Memória Hoje degradado, bairro da Boa Vista já foi olho de furacão cultural Por cinquenta anos, área no Centro do Recife funcionou como berço de uma arte considerada genuína do estado. A história de ascensão e queda virou livro

Por: Fellipe Torres - Diario de Pernambuco

Publicado em: 25/05/2015 16:00 Atualizado em: 25/05/2015 20:08

Fotos: Acervo Jacques Ribemboim
Fotos: Acervo Jacques Ribemboim

A um mês do aniversário de 82 anos, o artista plástico Wilton de Souza acaba de concluir pintura sobre bumba-meu-boi e cavalo marinho para compor exposição coletiva, em junho. Ele segue a carreira depois de ter assistido, em 2006, ao desmoronamento de um sonho. O casarão de três andares onde morou dos 3 aos 27 anos, na Rua Velha, na Boa Vista, desabou parcialmente e deixou sete vítimas fatais. A tragédia sepultou os planos de transformar o prédio de três pavimentos - segundo ele, avaliado em R$ 30 mil - em centro cultural para expor as próprias obras e as do irmão, o pintor Wellington Virgolino, morto em 1988. Autodidatas, ambos são frutos de uma conjunção de forças incrustradas no Centro do Recife entre as décadas de 1930 e 1980, de onde brotaram manifestações em artes plásticas consideradas genuinamente pernambucanas.

Em meio século, a região foi habitada por uma classe média urbana cuja população era engrossada por famílias  do interior do estado, imigrantes europeus e asiáticos. Dezenas de intelectuais, escritores, pintores, escultores, parte deles responsável pelo distanciamento da influência europeia tão presente nas artes de até então. A “era de ouro” foi resultado de extenso levantamento do pelo pesquisador e economista Jacques Ribemboim em parceria com Wilton de Souza, publicado no livro Boa Vista – Berço das artes plásticas pernambucanas (Babecco, R$ 40). “No início do século 20, era o centro de um furacão cultural, onde tudo ocorria. Há contraposição de ideias dos judeus imigrantes do leste europeu com a luminosidade da cultura local. Eles abraçam ferozmente a realidade daqui”, diz Ribemboim.

Foto: Nando Chiapetta/Dp/DAPRess
Foto: Nando Chiapetta/Dp/DAPRess

Só a partir da movimentação começa a se falar em uma “arte característica de Pernambuco”, embora houvesse várias propostas ideológicas, técnicas e estéticas. A atmosfera cosmopolita no novo modo de se fazer arte pouco tinha a ver com os casarões retratados em quadros de outrora. Assim como o Sol escaldante do Recife, pinturas são tropicais, de cores quentes, abertas ao diálogo e à representação de tipos populares e do folclore local.

Era comum a troca de experiências e a formação de iniciantes. Em locais como o Atelier Coletivo, Gilvan Samico e Ionaldo Cavalcanti recebiam lições preciosas de Abelardo da Hora, morto no ano passado. Na redondeza, mantiveram ateliês João Câmara, Lula Cardoso Ayres, Hélio Feijó, Fédora, Joaquim e Vicente do Rego Monteiro.


A realidade da Boa Vista mudou nas últimas três décadas, a despeito das impressões de um dos moradores do bairro, o escritor Manuel Bandeira: “Tudo lá parecia impregnado de eternidade”. O processo de desocupação residencial do Centro atingiu em cheio a região, cujos moradores migraram para a orla da Zona Sul ou novas áreas “nobres” da Zona Norte. Ficou para trás a realidade das ruas estreitas por onde passavam os bondes, consolidaram-se as avenidas largas e repletas de automóveis. Casarões cederam espaço a arranha-céus e condomínios.

Para o historiador Leonardo Dantas Silva, a Boa Vista vem sendo esquecida pela administração pública. “Há obras importantes a serem feitas, como a restauração da Praça Maciel Pinheiro, que abriga o nosso mais importante monumento público, em comemoração à vitória brasileira na Guerra do Paraguai. Hoje, o lugar é antro de usuários de droga”, critica.

