, apenas por uma viagem da África à América, sem sequer experimentarem mais que isso dos horrores da escravidão: se não saírem abolicionistas convictos, então não tenho mais nada a dizer a favor da abolição."

