Luto

Em entrevista de 2013, Abelardo da Hora diz que está acima do realismo

Artista plástico pernambucano faleceu na manhã desta terça, aos 90 anos

Publicado em: 23/09/2014 13:12 | Atualizado em: 19/08/2021 14:39

Artista comentou seu estilo peculiar de arte. Crédito: Allan Torres/Esp.DP/D.A.Press


Em abril de 2013, o repórter Júlio Cavani visitou o ateliê do desenhista, gravurista, ceramista e escultor Abelardo da Hora para uma entrevista especial publicada em duas páginas do caderno. Relembre a conversa com o artista plástico, falecido da manhã desta terça-feira, devido a um edema pulmonar, às 8h45, após passar mais de 15 dias internado no hospital Memorial São José:

Você acha que a escultura tem uma força diferente das outras artes?

Todas as artes têm a mesma força, do ponto de vista da comunicação e da expressividade. A escultura é uma coisa forte porque ela se assemelha muito ao ser humano. O fato de você se movimentar e ver novas coisas a cada lado é uma coisa maravilhosa. Gosto do bronze porque é um material bonito, que não se acaba. Até hoje você encontra peças de bronze do Egito Antigo em escavações.

Você acha que a velocidade do mundo contemporâneo fez a produção de esculturas diminuir entre os artistas? São raros os jovens que fazem escultura hoje em dia...
A escultura pode ser mais demorada e trabalhosa do que as outras artes. Você tem que ter um certo tempo, tem que modelar, tirar a forma, fundir, seja em concreto, gesso, resina ou metais. É mais caro também.

Por que seu estilo de desenho não é realista e tem certos exageros nas curvas e formas?
Sou realista até demais. Sou expressionista. Estou além do realismo, estou acima.
   
Tem alguma parte do corpo humano que você gosta mais de modelar?
Gosto dos seios. Minha mãe dizia que é por influência do meu tempo de menino. Ela tinha pouco leite e eu queria mamar muito. Eu tinha seis mães de leite. As amigas dela me davam de mamar. O rapaz responsável pelo transporte das minhas obras me disse para não fazer mais mulheres com bundas tão grandes. Ele disse que eu fiz uma mulher com uma tonelada só de bunda.

Como você começou a fazer escultura?
Eu estudava num curso técnico, num ginásio industrial, na Encruzilhada. Lá, eu tinha aula de “artes decorativas”, que era desenho, pintura, entalhação, fundição e cerâmica. Quando meu professor Álvaro Amorim viu uma escultura que eu fiz, que retratava um casal de repentistas violeiros, me convidou para estudar na Escola de Belas Artes de graça com uma bolsa de estudos. Aí eu comecei a assumir esse lado.

Você, que já chefiou um departamento de praças e parques da prefeitura, acha que o Recife precisa de mais áreas verdes?
O Recife não só precisa de mais parques e praças, como precisa de mais cuidado com as áreas de lazer que já existem. As praças estão abandonadas. No tempo em que eu era secretário, eu mesmo fazia rondas por todas as praças. Havia um cuidado maior. A guarda municipal cuidava do conforto e do lazer das pessoas que frequentavam as praças, para as crianças brincarem com plena liberdade, mas cuidava também da proteção das próprias praças, dos monumentos e brinquedos. Fiz um monumento ao Galo da Madrugada na Praça Sérgio Loreto e, há quatro anos, serraram a escultura para roubar um pedaço do bronze. Vejo gente dormir ao lado do monumento que fiz em homenagem ao maracatu, junto do Forte das Cinco Pontas.

Você acha que o Recife está ficando mais feio ou mais bonito?
Não tenho saído de casa para dar uma resposta com precisão. Mas eu acho que tem que haver responsabilidade de todos os que assumem qualquer cargo. A política não é feita para títulos e salários, é feita para a dedicação em benefício da coletividade. É uma coisa séria, não é uma brincadeira. Esses prédios altos são uma coisa terrível. O calor do Recife aumentou tremendamente por isso. Não tem um estudo, uma disciplina. Cada um quer fazer um negócio mais alto que o outro, fechando tudo. Nem em Boa Viagem você sente a brisa do mar hoje em dia, a não ser na beira da praia. É tanto prédio na frente que tapa a ventilação. Não conheço o projeto para o Cais José Estelita, mas quero ver, pois aquele lugar merece uma coisa muito bonita.

