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Perfil Às vésperas de estrear primeiro longa, diretor pernambucano fala sobre obsessão por café "Permanência", de Leonardo Lacca, é estrelado por Irandhir Santos e Rita Carelli. O filme entra em cartaz na quinta-feira em 24 salas de cinema, em 12 cidades brasileiras

Por: Fellipe Torres - Diario de Pernambuco

Publicado em: 27/05/2015 09:00 Atualizado em: 27/05/2015 00:34

Fotos: Trincheira Filmes e Brenda Alcântara/Esp.DP/DAPress
Fotos: Trincheira Filmes e Brenda Alcântara/Esp.DP/DAPress

Questões sociopolíticas e a violência urbana dos estados onde nasceram estão no centro da filmografia dos cineastas Martin Scorcese (Nova York, EUA) e Kléber Mendonça Filho (Pernambuco). Quando a recorrência temática não é geográfica, resvala para o campo dos interesses, como é o caso de Woody Allen com os dramas psicológicos e a aposta de Quentin Tarantino na violência sanguinária. Outros, deixam transparecer certo voyeurismo pela vida cotidiana, a exemplo de Richard Linklater, na ficção, e Eduardo Coutinho, no documentário. A lista poderia ir muito além, pois até quem não se considera grande conhecedor da sétima arte é capaz de estabelecer conexões entre a carreira dos realizadores e suas inquietações, preferências, obsessões.

Fotos: Brenda Alcântara/Esp.DP/DAPress
Fotos: Brenda Alcântara/Esp.DP/DAPress
Em algumas circunstâncias, contudo, a "sacada" é menos óbvia, como quando se trata de alguém prestes a estrear o primeiro longa-metragem, caso do diretor recifense Leonardo Lacca, cujo debute no circuito nacional será na quinta-feira (28), com Permanência (já vencedor de vários prêmios, cinco deles no Cine PE). Mas, acreditem, bastam dois dedos de prosa com ele para matar a charada. Embora a produção estrelada por Irandhir Santos e Rita Carelli seja um ensaio sobre amores mal resolvidos, um elemento surge a todo momento diante das câmeras. Ora coado, ora moído, prensado e filtrado. Misto de paixão e vício extraído da vida pessoal do roteirista, o quase-coadjuvante é usado na trama de maneira inteligente para simbolizar afeto, intimidade, memória, desejo.

Pode soar estranho - e até precipitado - apontar como uma das bebidas mais consumidas do mundo, o café, está tão arraigada ao fazer cinematográfico de Leonardo Lacca. Mas vamos aos fatos. Não estamos falando apenas do consumo ou preparo. Em uma das cenas com o líquido negro poupadas pelos cortes da montagem (sugestão do colega Kléber Mendonça, por "excesso de café no roteiro"), uma xícara é propositalmente despejada sobre o corpo nu da personagem vivida por Laila Paes. A sequência remete a uma outra produção em vídeo assinada pelo cineasta anos antes, quando outro banho de café em um corpo feminino (na ocasião, vestido), chamava atenção para a realização de um brechó. 

O local do evento seria na cafeteria Castigliani, mantida por Lacca há oito anos, conjugada ao Cinema da Fundação, no Derby. Para o próprio negócio, ele já produziu pelo menos uma dezena de outras vinhetas (incluindo até banhos de banheira com café), sem contar com campanha publicitária “alternativa" criada para atender ao trabalho de conclusão do curso de publicidade. “Eu era meu próprio cliente”. No lugar onde estão reunidas as duas maiores perdições do pernambucano, a decoração traz fotografias em preto e branco de figuras como Almodóvar, Scorcese, Ingrid Bergman e David Lynch, todos eles, claro, de xícaras em punho (“Café é muito fotogênico!”). Além da presença dos clientes usuais, o estabelecimento é usado para reuniões de outros profissionais ligados ao cinema, e até já serviu de locação para filmes. O ano de inauguração da cafeteria, aliás, coincidiu com o lançamento do embrião de Permanência, o curta-metragem Décimo segundo, com os mesmos protagonistas.

