Carnaval 2015 Sócios da resistência: dirigentes lutam pela sobrevivência dos clubes carnavalescos O amor e a dedicação incondicionais - acima da falta de dinheiro, tempo e atenção do poder público - dão suporte a presidentes das agremiações recifenses

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Por: Marina Simões - Diario de Pernambuco

Publicado em: 01/02/2015 11:00 Atualizado em: 02/02/2015 15:31

Foto: Bernardo Dantas/DP/DA Press
Foto: Bernardo Dantas/DP/DA Press
Foto: Bernardo Dantas/DP/DA Press
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As rugas não estão somente nos rostos. As paredes das sedes de clubes carnavalescos do Recife também refletem o efeito do tempo. O desgaste mora em toda parte, a despeito da exuberância desfilada durante a folia de Momo. No corredor da Avenida Dantas Barreto, no Centro do Recife, paetês e lantejoulas dominam a Terça-feira Gorda. Durante o restante do ano, a luta é selvagem para que os clubes sobrevivam até o carnaval seguinte. Dificuldades financeiras são o principal desafio. Nas trincheiras da tradição, figuras experientes admitem: preferem cair nas mãos de agiotas, fora do mercado legítimo de crédito, a não ver o clube desfilar.

Agremiações tradicionais como os clubes carnavalescos mistos dos Lenhadores, Bola de Ouro, Banhistas do Pina, Elefante de Olinda, Amantes das Flores e Clube das Pás alegam que os incentivos públicos não dão conta das despesas. Recebem anualmente uma ajuda de custo com valor entre R$ 3.450 (Grupo de Acesso) e R$ 16 mil (Grupo Especial), depositada pela Prefeitura do Recife em duas prestações - uma anterior e uma posterior ao carnaval, a última mediante prestação de contas. Os gastos operacionais para cada desfile, porém, são estimados pelas diretorias em cerca de R$ 20 mil.

A manutenção das sedes - para os que as têm - requer ainda munição financeira durante todo o ano. “Para sobreviver, organizamos rifas, bingos e bailes dentro da sede, além de alugar o espaço para eventos e recolher doações entre os sócios”, explica Genival Dantas, 74 anos, presidente do Clube dos Lenhadores. “Nós, que nem sede fixa temos, tomamos empréstimos, usamos cartões de crédito dos familiares e recorremos à solidariedade de amigos para custear orquestra, fantasias e estandarte”, conta Luiza Ramalho, presidente do Bola de Ouro, homenageado da prefeitura no carnaval deste ano. Na casa no Bairro de São José - onde já se amontoam figurino e adereços do próximo desfile, além de peças dos carnavais passados -, ela diz aguardar uma fiscalização mais “generosa” das entidades governamentais. Espera ser agraciada com uma sede fixa e armazenar os pertences do clube fora da residência. “Seria a melhor homenagem”, arremata.

Saudosistas, Luiza Ramalho e Genival Dantas, assim como os presidentes de outras agremiações, reverenciam uma época em que os clubes, segundo eles, recebiam mais atenção da população e autoridades. Nascidas de associações de trabalhadores após o fim da escravidão, as entidades viveram tempos áureos no início do século 20. Agora, a maioria comandada por anciões, lançam mão da experiência para se reinventar e continuar em atividade. “Como qualquer cultura viva, os clubes carnavalescos se adaptam às mudanças sociais e econômicas para sobreviver. Mantêm figuras antigas, mais maduras, na liderança como símbolo de tradição, guardiões da memória”, explica a pesquisadora de cultura popular Maria Alice Amorim. Para ela, entretanto, não é proibido falar em futuro. A pesquisadora acredita que as agremiações passarão a herdeiros simbólicos, capazes de dar continuidade e rejuvenescer os clubes. “Não necessariamente familiares, mas jovens que também amam o frevo e a cultura popular. Há cada vez mais deles”, afirma. “É essa paixão que os move”.

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Foto: Bernardo Dantas/DP/D.APress
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Luiza Ramalho, presidente do Bola de Ouro

Filha de alfaiate e costureira pernambucanos, Dona Luiza nasceu em casa. Quando recebiam amigos em época de carnaval, os pais diziam que a menina cresceria com o “pavio aceso”, em meio a tanta agitação. E a profecia se cumpriu. Aos 78 anos, afasta peças de fantasia do Clube Carnavalesco Misto Bola de Ouro para abrir espaço na cama onde dorme. A agremiação homenageada deste ano não tem sede. Lantejoulas, penas e estandarte se espalham pela residência, no Bairro de São José. Devota de São Bartolomeu e Nossa Senhora do Carmo, credita a eles a sobrevivência do Bola. Endividada, abriu mão do sonho da casa própria, presente do filho, para quitar débitos do clube. Vive de aluguel. “Vou morrer nesse bairro, à frente do clube, e, quando isso acontecer, vou passar o bastão ao meu filho Robervaldo Ramalho, vice-presidente”, explica, diante da filha, Rosalice - que, por sua vez, já declarou: não pretende assumir o legado.

Foto: Bernardo Dantas/DP/D.APress
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João Trindade, presidente do Elefante de Olinda

Casado há 52 anos com Cleonice Trindade, patriarca de cinco filhos e oito netos, Seu João considera o Clube Carnavalesco Misto Elefante de Olinda o primogênito. Assumiu a presidência há mais de 20 anos e dispara: “Só vou parar quando Deus quiser.” Confiava que algum dos carnavalescos associados à agremiação assumiria o lugar dele. Mudou de planos. No próximo ano, pretende deixar o cargo e convidar Imaculada Salustiano, filha do Mestre Salustiano, para lhe substituir. “Ela já sabe”, emenda. Por enquanto, enfrenta os desafios de arrecadar dinheiro junto a amigos para manter o clube ativo. Acumula dívidas e trabalha o ano inteiro organizando os pormenores da folia de Momo. Nada pode dar errado. Todo o patrimônio do clube está na casa dele, em Olinda, já que o Elefante não tem sede. Aos 76 anos, o ex-supervisor de obras não desiste do carnaval. “É só disso que eu gosto. Foi a vida que eu escolhi”, conclui.

