Letras Alceu Valença lança primeiro livro, O poeta da madrugada Cantor, compositor, poeta e cineasta de São Bento do Una reúne poemas escritos entre a década de 1960 e 2014. Lançamento pode ocorrer em maio, próximo à data de exibição de "A luneta do tempo"

Por: Luiza Maia - Diario de Pernambuco

Publicado em: 18/04/2015 09:00 Atualizado em: 17/04/2015 21:17

Versos recentes foram escritos em Portugal. Foto: Yanê Montenegro/Divulgação
Versos recentes foram escritos em Portugal. Foto: Yanê Montenegro/Divulgação

Os primeiros versos de Alceu Valença datam da adolescência, quando o então estudante universitário de direito arriscava rimas, algumas delas publicadas no suplemento literário do Diario de Pernambuco. A paixão pela poesia é mais antiga. Remonta à infância, “desde que se entende por gente”, na Fazenda Riachão, em São Bento do Una, onde o avô, Orestes, promovia saraus e tertúlias lítero-musicais. “Minha avó, que amava os clássicos,tinha um certo desprezo pela cultura popular que tanto encantava meu avô. Para ela, uma vírgula fora de lugar era quase um pecado mortal”, compara.

Confira a música inédita que Alceu Valença compôs para o Recife, Calendário vazio, no especial Pelas ruas que andei

Cheia de melodia que é a escrita do pernambucano, a vocação poética descambou para a composição. Somente agora, aos 68 anos e mais de 40 de carreira, quase 30 discos e um filme lançados, ele publica um livro, O poeta da madrugada, lançado nesta semana, em São Paulo, em sessão de autógrafos de mais de três horas. “A coluna é que se lasca”, brinca.

Escritos durante noites em claro - tem problemas para dormir, não para acordar, garante - , principalmente em Lisboa, aonde vai anualmente, poemas de 2014 são margeados por outros guardados há décadas, como Branco (1967), escrito quando era estagiário de direito.

O fascínio - uma quase obsessão poética - pelo tempo, explícito no filme e em composições dele, se faz latente. No título, nas madrugadas, nas horas marcadas, no Sol, no vento, na estrada, no Poema do fim da feira, em que também deixa perceber a paixão pelo interior e pela cidade onde nasceu e viveu até os 8 anos.

Mesmo quando fala do Rio de Janeiro, residência desde fins da década de 1970 (com algumas interrupções), carrega o sotaque, as rimas, os quadros e os quadrões, algo confesso em Pelas ruas do Rio. Como já fizera em canção, Alceu volta ao Recife e passeia por bairros, como Espinheiros e Aflitos, em páginas que reforçam a matriz poética e se revelam uma extensão do compositor já tão conhecido.

Entrevista // Alceu Valença

O título do livro e o poema Prazer de escrever, escolhido para o encerramento e para a orelha, é um retrato sobre seu fazer poético?
É um retrato sobre a minha arte. O prazer de escrever pode estender-se para além da poesia e representar ainda o prazer de escrever canções, crônicas, roteiros de cinema e tudo o mais que a criação me permitir.

Num poema, são 4h. Noutro, 6h. A madrugada a que se refere é antes de dormir ou ao acordar? Por que o inspira? É o silêncio?
Escrevi a maior parte dos poemas em Lisboa. É uma cidade que me inspira. E como eu tenho dificuldade de dormir, pus-me a escrever obstinadamente como sempre faço quando tenho algum estímulo criativo. Foi assim também com o roteiro de A luneta do tempo, em que virava noites escrevendo, reescrevendo, modificando as ações. No caso da poesia, é um processo mais fluido, a coisa vem numa torrente de ideias. Como diz o Fernando Pessoa: “E há poetas que trabalham em seus versos como carpinteiros em suas tábuas. Que triste não saber florir”. O problema é que depois de escrever muito tempo debruçado sobre um computador fico com uma dor arretada nas costas (risos). São os ossos do ofício.

Escritor e humorista Gregório Duvivier, do Porta dos Fundos, prestigiou a sessão de autógrafos, em São Paulo. Foto: Yanê Montenegro/Divulgação
Escritor e humorista Gregório Duvivier, do Porta dos Fundos, prestigiou a sessão de autógrafos, em São Paulo. Foto: Yanê Montenegro/Divulgação

Quando começou sua relação com a poesia? E com a escrita?
Minha relação com a poesia vem desde que me entendo por gente. Ainda menino, na Fazenda Riachão, onde nasci e cresci até os 7 anos de idade, meu avô Orestes promovia saraus e tertúlias lítero-musicais. Ele tinha uma dupla com um tio meu chamada Patativa e Azulão. Também pelo convívio com os cantadores e cordelistas, desde cedo conheci o universo da poesia, dos decassílabos, das sextilhas e redondilhas. Minha avó, que amava os clássicos, tinha um certo desprezo pela cultura popular que tanto encantava meu avô. Para ela, uma vírgula fora de lugar era quase um pecado mortal (risos). Quando vim morar em Recife, aos 8 anos, éramos vizinhos de Carlos Pena Filho e tomei gosto por sua poética já na adolescência. Lembro de andar pela rua dos Palmares com minha mãe quando passamos por um sujeito alto, que usava chapéu e se vestia de maneira muito elegante. Minha mãe disse: este é o poeta Ascenso Ferreira. Fiquei impressionado com aquela figura e acho até que, inconscientemente, essa fascinação me conduziu ao mundo das letras. Meu tio Livio Valença me apresentou à literatura de Pessoa, Eça, Graciliano, Rubem Braga. Depois descobri Castro Alves, Drummond, Cabral, Bandeira, Pessoa, e comecei a pôr a poesia em prática. Cheguei a publicar poemas no suplemento literário do Diario de Pernambuco quando era estudante universitário. E não parei mais de escrever.