Se voltarmos um pouco mais no tempo, a combinação de café e cinema já fazia parte da vida de Leonardo Lacca mesmo antes de estar envolvido com empreendedorismo e cinema. Na juventude,  quando começava o "processo de formação cinéfila”, recebia os amigos em casa para varar a madrugada assistindo a filmes. Sentados no sofá, nada de pipoca ou guaraná, mas várias rodadas da bebida estimulante. As maratonas foram rareando com o tempo, mas o hábito de abastecer os colegas permaneceu até quando trabalhou como preparador de elenco do filme O som ao redor. “Convenci a produção. Juntei a galera e perguntei quem queria café espresso no set, toda hora. Eu tinha o fornecedor da máquina, do grão, fiz uma vaquinha e ficou todo mundo tomando café bom”.

Foto: Trincheira Filmes
Foto: Trincheira Filmes


RITUAL DE BELEZA
"Assim como o café tem vários estágios de preparação (torrado, moído…), o consumo também. Se você está em uma cafeteria, senta, pede, espera, conversa. Se você está fazendo para alguém, é um ato bonito, assim como cozinhar. É um ritual. Aquilo de enquanto está sendo feito." 

PONTO DE ENCONTRO
“Sempre quis ter uma cafeteria. Marcava muito em cafés com amigos para conversar e sempre fui fascinado por isso. Desde os meus 18 anos. Em uma cafeteria como esta, na frente de um cinema, você vê muitos encontros, casais se formarem, se separarem. As pessoas vêm para se relacionar mais profundamente, e têm o costume de frequentar o mesmo lugar, pedir as mesmas coisas. Eu mesmo abri o café com uma ‘ex' e, depois, conheci minha atual 'ex' também aqui"

Foto: Trincheira Filmes
Foto: Trincheira Filmes


PRAZER NO TRABALHO
“Gravando o longa, filmei em um dos melhores cafés de São Paulo, o Coffe Lab. Foi um dia incrível, aquele lugar todo disponível pra gente. Nesse dia tomei muito café. (…) Só faz sentido se você colocar (no trabalho) as coisas que você gosta e que lhe divertem. Não é nem divertido de engraçado, mas  de ser prazeroso, mesmo”

MANCHAS DE CAFÉ
"Gosto da palavra ‘perman%u200B%u200Bência' porque é bem ampla. O português é muito rico. Significa estadia, tem a ver, na fotografia, com a permanência de abertura, com a revelação, tem a ver com permanência de sentimento…  Em inglês, tentamos alguns títulos para o filme mas não chegava nada. Ficou Coffee stains (manchas de café), que em português pareceria nome de novela mexicana."



>>>> CRÍTICA
Permanência é filme para todos os públicos, mas vai aproveitar e compreender melhor quem já amou, sofreu, sentiu saudade, viu-se desconcertado diante de paixões antigas, saiu da cidade e, temporariamente, viveu uma vida paralela. Não são requisitos obrigatórios, mas desejáveis. O longa-metragem de Leonardo Lacca é repleto de lacunas em branco para serem preenchidas pelas vivências do espectador. O fotógrafo recifense Ivo (Irandhir Santos) é quase um arquétipo do homem engolido pela passagem do tempo, pelo avanço da tecnologia, pelos novos (e não tão interessantes) amores. 

Foto: Trincheira Filmes
Foto: Trincheira Filmes


A viagem para uma exposição individual em São Paulo soa como desculpa para reencontrar a ex-namorada (hoje casada), o pai distante, as próprias fobias e incertezas. De câmera analógica e celular sem Whatsapp, o protagonista quer recuperar a vida não vivida e, diante da óbvia impossibilidade, anda cabisbaixo pela escuridão de ruas escuras e quartos claustrofóbicos de janelas fechadas. O ritmo do drama é lento, como são lentas as experiências melancólicas pelas quais passamos durante crises existenciais. Os diálogos são escassos, como de fato acontece quando palavras são desnecessárias diante da intimidade, do constrangimento, da timidez. 

Foto: Trincheira Filmes
Foto: Trincheira Filmes


O longa-metragem pode vir a ser uma decepção para quem se viciou nos roteiros de algumas comédias românticas, digamos, cheios de reviravoltas e conflitos. Pode desagradar quem não tiver o olhar apurado para as minúcias da profusão de simbolismos e minúcias das conversas, silêncios, atuações minimalistas, da fotografia de grandes contrastes. Mas se enxergadas as camadas menos superficiais de Permanência, o filme explode na tela e comove pela capacidade de capturar e reproduzir com delicadeza angústias tão reais quanto as vividas do lado de fora das salas de cinema. 


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