Foto: Bernardo Dantas/DP/D.APress
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Genival Dantas, presidente do Lenhadores

Avô de João Victor, 9 anos, Genival Dantas ouve com orgulho quando o neto diz que sonha ser presidente do Clube Carnavalesco Misto dos Lenhadores, na Mustardinha. É o futuro da agremiação que está em jogo. Aos 76 anos de idade, vê o clube como uma entidade promissora, imortal. “As tradições vêm de família, sobrevivem”, pondera. Considera o controle das finanças o grande desafio do cargo que ocupa há nove anos. Entre bailes, rifas e bingos, tenta equilibrar as contas e salvar o barco do naufrágio. Em 117 anos de fundação, diz que os Lenhadores nunca deixaram de desfilar no carnaval. Nem o farão este ano. Ele, que entrou na história do clube por conta própria - filho de pai agricultor e mãe costureira, ambos avessos à folia - agora não quer mais deixá-la. “Quando cruzamos a Avenida Dantas Barreto cheios de brilho, tudo vale a pena”.

Foto: Paulo Paiva/DP/D.APress
Foto: Paulo Paiva/DP/D.APress

Lindivaldo Leite, presidente do Banhistas do Pina

É apresentando as reformas recentes na sede do Clube Carnavalesco Misto Banhistas do Pina que Seu Vavá justifica por que corre o risco de não competir no Concurso de Agremiações deste ano. “Gastamos as economias do grupo para atender às exigências do Ministério Público e Corpo de Bombeiros, que interditaram o espaço no fim do ano passado”, conta. Agora se desdobra para arrecadar fundos e custear as novas fantasias para o desfile. “Talvez não tenhamos condições”, lamenta. Aos 80 anos recém-completados, assumiu a tarefa ainda em família. Os pais, Pedro e Juliana Leite, estavam entre os fundadores da agremiação. Frequentava o lugar ainda na barriga da mãe, onde diz já ter se acostumado ao clima de carnaval. Seu Vavá é bacharel em sociologia e deposita na palavra “cultura” a justificativa para não abandonar o posto.

Foto Bernardo Dantas/DP/D.APress
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Eliane Nogueira, diretora do Clube das Pás

Enfermeira aposentada, 70 anos, é conhecida como a “Preta da Tesoura de Ouro” do Clube das Pás, em Campo Grande, com 127 anos de fundação. É diretora e chefe da costura há 50 anos. Chegou criança, levada pelo ex-presidente Josabá Emiliano da Silva, um dos fundadores. Por anos, conciliou os plantões na maternidade com os compromissos de carnaval. Hoje, perde noites de sono, mas se realiza ao ver o clube na avenida. “Nada sai daqui sem passar por mim”, enfatiza. O amor transbordou, e a família se envolveu. O neto Gabriel Nogueira, de 20 anos, é o carnavalesco da agremiação. “Trabalhamos com pouca estrutura e quase nenhuma mão-de-obra. São cerca de 150 fantasias, só uma costureira e duas bordadeiras. Não sou reconhecida”, queixa-se. Preta dedica 12 horas do dia, por sete meses, cortando tecidos e produzindo figurinos. “Só deixo isso aqui no dia em que Deus me levar”.

José Rinaldo, presidente do Amante das Flores

A agremiação Amante das Flores resiste ao tempo e ao espaço. Fundada em 1919, no Alto do Mandú, hoje, a sede provisória é na Bomba do Hemetério. O servidor público José Rinaldo, 48 anos, está à frente do clube há quatro anos. Assumiu durante uma crise, em 2010, quando o clube ameaçava não desfilar por conta de dívidas. O amor pelo carnaval vem da família. Os avós eram membros da diretoria e desfilavam nos Toureiros de Santo Antônio. “Cresci convivendo com esse clima. E isso me mantém envolvido com o carnaval”, explica. Diretor de escola pública, reclama: “Não há política de valorização. Boa parte dos presidentes de agremiações são  pessoas idosas, com problemas de saúde, e isso coloca em xeque a sobrevivência das agremiações. Assumimos para não deixar uma tradição secular se perder”.

>> SAIBA MAIS
+CONCURSO

No Carnaval do Recife 2015, 16 clubes carnavalescos mistos participam do desfile oficial da festa. A disputa ocorre na terça-feira de carnaval, na Av. Dantas Barreto. No último ano, os prêmios foram de R$ 1,5 mil (terceiro lugar na categoria Grupo 2) a R$ 20 mil (primeiro lugar na categoria Grupo Especial).

+FUNDAÇÃO
Para registrar um clube carnavalesco junto à Prefeitura do Recife, é necessário fundá-lo mediante registro na Junta Comercial, no cartório. Para existir oficialmente, é necessário constituir uma diretoria e cadastrar-se como pessoa jurídica.

+INCENTIVO
Os clubes registrados na prefeitura sem pendências fiscais recebem, anualmente, incentivo financeiro nos seguintes valores: R$ 16.600 (Grupo Especial), R$ 11 mil (Grupo 1), R$ 6,9 mil (Grupo 2) e R$ 3,4 mil (Grupo de Acesso).


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