O livro reúne poemas de 1967 a 2014. Como foi a escolha dos textos e das canções?
Além da produção mais recente, escrita sobretudo nas madrugadas de Lisboa, resolvi acrescentar poemas do início da minha trajetória e também letras de canções que se sustentam como poesia para além do alcance da música. O poema Branco, por exemplo, eu escrevi quando era estagiário de Direito, no escritório de meu primo Clávio Valença, na Avenida Guararapes. Há também trechos de um longuíssimo poema chamado inicialmente de São Bento - Paris, em que descrevi minha trajetória desde a Fazenda Riachão até o autoexílio a que me impus na capital francesa, em 1979, antes de estourar nacionalmente na canção popular.

José Eduardo Agualusa diz que seus versos são nascidos para a música. Você também enxerga assim?
Acho que esta questão tem a ver com a musicalidade inerente aos versos dos cordelistas do Agreste e do Sertão. Agualusa fez uma apresentação comovente para o meu livro e acredito que sua prosa também possui uma dinâmica quase musical. Não sei se encontro propriamente música em determinados escritos publicados no Poeta da madrugada, mas se ele assim o viu não ouso discordar. Já no texto de A luneta do tempo, por exemplo, pretendi intencionalmente buscar musicalidade nos diálogos e nas rimas. O roteiro pode ser lido como um grande poema de cordel.

Você escolheu um angolano para assinar o prefácio de um livro publicado por editora portuguesa. Como é sua relação com obras e outros artistas de língua portuguesa?
Tenho me aproximado bastante de Portugal nos últimos tempos. A rigor, sempre defendi a presença e a influência portuguesa na vida brasileira, algo que muitas vezes é subestimado em nosso país. Na música, por exemplo, hoje nos sentimos mais próximos do soul e da música americana do que das raízes ibéricas que constituem nossa expressão. A influência do fado e da marcha portuguesa é evidente nos frevo-canções e até no samba. Se você reparar bem, As rosas não falam, de Cartola, tem uma estrutura melódica bem próxima à do fado, assim como clássicos pernambucanos como Madeira que cupim não rói ou Valores do passado. O Agualusa disse que adora uma música minha chamada Pirata José, um frevo-canção que descende diretamente das sonoridades ibéricas e lusófonas. Não por acaso, lanço meu livro pela editora Chiado, o maior grupo editorial lusófono do planeta, que abriu recentemente um escritório no Brasil.

O tempo é muito recorrente em sua obra, até no título do filme. Podemos falar de uma obsessão poética pelo tema?
É como digo na Embolada do tempo: "O tempo em si/ Não tem fim não tem começo/ Mesmo virado ao avesso não se pode mensurar". Para mim, o tempo é tríplice. Vivemos presente, passado e futuro tudo ao mesmo tempo. Sou aquele mesmo menino da Fazenda Riachão, sou o adolescente que assistia aos filmes da Nouvelle Vague no Cinema São Luiz, sou o cara que comandou uma trupe de malucos no Festival Abertura com Vou danado pra Catende, o vendedor de milhões de discos em todo o Brasil e sou também o poeta da madrugada. O tempo não tem tempo.

E no cotidiano? Como lida com a passagem das horas? Costuma ver o relógio, acordar cedo? É pontual? Envelhecer o amedronta? Tem uma rotina diurna, apesar da profissão?
Minha dificuldade maior está em conseguir dormir, não tenho problemas em acordar (risos). Sou extremamente pontual em todos os meus compromissos e levo uma vida bastante diurna. Caminho todos os dias, não fumo, não bebo, nunca usei drogas. Envelhecer não me amedronta. O que me amedronta é a burrice, a ignorância, a crescente diluição da identidade brasileira, o retrocesso político com jovens incautos pedindo a volta da ditadura, o período mais tenebroso de nossa história. Mas, felizmente, a poesia sempre salva.

Sei que você gosta de deixar os trabalhos fluírem, sem “cobranças”. Mas por que o livro saiu agora? Quando será lançado no Recife?
Foi uma ideia da minha mulher, Yanê Montenegro. Ela ficou entusiasmada com esta minha nova produção poética e teve a ideia de publicá-la. Entrou em contato com o escritório da editora e eles toparam na hora. Passei mais de três horas autografando na Livraria Cultura, em São Paulo. A coluna é que se lasca (risos). Espero agendar em breve um lançamento do livro no Recife.

+ um poema

O tempo
Alceu Valença
Otempo se dilata
Como um fio,
Cordão elástico caminho,
Estrada que nos transporta.
A gente segue o tempo
Seus caminhos suas rotas
Por onde o tempo seguiu.
Depois quer vivertudo que viu,
Vai bater namesma porta
De onde um dia saiu.
e ninguém nota,

SERVIÇO
O poeta da madrugada, de Alceu Valença
106 páginas
Editora Chiado
Preço: R$ 28

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