Além dos artistas remanescentes, como Wilton de Souza, Elísio Moura e Paulo Bruscky, outros se instalam na região, como Rinaldo Fernandes, cuja residência funciona como ateliê e espaço para saraus e concertos. “Falta campanha para conscientização sobre o patrimônio histórico, não adianta só tombar os prédios. Há vasto patrimônio de igrejas, casarios, azulejos. Se você observar bem, a Boa Vista esconde painéis raros de Brennand e Aloísio Magalhães”, defende Paulo Bruscky.

SURGIMENTO
O bairro data do Brasil Holandês, quando Maurício de Nassau decidiu construir um palácio na Ilha de Antônio Vaz, com vista para o Rio Capibaribe. A paisagem enxergada a partir da construção inspirou o nome “Boa Vista”. Ainda no século 18, a área ganhou em importância com a construção de quatro igrejas e um convento. No século seguinte, aumentou de território em decorrência de aterros. Só no século 20 o bairro passa a ter destaque na vida social, ao abrigar a classe média, que décadas depois migraria para locais mais distantes do centro, como Boa Viagem. Hoje, a Boa Vista abriga pequenos comércios e tem população de 15 mil pessoas, segundo o IBGE.
  
INDEPENDÊNCIA 
Em 1932, foi inaugurada no Recife a Escola de Belas Artes, cujo quadro de professores tinha nomes como Murillo La Greca, Álvaro Amorim e Balthazar Câmara. Muitos dos alunos eram artistas moradores da Boa Vista, como Abelardo da Hora. As técnicas ensinadas na Escola seguiam rígida linha acadêmica, próxima da influência europeia. Em contraponto, surge um grupo de artistas “independentes”, que começa a pintar Pernambuco de maneira mais livre. A eles, somam-se Hélio Feijó, Ladjane Bandeira e o próprio Abelardo, fundadores, na década de 1940, da Sociedade de Arte Moderna do Recife. Era o surgimento de uma arte típica do Estado.
 


OLHO DO FURACÃO
A criação do Atelier Coletivo foi a concretização das propostas da Sociedade de Arte Moderna do Recife, de oposição ao classicismo da Escola de Belas Artes. Funcionou durante seis anos em três endereços diferentes, todos na Boa Vista. Era um espaço de produção, ensino e pesquisa, liderada por Abelardo da Hora, cujas preocupações incluía despertar nos demais “uma forte consciência social e regional”. O local tornou a Rua Velha (onde funcionou a primeira sede) o centro artístico da Boa Vista. Entre os frequentadores, José Cláudio, Corbiniano, Nelbe Rios, José Barbosa, Adão Pinheiro, Bernardo Dimenstein, João Câmara.

ARTE REVISITADA
Por muito tempo, artistas da “Geração Boa Vista” reivindicaram um espaço para exposição, até ser criada a Galeria Metropolitana do Recife, depois rebatizada de Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam). Instalado em antigo casarão do século 19, tem acervo de 1.100 obras produzidas a partir de 1920, de artistas como João Câmara, Vicente do Rego Monteiro, Lula Cardoso Ayres, Abelardo da Hora, Francisco Brennand, Gilvan Samico, Paulo Bruscky. Fica na Rua da Aurora, 265, Boa Vista. A entrada é gratuita. O funcionamento é de terça a sexta-feira, das 12h às 18h, e aos fins de semana, das 13h às 17h.