Como era seu projeto das Praças de Cultura?
Em dezembro 1960, fui falar com Arraes sobre as Praças de Cultura. Rascunhei num papel e mostrei a ele que eu queria reviver o antigo coreto ampliado e horizontalizado. No lugar de ser um coreto redondo, feito para bandas de música e discursos, seria uma coisa deitada, para onde você pudesse levar exposições de arte, teatro e audições de música, além de funcionar como escola de cultura. Modifiquei todos os escorregos das praças por causa de um acidente que ocorreu com uma menina no Parque 13 de Maio com um escorrego de madeira. Bolei um escorrego de concreto, para ninguém se machucar. Você ainda pode ver esses escorregadores em diversas praças em bairros como Casa Amarela, Jardim São Paulo, Várzea, Torre, Iputinga e Beberibe.

Por que a lei das esculturas nos prédios, que você criou, não funciona da forma ideal?
Essas empresas construtoras ganham muito dinheiro. Propus uma lei que as obrigasse a colocar obras de arte nos edifícios. Esse dinheiro das esculturas não representaria nada para os gastos delas. Elas perdem muito mais em desperdício de material. A cidade ficaria mais bonita e enriquecida de cultura. Para cada construção com mais de 1 mil metros de área, seria obrigada a instalação de uma escultura ou mural. Funcionava direito, mas depois começou a bagunça. Os arquitetos, por ordem dos construtores, começaram a fazer todo tipo de porcaria geométrica qualquer e dizer que aquilo era escultura. Deveriam batalhar por esses critérios, mas hoje em dia não existe sequer uma entidade coletiva representativa dos artistas plásticos.

Você, que foi preso político, tem acompanhado o trabalho da Comissão da Verdade em relação à ditadura militar?
Acho muito interessante esse trabalho. A própria Dilma já exigiu um pouco mais de agilidade e de penetração. Isso não pode ficar no ar, não pode ficar só na denúncia. Os camaradas que fizeram isso são bandidos infiltrados no Exército, na Marinha e na Aeronáutica. Eles desmoralizaram completamente as Forças Armadas e rasgaram a legalidade do país, pisotearam a Constituição. Na ditadura, fiquei visado demais. Fui secretário de cinco prefeitos antes do golpe. Todas as minhas obras passaram a ser proibidas. Quando veio o golpe, eu era secretário de educação de Pelópidas Silveira e mandaram derrubar até uma torre de iluminação que eu desenhei para uma praça. Recebi a visita da Comissão da Verdade e essa torre que eu fiz vai ilustrar um dos cadernos.

Que outras obras suas foram destruídas pelos militares?
Na Ditadura Militar, eu cheguei a ser condenado à pena de morte. Ainda tenho guardado o documento por escrito. Uma das minhas obras que os militares destruíram foi um monumento em homenagem às Ligas Camponesas, que foi erguido no Engenho Galileia (Vitória de Santo Antão), num morrinho, em cima de uma pedra natural que serviu de pedestal. Houve uma concentração enorme de trabalhadores na inauguração, com a presença de Francisco Julião. Com o golpe, a escultura desapareceu. Dizem que ela foi despedaçada. Os militares também tocaram fogo, na Praça do Diario, em cerca de 500 álbuns de gravuras da minha série Os Meninos do Recife. Eles foram queimados em uma grande fogueira junto com cartilhas educativas escritas por Paulo Freire. Também desapareceu uma escultura que fazia parte do acervo do Museu Solar da União, na Bahia, que retratava uma família de camponeses e fez parte da exposição Civilização Nordeste, organizada pela arquiteta Lina Bo Bardi.
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