ARTE/DP
ARTE/DP

 
MAPA - Onde alguns artistas moravam 

1 - MARIANNE PERETTI
Natural da França, chegou ao Recife na década de 1940. Trabalhou com Oscar Niemeyer projetando vitrais de magnitude, com predominância do azul e branco.
2  - WILTON DE SOUZA E WELLINGTON VIRGOLINO
Irmãos, tornaram-se pintores a partir da convivência com artistas plásticos. Wellington tem influência de muralistas mexicanos. Wilton pinta até hoje e é pioneiro do designer.
3 - ZÉ CLÁUDIO
Considerado um pintor expressionista em busca de motivos regionais. Tem pinceladas grandes e largas. Influenciou vários artistas. Também é autor de livros sobre arte.
4 - LAURO VILLARES
Desenhista, ilustrador de livros e jornais, pintor, escultor, vitralista, entalhador. Em sua obra, há grande presença de cenas do cotidiano recifense.
5 - JOÃO CÂMARA
Artista premiado, tem pintura figurativa de temática variada, às vezes retratando cenas da vida política nacional ou cenas do cotidiano, sempre com simbolismos.
6 - ABELARDO DA HORA
Aluno da Escola de Belas Artes, fundou a Sociedade de Arte Moderna do Recife e do Atelier Coletivo. É figura emblemática na evolução da arte pernambucana.
7 - GUITA CHARIFKER
Nascida na Paraíba, é um dos destaques da pintura pernambucana, ao mesclar elementos judaicos com o regionalismo. Tem vasta produção em aquarelas, óleos e desenhos.
8 - PAULO BRUSCKY
Descendente de poloneses, considera-se artista multimídia. A produção inclui fotografia, cinema, colagem, arte-xerox, arte-postal e processos de gravação.
9 - REYNALDO FONSECA
Muralista, ilustrador e um dos pintores brasileiros mais consagrados da atualidade. Estudou na Escola de Belas Artes do Recife e com Cândido Portinari, no Rio de Janeiro.
10 - ELÍSIO MOURA
Piauiense radicado no Recife, dedica-se à arquitetura, pintura e escultura. Suas obras transitam entre o figurativo e abstracionismo puro. Retrata flores, frutas, objetos.

Crédito: Rafael Couto/divulgação
Crédito: Rafael Couto/divulgação

PAULO BRUSCKY, artista plástico
Morei a vida toda no bairro da Boa Vista. Nos anos 1960, estava sempre ali pelo cemitério, na Avenida Mário Melo, porque eu morava na esquina. Sempre fui amigo de pessoas como Abelardo da Hora e Bernardo Dimenstein, para quem colocava molduras. Dimenstein, aliás, foi pioneiro em levantar essa bandeira de revitalização do bairro. Foi um dos que mais lutaram por essa causa. Infelizmente morreu sem ver isso acontecer. Tenho um ateliê na Rua Visconde de Goiana, e chamo aquela área de Nova Olinda. Acho que falta uma campanha para a conscientização do patrimônio histórico, pois não adianta somente tombar os prédios. Essa consciência precisa vir junto com revitalizações feitas por prefeitura e governo. Há um vasto patrimônio de igrejas, casarios, azulejos. Se você observar bem, a Boa Vista esconde painéis raros de Brennand, de Aloísio Magalhães. Hoje em dia, há vários artistas retornando ou se fixando no bairro, como Rinaldo Silva, Francisco Neves, o cineasta Gabriel Mascaro. Gosto muito de andar pela Boa Vista e até faço boa parte dos meus trabalhos nas ruas. Agora mesmo fiz um sobre as calçadas do bairro, que têm as menores esquinas do mundo.  Fiz um rastreamento do bairro, com várias intervenções.

LEONARDO DANTAS SILVA, historiador
Crédito: Blenda Souto Maior/Dp/DAPRess
Crédito: Blenda Souto Maior/Dp/DAPRess
As oficinas de Abelardo da Hora e a atuação do Atelier Coletivo são fatos marcantes da Boa Vista. O bairro vem sendo esquecido pela administração pública. Há obras importantes a serem feitas, como a restauração da Praça Maciel Pinheiro, que abriga o nosso mais importante monumento público, uma escultura do artista português Antônio Moreira Rato, em comemoração à vitória brasileira na Guerra do Paraguai. Hoje, o lugar é um antro de usuários de droga. As ligações que vão até o Pátio de Santa Cruz e o Pátio da Boa Vista, além das ruas do entorno, mereciam ser mais bem cuidadas. Trata-se de um bairro tradicional, de apelo sentimental, onde ainda residem algumas famílias. Não é como o bairro de São José, que perdeu seus moradores, perdeu sua alma (não adianta promover eventos em um lugar onde ninguém mora). Você circula pela Boa Vista e vê o Teatro do Parque (hoje fechado), o museu mais antigo do Estado, o do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (desde 1862), um polo educacional, encabeçado pela Faculdade de Direito, em funcionamento desde 1911. Esperamos que o bairro seja valorizado, inclusive a matriz da Boa Vista, esculpida em Portugal por Francisco de Assis Rodrigues, e que hoje está suja, feia, degradada.

SERVIÇO
Boa Vista – Berço das artes plásticas pernambucanas
Editora: Babecco
Páginas: 138 
Preço: R$ 40


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